Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
Não cuidamos de decifrá-lo, conhecer-lhe a
origem, o enraizamento na sociedade, a ação corrosiva contra as estruturas
frágeis da democracia, as alianças de interesses antissociais
O Brasil político tem perdido um tempo
enorme com assuntos adjetivos da crise pela qual passa o país, tal o complexo
cruzamento de realidades sociais e políticas desencontradas que ganharam corpo
e visibilidade a partir do dia 1º de janeiro de 2019.
O bolsonarismo vitorioso é consequência do
lento agrupamento da diversidade de anomalias e contradições que foram
desdenhadas pelos partidos de motivação social. Tornou-se ele um aglomerado de
resíduos antidemocráticos da democracia frágil, o negativo que encontrou sua
lógica no conjunto de irracionalidades que deu vida à sua política do absurdo.
Um sistema criado para assegurar o primado de uma política de crescimento
econômico sem compromisso com o desenvolvimento social. Seu objetivo tem sido o
de assegurar ganhos de Primeiro Mundo num país de Terceiro Mundo. A explosão da
miséria, da fome, do desemprego detonaram esse modelo econômico.
Só lentamente tem conseguido o Brasil político definir como atuar, nas eleições e também depois delas, como uma frente democrática contra o autoritarismo e a herança maldita que dele ficará.
Temos tratado o bolsonarismo como assunto
menor e não como gravíssima anomalia em nosso processo político. Referimo-nos
aos bolsonaristas como caricaturas do que deveria ser o político e não como
aquilo que são: caricaturas ativas que tiveram êxito na usurpação do poder e no
desmonte das conquistas sociais.
Não cuidamos de decifrá-lo, conhecer-lhe a
origem, os fatores, o enraizamento na sociedade, a ação corrosiva contra as
estruturas frágeis da democracia, as alianças de interesses antissociais que
neles se corporificam. O bolsonarismo não está sozinho na crise e na agonia. O
sistema partidário também está.
As esquerdas, do mesmo modo, não estão a
salvo. Os grupos e partidos políticos se determinam reciprocamente. Elas
precisam retornar à dialética e rever-se criticamente para identificar quais
são as contradições do momento histórico e a implícita práxis social do
possível, transformadora.
O nosso grande desafio é o de assumir que o
bolsonarismo, para ser superado, tem que ser estudado e conhecido como o que é,
esdrúxulo objeto de conhecimento. A falta de seriedade do bolsonarismo tem que
ser estudada a sério como problema, social e político, como eficaz máquina de
limitação e empobrecimento da cidadania e de transformação do Brasil numa
sociedade carneiril.
É ele expressão tardia e extemporânea de
uma estratégia política que remonta ao período final da Segunda Guerra Mundial,
quando já estava em andamento a Terceira Guerra. Uma estratégia que se tornará
a da geopolítica do universo de poder em que estão inseridos países como o
nosso. Não mais a do confronto de potências. Mas a do confronto do Estado
repressivo e armado contra a sociedade, para tratá-la como inimigo interno
porque abriga os que perfilham carências sociais e de expressão política que
podem conduzi-la a uma coalizão possível de interesses e sujeitos capaz de
mudar a vida e superar contradições.
O bolsonarismo revela nossa alienação
política, nossa dificuldade para contrapor uma ação política consequente a políticos
de anedota.
No bolsonarismo se reflete a alteração da
realidade dos confrontos militares decorrente da explosão das bombas atômicas
no Japão. Com ela a função dos militares encolheu. A definição de inimigo e o
modo de combatê-lo é outra. O inimigo, praticamente no mundo todo, é hoje um
inimigo inventado. E uma das funções dos militares na atualidade é a de
inventá-lo ou a de supô-lo para combatê-lo. Os reais novos inimigos, por outro
lado, como a produção e o tráfico de drogas, que aniquilam a vida de suas
vítimas e nisso a sociedade inteira e o próprio capitalismo, vicejam porque as
forças de segurança não os têm como centro de referência de sua formação.
No cumprimento de sua função de desmantelar
a sociedade e disseminar a desordem permanente, o bolsonarismo é expressão de
uma realidade política propositalmente criada com o objeto de instituir a
insegurança, a incerteza e o medo como mediações permanentes da instabilidade
política. E nesse sentido militarizar as instituições e a competência cidadã da
sociedade.
É o que fragiliza a certeza necessária ao
desenvolvimento das utopias de superação de tudo que nos tornamos naquilo que
deixamos de ser. Somos hoje parte de um sistema político e de uma economia
mundializados que têm os seus gestores, seus cúmplices, sua tecnologia, sua
capacidade de desmonte das bases sociais e políticas que fazem do homem comum
autor de sua própria história. Impedidos de nos saciarmos do que a realidade
possibilita até o limite do subestimado possível. Para vencer iniquidades e
misérias.
*José de Souza Martins foi professor titular de sociologia na Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de "Sociologia do desconhecimento Ensaios sobre a incerteza do instante" (Editora Unesp, 2021).
Um comentário:
Artigo meio confuso.
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