segunda-feira, 25 de julho de 2022

Paulo Fábio Dantas Neto* - Utilidade tática e prudência estratégica: o voto “útil” em questão

Tática e estratégia são termos apropriados a uma aproximação entre política e guerra. Preferiria não os usar. Força da gravidade e astúcia da concertação seriam, a meu ver, termos melhores para representar a distinção que quero fazer entre duas orientações de sentido alternativas, postas a partidos e outros atores do campo democrático num momento eleitoral vivido em clima de alta tensão institucional. Cedo ao jargão, no título do artigo, para me fazer entender melhor, admitindo que associar política e guerra é um senso comum que faz algum sentido diante do acirramento de posições que ora assistimos.

A alternativa entre pensar no aqui e agora e prever uma situação futura não precisa ser excludente. Mas tem sido. Para constatar, basta observar a campanha do candidato líder nas pesquisas. A atração pelo horizonte imediato de vitória eleitoral não se combina facilmente com o desafio de governar um país dilacerado por perversão de instituições, sucateamento do estado e esgarçamento da sociedade.

Existe um dilema entre a intenção demonstrada por Lula de “ir ao centro” (rota talvez não necessária para vencer a eleição, mas sim para vencê-la em primeiro turno e imprescindível para reconstruir a integridade do país) e resistências - de setores petistas e à sua esquerda - a que a campanha opere essa inflexão e saia das balizas de uma frente de esquerda hegemonizada pelo PT. Antecipo exemplos do que na próxima semana comentarei com mais vagar: entre as declarações de intenção agregadora (além do passo relevante da própria formação da chapa) está a atitude ampla até aqui mantida pela campanha de Lula em Minas Gerais; a de honrar, em Pernambuco,  o acordo nacional com o PSB, apesar de ali dispor de alternativa e do fraco desempenho em pesquisas do candidato socialista que, por aquele acordo, lhe cabe apoiar; está também, se visto com boa vontade,  o ensaio de aproximação com a parte não “lulista” do MDB, mesmo feito por via remota, oblíqua e usando intermediários inadequados. Já entre os exemplos de resistência à ampliação está o iminente recuo do PT no apoio à candidatura do deputado Marcelo Freixo, no Rio, no momento em que ele amplia seu arco, incorporando o PSDB; e uma virulenta manifestação da ex-presidente Dilma Rousseff contra o ex-presidente Temer. Os contrastes, contudo, diluem-se quando os a favor e os contra unem-se na orquestração de uma forte campanha pelo voto útil em Lula, já no primeiro turno. Os argumentos da esquerda lulo-petista para alcançar a vitória em primeiro turno são abraçados por políticos de partidos fora da esquerda, que aderem à palavra de ordem, um meio para garantir lugar confortável nas primeiras filas, na campanha e no futuro governo. Tais argumentos – como já frisei algumas vezes nesta coluna – não são desprovidos de sentido e razoabilidade, porém, nem de longe ocupam o lugar de evidências incontestáveis. Menciono dois: reduzir o risco de golpe e capitalizar a maior sintonia entre a esquerda e o eleitorado, que estaria sendo detectada em pesquisas. Vou comentá-los a seguir, com intuito de contra-argumentar.

Risco de golpe e de não aceitação do resultado deve levar a voto útil em Lula no primeiro turno?

 O primeiro argumento (reduzir risco de golpe) faz-se acompanhar de um discurso que enfatiza esse risco a ponto de sugerir que estamos diante, não só de uma provável tentativa de Bolsonaro de executar o golpe (o que, a meu ver, é prognóstico realista, pois que ele tentará já é um consenso nacional, é como esperar um eclipse solar), como de uma relevante chance de consuma-lo com êxito. Conforme essa percepção, as instituições estariam sequestradas, suas lideranças acovardadas, “não fazendo nada” para detê-lo. Aí já penso que se trata de uma avaliação menos realista e mais próxima do raciocínio mecânico de que a existência de conspiração é evidência bastante para se prever que ela ditará o desfecho.

Existem evidências em contrário que saltam aos olhos sempre que arreganhos do presidente ultrapassam um limite que é móvel, mas nem por isso instável. É recorrente e crescente em amplitude o tom unitário de pronunciamentos de lideranças do estado e da sociedade civil em defesa da democracia e das eleições e em repúdio a ataques à primeira e à sabotagem das segundas. Céticos, assim como indignados por inegável justa causa, argumentam que declarações, cartas e manifestos já não bastam, é preciso punir o golpista. Concordo que já se passou da hora há muito tempo e, por isso mesmo, devemos refletir sobre se se deve fazê-lo agora. A menos de três meses do provável banimento do mito pelas urnas deve-se perguntar: será que vale a pena? Como recentemente e, a meu ver, com lucidez, opinou um comentarista de noticiário televisivo, a consumação de uma punição pelo TSE, o tratamento rápido de uma denúncia da PGR ou o acolhimento, pelo Presidente da Câmara dos Deputados, de um pedido de impeachment, seguido de rito sumário poderiam, sem prejuízo de sua justeza e legitimidade, dar ao presidente espaço para transitar melhor entre a posição de rejeitado pelo povo e de perseguido pelo “sistema”. O ponto não é dispensar essas instituições de agirem. É vital que Augusto Aras e Arthur Lira sejam instados a se somarem à defesa da legalidade e a não abrirem brecha ao golpismo. Mas as ações não precisam ter o sentido da punição urgente. Ela virá a trote, como nos EUA.

Outro ponto importante da linha argumentativa que acentua as chances de êxito de um golpe é a consideração de um provável alinhamento das forças militares a Bolsonaro, o que deveria levar o campo democrático a explicitar um chamamento ao poder civil no sentido de, além de enquadrar institucionalmente os militares, adiantar a disposição de limpar o aparelho de governo da sua exorbitante presença. Tal programa seria mais um óbice à ida de Lula ao centro porque a pauta "poder civil x poder militar" é talhada, sob medida, para uma frente de esquerda. Somada à percepção de que a eleição está ganha, ou quase, esse ponto de vista mergulha no clima de campanha eleitoral radicalizada e busca mais essa polarização para acertar contas com a "transação” da transição da década dos 80 e promover, talvez, uma “refundação” da República, através de um confronto político evitado no passado.

Penso se tratar de um equivocado desvio de foco.  Sem negar as dimensões do problema militar atual, penso que é um problema filho de uma conjuntura recente, surgido com a ascensão de Bolsonaro, que trouxe o fato nada prosaico do emprego de milhares de militares no governo ocupando cargos civis. Esse parece ser o fator determinante das recentes manifestações corporativas que certo viés analítico pinta com cores ideológicas como mais uma evidência de golpe. Segundo, que um problema político dessa natureza e magnitude só poderá ser bem encarado a médio prazo, por um Congresso previdente e um governo eleito, com amplo respaldo político, da direita à esquerda. Colocar esse assunto em destaque na pauta eleitoral é caminho curto para dividir uma frente que mal se formou.

Nos últimos dias circulou, nos meios de comunicação, a informação de que militares da ativa teriam procurado o TSE para declarar a disposição das forças armadas de, sendo convocadas, garantirem a segurança das eleições. Teriam afirmado também seu desacordo com a iniciativa do presidente de reunir embaixadores para denunciar suspeita em relação ao sistema eleitoral. Atribuir crédito e sentido a informações tranquilizadoras de não alinhamento das cúpulas das forças armadas a uma conspiração golpista não leva a incorrer em crença poliânica. Mesmo afastado o risco militar, a lista de preocupações razoáveis é extensa. A infiltração do bolsonarismo entre oficiais de média patente segue obscura. Do mesmo modo a situação nas polícias militares, em cujos quartéis consta haver intensa doutrinação ideológica, além das iniciativas da extrema-direita de se articular com seus interesses corporativos.

O quadro complexo requer enfrentamento unitário e o ponto mais urgente e fundamental é combater e barrar a violência política nas eleições.  A sociedade civil já se movimenta nessa direção e deve ser cobrado de todas as candidaturas, sem exceção, bem como das autoridades do Estado, o máximo empenho, eficácia e rigor, para que a população sinta a presença da autoridade pública e assim não se veja intimidada, assim como os próprios candidatos e suas campanhas, em participar das eleições.

Além de ampliar e aprofundar a unidade, cabe esperar que os responsáveis não falharão. Até quem não confia (e é também racional não confiar) não pode proceder de outro modo. Aqui não se pode invocar São Tomé, pois é próprio de medidas de segurança a sua não divulgação antecipada. O silêncio, nesse caso, não é sinal de intransparência política, ou de fraqueza institucional. A preparação das instituições para enfrentar uma tentativa de golpe só pode ser silenciosa, se não quiser entregar o ouro ao bandido. Foi assim no último 7 de setembro e precisa ser assim no próximo e em todos os eventos até, durante e após as eleições. Além da firmeza das instituições e da prontidão dos órgãos de segurança, o que reduzirá chances de êxito de um golpe ou de uma campanha de descrédito no resultado das urnas não é a vitória de Lula nesse ou naquele turno, mas uma vitória ampla e agregadora do conjunto das forças democráticas. Ela pode dar-se em torno de Lula, desde que expressa em atitudes e números condizentes com a amplitude, sem margem a dúvida, mesmo por parte da maioria não violenta de eleitores de Bolsonaro. Garantir democracia e paz é isolar politicamente os fanáticos, deter e punir bandos armados.

O voto útil pregado como uma aposta na chance de um governo de esquerda ou de centro-esquerda O segundo argumento da campanha pelo “voto útil” que desejo relativizar parte da premissa de que o eleitorado brasileiro segue uma tendência que estaria se firmando na América do Sul, sendo exemplares disso os recentes resultados eleitorais no Peru e na Colômbia. Essa indicação foi feita recentemente pelo ex-deputado e ex-ministro José Dirceu, para quem está se atingindo no continente um novo patamar de luta contra o “Império” e o “neoliberalismo”.  Quando um político pragmático como ele carrega nas cores da ideologia é frequente que esteja vislumbrando a força da lei da gravidade atuando a seu favor. Aproveitar o momento torna-se, então, a diretriz. Avalia-se que a influência objetiva de Dirceu sobre a direção do PT e o comando da campanha de Lula é hoje próxima de zero. Mas não se pode dizer o mesmo da influência subjetiva sobre a militância do partido, ao qual segue vinculado de modo assertivo, mesmo depois da interrupção de sua vida pública. Isso recomenda refletir sobre sua posição na questão sobre Lula ir ou não “ao centro”. Sua opção jamais seria a de uma Dilma Rousseff. Pelo contrário, ele estimula a viagem, porém, com a visão instrumental de sempre, ou seja, a ideia é obter adesão de gente de todos os quadrantes políticos para respaldar um governo da esquerda. Voto útil é a ferramenta ideal.

A consequência desse tipo de pragmatismo sobre o andamento prático da campanha de Lula mostra-se quando a militância petista – sobre a qual Dirceu fez escola e segue influindo, apesar do seu ostracismo, como um paradigmático sujeito oculto – resiste, não a receber novos aliados a granel (esse varejo já é pacifico), mas a pactuar no atacado da grande política com lideranças e partidos com projeto diverso.  Residem aí a fluência com que Lula pode conversar com Renan Calheiros ou políticos do tradicional centrão sem ser criticado pelos seus companheiros e a dificuldade do mesmo Lula para se entender com o centro democrático, onde contam visão sobre economia, gestão do estado e democracia política.  A crença no campo petista é de que se o eleitorado permite que uma visão “de esquerda” prevaleça, deve-se acentuar contrastes e não buscar consensos ou mesmo convergências pontuais sobre esses assuntos.

Além da consequência política desse modo de pensar e agir, cabe discutir a validade da premissa de que o eleitorado brasileiro tende à esquerda no atual contexto. Em junho último, ela encontrou algum respaldo em pesquisa do Datafolha.  Conforme uma dada escala de classificação ideológica, chega a 49% a soma da pontuação de respostas de entrevistados consideradas de esquerda (17%) e centro-esquerda (32%), contra 17% de centro e 33% da direita - discriminada em centro-direita (24%) e direita (9%). São achados sem dúvida interessantes, que merecem atenção para se conhecer e avaliar o que se pode chamar de “atitude política” dos vários segmentos da população. Porém, não se pode deduzir comportamento eleitoral de eventuais tendências no terreno das atitudes. A série histórica de edições dessa mesma pesquisa do Datafolha registra que a maior taxa de brasileiros identificados com a direita foi observada em setembro de 2014 (45%, contra 35% com a esquerda). E, no entanto, Dilma Rousseff foi reeleita no mês seguinte. Como argutamente lembrou um colega do Departamento de Ciência Política/UFBa, a identificação política e partidária envolve componentes estritamente políticos e organizacionais que não se vinculam a valores sociais. Trocando em miúdos, pessoas podem pensar como direita ou esquerda sem terem consciência disso. Convém, portanto, ponderar que um eleitorado a princípio receptivo a valores da esquerda não está impedido de chancelar a direita, ou o centro. No presente, quem lidera pesquisas de intenção de voto é Lula, não a esquerda.

Daí provém o fato de Bolsonaro ter bem mais intenções de voto e a possibilidade de vir a obter, concretamente, mais votos do que aqueles que teria caso o eleitor votasse guiado apenas por valores. É por isso que nenhuma pesquisa sobre valores respeitados pelos eleitores deve dispensar a esquerda de ter a conduta política prudente de se cercar de apoios eleitorais os mais amplos possíveis e de, consequentemente, se dispor a governar em ampla coalizão política. Nesse enquadramento da questão, governo de esquerda é irrealismo e buscá-lo, num país com a complexidade do nosso, ao preço de uma polarização equivalente às ocorridas no Peru e na Colômbia, é uma imprudência estratégica que, num horizonte de médio prazo, põe em risco a própria sustentação da democracia política entre nós.  

Posto isso, a proposição decorrente é que lamber as feridas de 2016 e celebrar um pacto com o centro democrático é um cabo das tormentas que precisa ser dobrado para que Lula possa pretender uma estabilidade política consistente para o seu virtual governo, usando a provável vitória eleitoral para fazer, de fato, a reconstrução do país que vem sendo prometida em sua campanha. A prudência política manda que substitua a campanha do voto útil - que lhe dispersa as energias agregadoras - por esse procedimento de dialogar com o centro sem querer lhe impor a lei da gravidade. E colocar o objetivo de vencer as eleições para derrotar a onda autocrática e formar um governo de coalizão, no lugar do de vencer as eleições no primeiro turno mesmo ao preço de prorrogar, por mais quatro anos, a divisão radical que põe o nosso país na ribanceira e sua política no limiar da esterilidade.

Na próxima semana o tema da coluna será esse cabo das tormentas e as energias possíveis de mobilizar, com as atuais campanhas de Lula, Ciro Gomes, Simone Tebet e André Janones, para que o dobremos.  

* Cientista político e professor da UFBa

Um comentário:

ADEMAR AMANCIO disse...

Que artigo longo,tá mais pra Tratado político,rs.