Folha de S. Paulo
A América começa a descobrir, na
identificação entre liberdade e gozo do tiro, o fundo mítico da tese de Hobbes
Se não nesta semana, é grande a
probabilidade de que na próxima ocorra nos EUA um assassinato em massa, quando
um indivíduo munido de armas poderosas atira aleatoriamente sobre outros. O
"mass shooting" é tão americano quanto a "apple pie" ou o
Halloween.
Não se equivalem, certo, mas são típicos do
país que celebra no dia 4 de julho o seu excepcionalismo mundial e um
sentimento nacional de liberdade associado à posse indiscriminada de armas.
Este ano, na região de Chicago, a festa foi interrompida por um atirador, que matou celebrantes
na rua a tiros de fuzil.
Nunca se ofereceu uma explicação satisfatória para o fenômeno. Historicamente, o primeiro caso teve como autor Howard Barton Unruh, que, em 6 de setembro de 1949, matou 13 vizinhos a tiros de pistola Luger nas ruas de Camden, Nova Jersey. Unruh tinha sido herói da Primeira Guerra Mundial. Mas o fenômeno expandiu-se depois da Segunda Guerra, a cabo de sociopatas, numa atmosfera social turbinada pela "democratização" das armas.
Guerra, como definiu Martin Luther King, é uma "injeção de veneno do ódio na
veia". E essa talvez seja uma pista explicativa para as matanças
aleatórias. Numa sociedade sempre predisposta à guerra, como é o caso da
americana, querendo ou não, o cidadão carrega dentro de si a marca de uma
letalidade fratricida, fomentada tanto pelo individualismo voraz quanto pela
liberdade constitucionalmente associada às armas. A especulação tem forte
respaldo estatístico: 42% da posse de armas privadas (270 milhões de unidades) em todo o mundo
se encontram nos EUA.
Provém de Hobbes a reflexão no sentido de que aquilo que os seres
humanos têm realmente em comum é a capacidade de matar e a consciência de que
podem ser mortos. Essa generalização passa ao largo do comum integrado e
solidário em um sem-número de sociedades tradicionais e modernas. Entretanto é
pertinente à hipótese do ódio como forma social subterrânea, mas ativa,
turbinada por emoções de ressentimento e vingança.
É o que acontece nas exacerbações
fascistas, ou então sob as aparências democráticas de uma grande potência
belicamente estruturada, como os EUA. A guerra é interna na feroz competição de
classe social, mas também externa na geopolítica imperial.
Agora, aturdida pelas matanças e mais
descrente de seu longo sonho benfazejo (vendido ao mundo por cinema e
show-business), a América começa a descobrir, na identificação entre liberdade
e gozo do tiro, o fundo mítico da tese de Hobbes: a marca de Caim. Mas, como
tudo "made in USA", é algo que se exporta, junto com a instigadora
retórica do ódio, e se reproduz nos clubes de iniciação ao fascismo das
colônias.
*Sociólogo, professor emérito da UFRJ, autor, entre outras obras, de "A Sociedade Incivil" e "Pensar Nagô".
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