A alternativa entre pensar no aqui e agora
e prever uma situação futura não precisa ser excludente. Mas tem sido. Para constatar,
basta observar a campanha do candidato líder nas pesquisas. A atração pelo
horizonte imediato de vitória eleitoral não se combina facilmente com o desafio
de governar um país dilacerado por perversão de instituições, sucateamento do
estado e esgarçamento da sociedade.
Existe um dilema entre a intenção demonstrada por Lula de “ir ao centro” (rota talvez não necessária para vencer a eleição, mas sim para vencê-la em primeiro turno e imprescindível para reconstruir a integridade do país) e resistências - de setores petistas e à sua esquerda - a que a campanha opere essa inflexão e saia das balizas de uma frente de esquerda hegemonizada pelo PT. Antecipo exemplos do que na próxima semana comentarei com mais vagar: entre as declarações de intenção agregadora (além do passo relevante da própria formação da chapa) está a atitude ampla até aqui mantida pela campanha de Lula em Minas Gerais; a de honrar, em Pernambuco, o acordo nacional com o PSB, apesar de ali dispor de alternativa e do fraco desempenho em pesquisas do candidato socialista que, por aquele acordo, lhe cabe apoiar; está também, se visto com boa vontade, o ensaio de aproximação com a parte não “lulista” do MDB, mesmo feito por via remota, oblíqua e usando intermediários inadequados. Já entre os exemplos de resistência à ampliação está o iminente recuo do PT no apoio à candidatura do deputado Marcelo Freixo, no Rio, no momento em que ele amplia seu arco, incorporando o PSDB; e uma virulenta manifestação da ex-presidente Dilma Rousseff contra o ex-presidente Temer. Os contrastes, contudo, diluem-se quando os a favor e os contra unem-se na orquestração de uma forte campanha pelo voto útil em Lula, já no primeiro turno. Os argumentos da esquerda lulo-petista para alcançar a vitória em primeiro turno são abraçados por políticos de partidos fora da esquerda, que aderem à palavra de ordem, um meio para garantir lugar confortável nas primeiras filas, na campanha e no futuro governo. Tais argumentos – como já frisei algumas vezes nesta coluna – não são desprovidos de sentido e razoabilidade, porém, nem de longe ocupam o lugar de evidências incontestáveis. Menciono dois: reduzir o risco de golpe e capitalizar a maior sintonia entre a esquerda e o eleitorado, que estaria sendo detectada em pesquisas. Vou comentá-los a seguir, com intuito de contra-argumentar.
Risco de golpe e de não aceitação do resultado
deve levar a voto útil em Lula no primeiro turno?
O
primeiro argumento (reduzir risco de golpe) faz-se acompanhar de um discurso
que enfatiza esse risco a ponto de sugerir que estamos diante, não só de uma provável
tentativa de Bolsonaro de executar o golpe (o que, a meu ver, é prognóstico
realista, pois que ele tentará já é um consenso nacional, é como esperar um
eclipse solar), como de uma relevante chance de consuma-lo com êxito. Conforme
essa percepção, as instituições estariam sequestradas, suas lideranças
acovardadas, “não fazendo nada” para detê-lo. Aí já penso que se trata de uma
avaliação menos realista e mais próxima do raciocínio mecânico de que a
existência de conspiração é evidência bastante para se prever que ela ditará o
desfecho.
Existem evidências em contrário que saltam
aos olhos sempre que arreganhos do presidente ultrapassam um limite que é
móvel, mas nem por isso instável. É recorrente e crescente em amplitude o tom
unitário de pronunciamentos de lideranças do estado e da sociedade civil em
defesa da democracia e das eleições e em repúdio a ataques à primeira e à sabotagem
das segundas. Céticos, assim como indignados por inegável justa causa, argumentam
que declarações, cartas e manifestos já não bastam, é preciso punir o golpista.
Concordo que já se passou da hora há muito tempo e, por isso mesmo, devemos
refletir sobre se se deve fazê-lo agora. A menos de três meses do provável
banimento do mito pelas urnas deve-se perguntar: será que vale a pena? Como
recentemente e, a meu ver, com lucidez, opinou um comentarista de noticiário
televisivo, a consumação de uma punição pelo TSE, o tratamento rápido de uma
denúncia da PGR ou o acolhimento, pelo Presidente da Câmara dos Deputados, de
um pedido de impeachment, seguido de rito sumário poderiam, sem prejuízo de sua
justeza e legitimidade, dar ao presidente espaço para transitar melhor entre a
posição de rejeitado pelo povo e de perseguido pelo “sistema”. O ponto não é
dispensar essas instituições de agirem. É vital que Augusto Aras e Arthur Lira
sejam instados a se somarem à defesa da legalidade e a não abrirem brecha ao
golpismo. Mas as ações não precisam ter o sentido da punição urgente. Ela virá
a trote, como nos EUA.
Outro ponto importante da linha
argumentativa que acentua as chances de êxito de um golpe é a consideração de
um provável alinhamento das forças militares a Bolsonaro, o que deveria levar o
campo democrático a explicitar um chamamento ao poder civil no sentido de, além
de enquadrar institucionalmente os militares, adiantar a disposição de limpar o
aparelho de governo da sua exorbitante presença. Tal programa seria mais um
óbice à ida de Lula ao centro porque a pauta "poder civil x poder militar"
é talhada, sob medida, para uma frente de esquerda. Somada à percepção de que a
eleição está ganha, ou quase, esse ponto de vista mergulha no clima de campanha
eleitoral radicalizada e busca mais essa polarização para acertar contas com a
"transação” da transição da década dos 80 e promover, talvez, uma
“refundação” da República, através de um confronto político evitado no passado.
Penso se tratar de um equivocado desvio de
foco. Sem negar as dimensões do problema
militar atual, penso que é um problema filho de uma conjuntura recente, surgido
com a ascensão de Bolsonaro, que trouxe o fato nada prosaico do emprego de
milhares de militares no governo ocupando cargos civis. Esse parece ser o fator
determinante das recentes manifestações corporativas que certo viés analítico
pinta com cores ideológicas como mais uma evidência de golpe. Segundo, que um
problema político dessa natureza e magnitude só poderá ser bem encarado a médio
prazo, por um Congresso previdente e um governo eleito, com amplo respaldo
político, da direita à esquerda. Colocar esse assunto em destaque na pauta
eleitoral é caminho curto para dividir uma frente que mal se formou.
Nos últimos dias circulou, nos meios de
comunicação, a informação de que militares da ativa teriam procurado o TSE para
declarar a disposição das forças armadas de, sendo convocadas, garantirem a
segurança das eleições. Teriam afirmado também seu desacordo com a iniciativa
do presidente de reunir embaixadores para denunciar suspeita em relação ao
sistema eleitoral. Atribuir crédito e sentido a informações tranquilizadoras de
não alinhamento das cúpulas das forças armadas a uma conspiração golpista não
leva a incorrer em crença poliânica. Mesmo afastado o risco militar, a lista de
preocupações razoáveis é extensa. A infiltração do bolsonarismo entre oficiais
de média patente segue obscura. Do mesmo modo a situação nas polícias
militares, em cujos quartéis consta haver intensa doutrinação ideológica, além
das iniciativas da extrema-direita de se articular com seus interesses
corporativos.
O quadro complexo requer enfrentamento unitário
e o ponto mais urgente e fundamental é combater e barrar a violência política
nas eleições. A sociedade civil já se
movimenta nessa direção e deve ser cobrado de todas as candidaturas, sem
exceção, bem como das autoridades do Estado, o máximo empenho, eficácia e
rigor, para que a população sinta a presença da autoridade pública e assim não
se veja intimidada, assim como os próprios candidatos e suas campanhas, em
participar das eleições.
Além de ampliar e aprofundar a unidade,
cabe esperar que os responsáveis não falharão. Até quem não confia (e é também
racional não confiar) não pode proceder de outro modo. Aqui não se pode invocar
São Tomé, pois é próprio de medidas de segurança a sua não divulgação antecipada.
O silêncio, nesse caso, não é sinal de intransparência política, ou de fraqueza
institucional. A preparação das instituições para enfrentar uma tentativa de
golpe só pode ser silenciosa, se não quiser entregar o ouro ao bandido. Foi
assim no último 7 de setembro e precisa ser assim no próximo e em todos os
eventos até, durante e após as eleições. Além da firmeza das instituições e da prontidão
dos órgãos de segurança, o que reduzirá chances de êxito de um golpe ou de uma
campanha de descrédito no resultado das urnas não é a vitória de Lula nesse ou
naquele turno, mas uma vitória ampla e agregadora do conjunto das forças
democráticas. Ela pode dar-se em torno de Lula, desde que expressa em atitudes
e números condizentes com a amplitude, sem margem a dúvida, mesmo por parte da maioria
não violenta de eleitores de Bolsonaro. Garantir democracia e paz é isolar
politicamente os fanáticos, deter e punir bandos armados.
O voto útil pregado como uma aposta na
chance de um governo de esquerda ou de centro-esquerda O segundo argumento da
campanha pelo “voto útil” que desejo relativizar parte da premissa de que o
eleitorado brasileiro segue uma tendência que estaria se firmando na América do
Sul, sendo exemplares disso os recentes resultados eleitorais no Peru e na
Colômbia. Essa indicação foi feita recentemente pelo ex-deputado e ex-ministro
José Dirceu, para quem está se atingindo no continente um novo patamar de luta
contra o “Império” e o “neoliberalismo”.
Quando um político pragmático como ele carrega nas cores da ideologia é
frequente que esteja vislumbrando a força da lei da gravidade atuando a seu
favor. Aproveitar o momento torna-se, então, a diretriz. Avalia-se que a
influência objetiva de Dirceu sobre a direção do PT e o comando da campanha de
Lula é hoje próxima de zero. Mas não se pode dizer o mesmo da influência
subjetiva sobre a militância do partido, ao qual segue vinculado de modo
assertivo, mesmo depois da interrupção de sua vida pública. Isso recomenda refletir
sobre sua posição na questão sobre Lula ir ou não “ao centro”. Sua opção jamais
seria a de uma Dilma Rousseff. Pelo contrário, ele estimula a viagem, porém,
com a visão instrumental de sempre, ou seja, a ideia é obter adesão de gente de
todos os quadrantes políticos para respaldar um governo da esquerda. Voto útil
é a ferramenta ideal.
A consequência desse tipo de pragmatismo
sobre o andamento prático da campanha de Lula mostra-se quando a militância
petista – sobre a qual Dirceu fez escola e segue influindo, apesar do seu
ostracismo, como um paradigmático sujeito oculto – resiste, não a receber novos
aliados a granel (esse varejo já é pacifico), mas a pactuar no atacado da
grande política com lideranças e partidos com projeto diverso. Residem aí a fluência com que Lula pode
conversar com Renan Calheiros ou políticos do tradicional centrão sem ser
criticado pelos seus companheiros e a dificuldade do mesmo Lula para se
entender com o centro democrático, onde contam visão sobre economia, gestão do
estado e democracia política. A crença
no campo petista é de que se o eleitorado permite que uma visão “de esquerda”
prevaleça, deve-se acentuar contrastes e não buscar consensos ou mesmo convergências
pontuais sobre esses assuntos.
Além da consequência política desse modo de
pensar e agir, cabe discutir a validade da premissa de que o eleitorado
brasileiro tende à esquerda no atual contexto. Em junho último, ela encontrou
algum respaldo em pesquisa do Datafolha. Conforme uma dada escala de classificação
ideológica, chega a 49% a soma da pontuação de respostas de entrevistados
consideradas de esquerda (17%) e centro-esquerda (32%), contra 17% de centro e
33% da direita - discriminada em centro-direita (24%) e direita (9%). São
achados sem dúvida interessantes, que merecem atenção para se conhecer e
avaliar o que se pode chamar de “atitude política” dos vários segmentos da
população. Porém, não se pode deduzir comportamento eleitoral de eventuais
tendências no terreno das atitudes. A série histórica de edições dessa mesma
pesquisa do Datafolha registra que a maior taxa de brasileiros identificados
com a direita foi observada em setembro de 2014 (45%, contra 35% com a esquerda).
E, no entanto, Dilma Rousseff foi reeleita no mês seguinte. Como argutamente lembrou
um colega do Departamento de Ciência Política/UFBa, a identificação política e
partidária envolve componentes estritamente políticos e organizacionais que não
se vinculam a valores sociais. Trocando em miúdos, pessoas podem pensar como
direita ou esquerda sem terem consciência disso. Convém, portanto, ponderar que
um eleitorado a princípio receptivo a valores da esquerda não está impedido de
chancelar a direita, ou o centro. No presente, quem lidera pesquisas de
intenção de voto é Lula, não a esquerda.
Daí provém o fato de Bolsonaro ter bem mais
intenções de voto e a possibilidade de vir a obter, concretamente, mais votos
do que aqueles que teria caso o eleitor votasse guiado apenas por valores. É
por isso que nenhuma pesquisa sobre valores respeitados pelos eleitores deve
dispensar a esquerda de ter a conduta política prudente de se cercar de apoios eleitorais
os mais amplos possíveis e de, consequentemente, se dispor a governar em ampla
coalizão política. Nesse enquadramento da questão, governo de esquerda é
irrealismo e buscá-lo, num país com a complexidade do nosso, ao preço de uma
polarização equivalente às ocorridas no Peru e na Colômbia, é uma imprudência
estratégica que, num horizonte de médio prazo, põe em risco a própria
sustentação da democracia política entre nós.
Posto isso, a proposição decorrente é que
lamber as feridas de 2016 e celebrar um pacto com o centro democrático é um
cabo das tormentas que precisa ser dobrado para que Lula possa pretender uma
estabilidade política consistente para o seu virtual governo, usando a provável
vitória eleitoral para fazer, de fato, a reconstrução do país que vem sendo
prometida em sua campanha. A prudência política manda que substitua a campanha
do voto útil - que lhe dispersa as energias agregadoras - por esse procedimento
de dialogar com o centro sem querer lhe impor a lei da gravidade. E colocar o
objetivo de vencer as eleições para derrotar a onda autocrática e formar um
governo de coalizão, no lugar do de vencer as eleições no primeiro turno mesmo ao
preço de prorrogar, por mais quatro anos, a divisão radical que põe o nosso
país na ribanceira e sua política no limiar da esterilidade.
Na próxima semana o tema da coluna será
esse cabo das tormentas e as energias possíveis de mobilizar, com as atuais
campanhas de Lula, Ciro Gomes, Simone Tebet e André Janones, para que o
dobremos.
* Cientista político
e professor da UFBa
Um comentário:
Que artigo longo,tá mais pra Tratado político,rs.
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