domingo, 17 de julho de 2022

Muniz Sodré - A marca de Caim

Folha de S. Paulo

A América começa a descobrir, na identificação entre liberdade e gozo do tiro, o fundo mítico da tese de Hobbes

Se não nesta semana, é grande a probabilidade de que na próxima ocorra nos EUA um assassinato em massa, quando um indivíduo munido de armas poderosas atira aleatoriamente sobre outros. O "mass shooting" é tão americano quanto a "apple pie" ou o Halloween.

Não se equivalem, certo, mas são típicos do país que celebra no dia 4 de julho o seu excepcionalismo mundial e um sentimento nacional de liberdade associado à posse indiscriminada de armas. Este ano, na região de Chicago, a festa foi interrompida por um atirador, que matou celebrantes na rua a tiros de fuzil.

Nunca se ofereceu uma explicação satisfatória para o fenômeno. Historicamente, o primeiro caso teve como autor Howard Barton Unruh, que, em 6 de setembro de 1949, matou 13 vizinhos a tiros de pistola Luger nas ruas de Camden, Nova Jersey. Unruh tinha sido herói da Primeira Guerra Mundial. Mas o fenômeno expandiu-se depois da Segunda Guerra, a cabo de sociopatas, numa atmosfera social turbinada pela "democratização" das armas.

Guerra, como definiu Martin Luther King, é uma "injeção de veneno do ódio na veia". E essa talvez seja uma pista explicativa para as matanças aleatórias. Numa sociedade sempre predisposta à guerra, como é o caso da americana, querendo ou não, o cidadão carrega dentro de si a marca de uma letalidade fratricida, fomentada tanto pelo individualismo voraz quanto pela liberdade constitucionalmente associada às armas. A especulação tem forte respaldo estatístico: 42% da posse de armas privadas (270 milhões de unidades) em todo o mundo se encontram nos EUA.

Provém de Hobbes a reflexão no sentido de que aquilo que os seres humanos têm realmente em comum é a capacidade de matar e a consciência de que podem ser mortos. Essa generalização passa ao largo do comum integrado e solidário em um sem-número de sociedades tradicionais e modernas. Entretanto é pertinente à hipótese do ódio como forma social subterrânea, mas ativa, turbinada por emoções de ressentimento e vingança.

É o que acontece nas exacerbações fascistas, ou então sob as aparências democráticas de uma grande potência belicamente estruturada, como os EUA. A guerra é interna na feroz competição de classe social, mas também externa na geopolítica imperial.

Agora, aturdida pelas matanças e mais descrente de seu longo sonho benfazejo (vendido ao mundo por cinema e show-business), a América começa a descobrir, na identificação entre liberdade e gozo do tiro, o fundo mítico da tese de Hobbes: a marca de Caim. Mas, como tudo "made in USA", é algo que se exporta, junto com a instigadora retórica do ódio, e se reproduz nos clubes de iniciação ao fascismo das colônias.

*Sociólogo, professor emérito da UFRJ, autor, entre outras obras, de "A Sociedade Incivil" e "Pensar Nagô".

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