Correio Braziliense
O isolamento de Bolsonaro no
Ocidente, antipatizado pela opinião pública e em litígio com os principais
líderes mundiais, inclusive o presidente Biden, fez de Putin um parceiro
natural
Uma das dificuldades de caracterização do
governo do presidente Jair Bolsonaro decorre do fato de que não existe um
projeto político claro que oriente as ações, tudo acontece na base do
improviso, diante da necessidade de manter o poder. Por essa razão, desde o
primeiro momento, mas principalmente depois da derrota de seu aliado principal,
Donald Trump, sempre considerei a hipótese de que haveria uma aproximação
estratégica de Bolsonaro com o presidente da Rússia, Vladimir Putin. Só não
imaginava que isso viria a ocorrer em razão da guerra da Ucrânia. Sobre isso
falaremos mais adiante.
Inicialmente, cabe destacar, tão logo tomou posse, o governo Bolsonaro assumiu características bonapartistas, em contradição com uma ordem democrática presidida pela Constituição de 1988. Por que essa caracterização? Ora, em razão de Bolsonaro se colocar acima da sociedade e se apoiar essencialmente nas Forças Armadas, constituindo um governo com grande número de militares, maior até do que o dos presidentes Castelo Branco, Costa e Silva, Médici, Geisel e Figueiredo, todos generais-presidentes. Grosso modo, o bonapartismo consiste no fato de que um indivíduo se coloca acima de todas as partes do Estado e da sociedade, ou seja, fulaniza o vértice de poder.
Não durou muito esse modelo esquizofrênico.
A pandemia se encarregou de derrotar a hegemonia militar no governo, sobretudo
porque o general Eduardo Pazuello, à frente do Ministério da Saúde, encarregado
de implementar as teses negacionista de Bolsonaro, levou ao colapso o sistema
de saúde pública, quando perdeu o controle sobre a covid-19, que já matou mais
de 675 mil pessoas. Concomitantemente, o impacto da pandemia na economia, em
razão da necessidade de distanciamento social e redução da atividade econômica,
também levou ao fracasso o poderoso ministro da Economia, Paulo Guedes, cujo
projeto neoliberal foi para o espaço, com o país mergulhado no desemprego, na
inflação e na fome.
Deu-se, então, a metamorfose da
transformação de um governo bonapartista num governo reacionário de viés
populista, como o que temos hoje. O conceito é mais adequado porque Bolsonaro
entregou o comando político do governo e o Orçamento da União ao Centrão, ao
nomear para a Casa Civil o presidente do PP, senador Ciro Nogueira (PI), e
aceitou que o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), desse as cartas na
distribuição de recursos federais aos parlamentares da base governista e,
também, de uma boa parcela da oposição. O chamado “orçamento secreto” é um iceberg,
que ainda pode virar um grande caso de polícia. Na farra das emendas ao
Orçamento, um conjunto de medidas regressivas vem sendo aprovado pelo
Congresso, a mais recente é a PEC das Eleições, que viola a legislação
eleitoral e rompe completamente com os paradigmas do equilíbrio fiscal.
Estamos agora na iminência de uma nova
metamorfose, que tem como pano de fundo as eleições presidenciais. Agora, sim,
Bolsonaro tenta consolidar, pela via eleitoral, um projeto de regime político
“iliberal”, como ocorre em muitos países da Europa e do Oriente, com tutela
militar. Esse conceito surgiu num artigo de Fareed Zakaria de 1997 para a
revista Foreign Affairs, em resposta ao questionamento do diplomata americano
Richard Holbrooke, às vésperas das eleições de 1996 na Bósnia: “O que dizer
quando uma eleição ocorre de modo livre e justo, mas o povo termina por
escolher racistas, fascistas, separatistas e outros agentes publicamente
contrários à paz e à integração?”
Zakaria transpôs a questão da ex-República
da Iugoslávia para vários outros locais do mundo, onde governos eleitos ou
referendados legitimamente costumam ignorar os limites constitucionais e privar
a população de direitos fundamentais. Ao incluir a Rússia entre esses países, o
conceito ganhou asas: Boris Yeltsin, na época presidente, até então era visto
no Ocidente como o reformador responsável pela abertura da Rússia, inserindo-a
decididamente no mapa do neoliberalismo.
Amigo de Putin
Todos os homens do Kremlin — os bastidores
do poder na Rússia de Vladimir Putin, de Mikhail Zygar (Vestígio), é um
livro-reportagem com detalhes reveladores sobre como o líder russo “se tornou
rei por acaso”, levado ao poder por oligarcas e políticos regionais, que o
acolheram ao mesmo tempo em que manipulavam seus medos e ambições. Com o tempo,
demonstrou uma habilidade incomum para se manter no poder e assumir o controle
do grupo com mão de ferro. Sua imagem de líder jovem e modernizador, porém, não
convenceu o Ocidente. Seu projeto inicial de integração da Federação Russa à
União Europa foi rejeitado pela primeira-ministra alemã Angela Merkel.
Essa rejeição, que considerou uma
humilhação, e a ambição de se perpetuar no poder levaram Putin à guinada nacionalista
e autoritária que vem marcando sua trajetória. A consolidação de seu poder se
deu em razão do apoio popular à ideia de restabelecer o status de potência
mundial da Rússia e à agenda conservadora dos costumes, da aliança com os
militares e com a Igreja Ortodoxa, e do controle dos meios de comunicação, dos
órgãos de segurança, do Ministério Público e do Judiciário.
A empatia entre Putin e Jair Bolsonaro
ficou evidente na visita do presidente brasileiro à Rússia. Há um terreno
fértil para essa aliança política pessoal. Bolsonaro não tinha um projeto
político claro quando foi eleito. Tem o mesmo discurso nacionalista, a agenda
conservadora, uma aliança religiosa fundamentalista, o apoio de setores
militares e do sistema de segurança, só ainda não controla os meios de
comunicação e o Judiciário.
O isolamento de Bolsonaro no Ocidente,
antipatizado pela opinião pública e em litígio com os principais líderes
mundiais, inclusive o presidente norte-americano Joe Biden, fez de Putin um
parceiro natural na cena mundial, mesmo depois da guerra da Ucrânia. A conversa
privada entre Bolsonaro e Putin em Moscou não ficou restrita à venda de carne e
à compra de fertilizantes, estratégica para os dois países. Houve conversas no
âmbito da cooperação tecnológica e militar, na qual a Rússia, sim, pode vir a
fazer diferença. E, para a oposição, existe o fantasma da interferência de
hackers russos nas eleições.
O posicionamento de Bolsonaro em relação à guerra na Ucrânia é um sinal de que há, de fato, um pacto entre ambos. Em Moscou, Bolsonaro havia agradecido a Putin pela histórica oposição da Rússia à internacionalização da Amazônia. Esse é um tema sensível para as Forças Armadas, principalmente o Exército. Existe outra fronteira de cooperação entre os dois países no âmbito militar: a venda de equipamentos e a transferência de tecnologia em áreas estratégicas da nossa indústria de Defesa, principalmente o projeto de submarino nuclear da Marinha.
Nenhum comentário:
Postar um comentário