quinta-feira, 25 de agosto de 2022

O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

Editoriais / Opiniões

Sob Bolsonaro, abertura comercial ficou na promessa

O Globo

Ao adotar um “liberalismo whey”, governo se viu refém do lobby dos ineficientes que só querem proteção

Jair Bolsonaro fez campanha em 2018 apresentando-se como um liberal. No programa de governo havia uma defesa enfática da abertura comercial: “A evidência empírica é robusta: países mais abertos são também mais ricos”. Correto. O que fez no governo? Muito pouco, se algo. Na semana passada, ele festejou ao anunciar a redução dos impostos de importação de suplementos alimentares, como whey protein, acessórios para motociclistas e praticantes de asa-delta. As medidas, disse ele, favorecem o “pessoal que gosta de malhar”. Esqueceu-se, porém, de olhar para o “pessoal que gosta de produzir”.

O Brasil tem uma das economias mais fechadas do mundo. Sem poder importar componentes melhores e mais baratos que os fabricados localmente, o país produz e exporta menos do que poderia. No mercado interno, pagamos mais por produtos piores. Nossa eficiência é baixa, a produtividade patina, e a geração de renda e de empregos pena para deslanchar. Persistem a miséria e a pobreza que tanto afligem a população.

Uma simulação feita pela Secretaria Especial de Assuntos Estratégicos (Seae) da Presidência ainda no governo Michel Temer estimou que uma abertura comercial ampla, zerando alíquotas não só do whey ou das jaquetas de moto, reduziria os preços de serviços e produtos em cerca de 5% ao largo de toda a economia. Nos setores mais protegidos, como maquinário ou têxtil, a queda ficaria entre 6% e 16%. Depois da abertura, 75% dos setores da economia experimentariam expansão do emprego. Haveria, claro, perdedores. Isso exigiria investimentos em requalificação de mão de obra. O saldo, porém, seria amplamente positivo.

Para promover uma abertura dessa envergadura, zerando alíquotas sobre milhares de produtos, seria preciso vencer o lobby de quem se beneficia das portas fechadas e investe nos discursos vazios em defesa da indústria nacional. A proteção indiscriminada não funciona há muito tempo, como mostram os dados de exportação de manufaturados, a improdutividade crônica e a desindustrialização progressiva.

A perda de peso da indústria não é exclusividade brasileira. O que caracteriza a indústria nacional é a produtividade sofrível, incapaz de permitir competir em escala global. A indústria ganharia muito se pudesse importar máquinas, equipamentos, produtos de telecomunicações e informática sem pagar tarifas extorsivas. O estudo da Seae deixou claro que isenções pontuais, obtidas à custa de lobby e medidas excepcionais, são um remendo. A melhor solução para a improdutividade é a abertura, uma espécie de incentivo para a “indústria que gosta de malhar”.

Bolsonaro, infelizmente, falhou nesse front. Houve, é verdade, outras reduções de tarifa além do surto recente de “liberalismo whey”. No cômputo geral, porém, foram insuficientes.“Uma parte dos cortes tarifários tem duração até o final de 2023. A justificativa foi aliviar os impactos na inflação da pandemia e da guerra na Ucrânia”, diz Sandra Rios, diretora do Centro de Estudos de Integração e Desenvolvimento. Em vez de equipamentos para os frequentadores de suas “motociatas”, Bolsonaro deveria ter pensado no país e realizado uma abertura mais ampla. Os ganhos para o Brasil teriam sido bem maiores.

Devastação no Cerrado ameaça exportação brasileira de soja

O Globo

Associação do setor quer antecipar para 2026 prazo a partir do qual não comprará grão de áreas desmatadas

O presidente eleito em outubro terá de enfrentar ameaças à posição confortável do país no mercado mundial de grãos. Antes mesmo de assumir em 2019, o presidente Jair Bolsonaro foi alertado por emissários de grandes exportadores agrícolas sobre o risco de retaliações no comércio internacional se a preservação ambiental não fosse levada a sério. Como não foi, represálias começam a surgir.

A última veio da associação global Tropical Forest Alliance na forma de uma sugestão, depois aceita pelo Fórum de Commodities Agrícolas. Ela antecipa de 2028 para 2025 a meta brasileira de eliminar o desmatamento ilegal no Cerrado. Isso prejudicaria a exportação brasileira da soja, que se tornaria alvo de boicote por incluir a produção de áreas devastadas ilegalmente.

A proposta foi uma resposta ao pedido do governo americano por iniciativas para reduzir o aquecimento global, feito na COP 26, a conferência das Nações Unidas sobre o meio ambiente em novembro passado. A retaliação ao Brasil pela destruição do Cerrado estará na pauta da COP 27, prevista para o final do ano no Egito. Nada impede que as grandes operadoras do Fórum de Commodities deixem de comprar soja de áreas de desmatamento do Cerrado a partir de janeiro de 2026, independentemente do que seja decidido no Egito.

Segundo maior produtor e exportador mundial de soja, superado apenas pelos Estados Unidos, o Brasil deverá exportar neste ano 75 milhões de toneladas do grão, pouco menos que no ano passado, devido à quebra de safra. Como os efeitos da invasão da Ucrânia pela Rússia elevaram o preço da soja em quase 30%, estima-se que, apesar da queda, ela renderá US$ 43,6 bilhões à balança comercial, voltando a ser o maior item na pauta de exportações brasileiras.

Metade dessas exportações sai do Cerrado, região na mira dos ambientalistas. Distribuído por dez estados, o bioma já perdeu quase metade da vegetação nativa. Será devastado completamente se não houver ações na área pública que impeçam a destruição e as reações do mercado decorrentes de pressões da opinião pública mundial.

A Tropical Forest Alliance há tempos acompanha a degradação. Na COP 21, em 2015, obteve uma declaração do então governador de Mato Grosso, Pedro Taques, comprometendo-se a acabar com o desmatamento ilegal até 2020. O tempo passou, o advogado Pedro Taques, hoje filiado ao Solidariedade, foi sucedido por Mauro Mendes (União Brasil), e Mato Grosso devastou 803 dos 8.531 quilômetros quadrados de vegetação que o Cerrado perdeu entre agosto de 2020 e julho de 2021 (equivalente a seis vezes a superfície da cidade de São Paulo).

Diante disso, o Itamaraty terá trabalho no próximo governo para defender a posição brasileira contra os boicotes que poderão ocorrer por causa do descaso com o meio ambiente. A mata é acompanhada por satélites a todo instante. Não há como esconder.

Limites da Justiça

Folha de S. Paulo

Sem base clara, decisão de Moraes contra empresários dá argumento a Bolsonaro

A ruidosa operação deflagrada pela Polícia Federal sobre empresários que opinaram a favor de um golpe de Estado num grupo de WhatsApp alvoroçou a campanha eleitoral, acirrou ânimos e ofereceu ao presidente Jair Bolsonaro (PL) uma oportunidade para renovar seus argumentos contra decisões que vêm sendo tomadas pelo ministro Alexandre de Moraes.

O magistrado conduz inquérito no Supremo Tribunal Federal para apurar a atividade de milícias digitais e a existência de uma suposta organização criminosa responsável por disseminação de fake news e ataques às instituições democráticas. Bolsonaristas alegam que a investigação carece de fundamento constitucional e fere a liberdade de expressão.

Em que pese a controvérsia, o inquérito enquadra-se nas prerrogativas do STF e justifica-se diante das circunstâncias que levaram à sua criação: organização de manifestações golpistas, divulgação de discurso de ódio e difusão de informações falsas, além de atos de violência orquestrados contra o Supremo e seus ministros.

Tais iniciativas revelam-se ainda mais graves ao se constatar que não são isoladas, uma vez que encontram eco e incentivo no discurso golpista do presidente da República e seu entorno. Bolsonaro jamais escondeu pendores autoritários e simpatias pela ditadura militar.

Eleito, deu provas suficientes nos últimos anos de desprezo pelo arcabouço da democracia, o qual não se cansa de tentar solapar.

A atuação severa do STF —e particularmente de Moraes— na defesa do Estado de Direito e na dissuasão de investidas de tom golpista é valiosa e merece elogios.

Entretanto é preciso, em quaisquer circunstâncias, evitar que se borrem os limites entre a resistência intransigente contra atos antidemocráticos e o cerceamento à liberdade de expressão.

Esta Folha defende uma concepção ampla e vigorosa do direito à manifestação de opinião. Conversas em que se ventilam simpatias golpistas, como no caso dos empresários bolsonaristas, são odiosas, mas não devem ser reprimidas como se fossem prática de crime —o que de fato não são.

Nesse sentido, a operação autorizada por Moraes, dentro do que foi dado a se conhecer acerca de suas motivações, deixou grande margem para dúvidas —e deu a Bolsonaro argumentos para apresentar-se como vítima.

É plausível que o magistrado, atual presidente do Tribunal Superior Eleitoral, tenha conhecimento de fatos objetivos, como eventuais articulações para atacar a ordem democrática, que justifiquem as medidas impostas aos envolvidos. É o que a sociedade, por todos os motivos, tem urgência em saber.

Ainda o rol da ANS

Folha de S. Paulo

Congresso vai encarecer planos de saúde se deixar terapias a critério de juízes

Parlamentares são rápidos quando se trata de aprovar projetos que eles julgam capazes de lhes renderem dividendos eleitorais.

Em junho, o Superior Tribunal de Justiça decidiu que o rol de procedimentos listados pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) para os planos privados é taxativo, não apenas indicativo. Em 13 de julho, deputados apresentaram texto que anula o entendimento do STJ, sacramentando em lei o caráter exemplificativo da lista.

Em 2 de agosto, foi requerida urgência para a tramitação do diploma, aprovado no dia seguinte em três comissões e no plenário da Câmara. Mais 24 horas e a propositura já estava no Senado, onde deve ser votada em breve.

Não deveria haver dúvida de que considerar o rol taxativo é a abordagem mais racional. Ela permite lidar melhor com dois problemas —efetividade e economicidade dos procedimentos e terapias.

Quando a lista do que está coberto pelo plano passa antes por uma comissão de especialistas, os charlatanismos mais acintosos tendem a ser eliminados. A pandemia mostrou que não são poucos os médicos dispostos a prescrever drogas sem nenhum amparo da ciência.

O projeto aprovado na Câmara até exige que os procedimentos a ser pagos pelos planos tenham amparo em evidências. Mas, como não oferece uma fórmula inquestionável para definir o que é científico ou não, fica ainda muito aquém de resolver o assunto.

O problema da economicidade é ainda mais complexo. É disseminada a ilusão de que, quando um paciente tem tratamento custeado pela operadora, o montante gasto sai dos lucros dos capitalistas. Na realidade, porém, é o conjunto de usuários que, com suas mensalidades, paga por todos os sinistros.

Isso significa que tudo aquilo que é incluído na cobertura deveria idealmente passar por uma análise de custo-benefício. Se o rol é taxativo, a decisão caberá a especialistas da ANS; se indicativo, caberá aos juízes, que raramente terão a formação adequada.

A judicialização do tema introduz ainda um elemento de iniquidade, já que são as famílias mais ricas que costumam recorrer à Justiça.

Se os parlamentares querem favorecer os usuários, o melhor seria criar regras para evitar que a lista da ANS fique congelada para reduzir os custos dos planos. Ela deve ser sempre atualizada, proporcionando a todos a melhor combinação de eficácia e custo.

Defesa da democracia deve respeitar a lei

O Estado de S. Paulo

O caso dos empresários bolsonaristas recorda a importância de o STF respeitar os limites de sua competência e dar a máxima publicidade possível aos seus atos. Sigilo é exceção

Em março de 2019, quando o então presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Dias Toffoli, anunciou a abertura de um inquérito criminal para apurar fake news e ameaças envolvendo o STF, este jornal defendeu a decisão, lembrando a competência do STF prevista no Regimento Interno, bem como o dever do presidente do Supremo de velar pelas prerrogativas da Corte. “O ambiente de liberdade assegurado pela Constituição não pode ser entendido como respaldo para ataques pessoais, ameaças ou difusão de notícias mentirosas”, dissemos neste espaço (O sigilo do STF, dia 16/3/2019). Ao mesmo tempo, no entanto, criticamos o caráter sigiloso do inquérito, pois nenhum motivo para esse sigilo havia sido apresentado.

Desde então, aquela investigação e outras relacionadas ao livre funcionamento das instituições democráticas ganharam especial relevância. As ameaças contra o Poder Judiciário e o regime democrático cresceram. Em várias ocasiões, houve envolvimento direto do presidente da República, de seus filhos e de ministros de Estado. Um episódio ocorrido em 2020 escancarou a desfaçatez do bolsonarismo. Ao se tornar investigado no STF, Abraham Weintraub, então ministro da Educação, simplesmente fugiu do País. Enquanto isso, o Congresso e a Procuradoria-Geral da República estiveram rigorosamente indiferentes ao tema. Nesse cenário de omissões, o Supremo teve papel especial na defesa da Constituição.

É de justiça reconhecer: o País tem muito a agradecer pela atuação do STF nos últimos anos. Sem se curvar a conveniências ou a pressões políticas, a Corte cumpriu seu dever de defender o Estado Democrático de Direito. De toda forma, por óbvio, esse reconhecimento não significa aplaudir tudo o que foi feito ou decidido pela Corte. O próprio Supremo reviu várias decisões suas no período, como a censura imposta aos sites da revista Crusoé e de O Antagonista em abril de 2019. Na ocasião, dissemos neste espaço que “não cabe à Justiça determinar o que é e o que não é verdadeiro, ordenando retirar – ordenando censurar, repita-se – o que considera que não corresponde aos fatos” (O STF decreta censura, 17/4/2019). O ministro Alexandre de Moraes revogou a decisão restritiva.

Nesta semana, a Polícia Federal, com a autorização do ministro Alexandre de Moraes, cumpriu mandados de busca e apreensão em endereços de oito empresários bolsonaristas que, num grupo de WhatsApp, discutiam a hipótese de um golpe de Estado caso o petista Lula da Silva seja eleito presidente. Os sigilos bancário e telemático dos investigados foram quebrados e as contas nas redes sociais, bloqueadas. A ação suscitou diversos questionamentos e críticas.

Por ser uma investigação sigilosa, desconhece-se a motivação da decisão, tampouco suas circunstâncias específicas. De toda forma, vale lembrar que o Estado tem o dever de investigar indícios de crimes – a princípio, tal atividade não representa nenhuma violação das liberdades e garantias fundamentais – e que deve fazê-lo dentro da lei. Não cabem exceções. Sobre isso, um aspecto especialmente importante é o respeito à competência jurisdicional. Um dos grandes equívocos no âmbito da Operação Lava Jato – que depois suscitou diversas nulidades, algumas delas reconhecidas pelo próprio STF – foi uma compreensão especialmente ampla, muito além do que a lei determina, das competências da 13.ª Vara Federal de Curitiba. Não há razão para o STF incorrer no mesmo erro, atribuindo a si a competência para lidar com todas as ocorrências relativas à Lei de Defesa do Estado Democrático de Direito.

A experiência da Lava Jato oferece outra importante lição sobre cumprimento da lei. Inquérito policial deve ter como objetivo a apuração de fato determinado e por prazo certo. Não é uma espécie de escudo de proteção a ser renovado indefinidamente enquanto houver risco de novos crimes.

Precisamente por ter sido – e continuar sendo – essencial na defesa do Estado Democrático de Direito, o STF deve ser o primeiro a zelar por sua autoridade. O caminho é a observância estrita da lei, motivando devidamente as decisões e restringindo ao máximo os casos de sigilo. A regra é a publicidade

A herança maldita de R$ 430 bilhões

O Estado de S. Paulo

Medido em estudo da FGV, eis o tamanho do descalabro fiscal que Bolsonaro deixará para próximo governo; com isso, ganha força necessidade de licença temporária para aumentar gastos

O descalabro fiscal que o governo Jair Bolsonaro deixará como herança para quem vencer as eleições pode atingir inacreditáveis R$ 430 bilhões em 2023, o equivalente a 4,3% do Produto Interno Bruto (PIB). A estimativa foi calculada pelos economistas Braulio Borges e Manoel Pires e consta da edição de agosto do Boletim Macro do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV Ibre). O número inclui despesas não cobertas no Orçamento e que colocam em dúvida o cumprimento do teto de gastos; propostas que reduzem a arrecadação e afetam o superávit primário; eventos com impacto financeiro negativo e que pioram o déficit nominal; e incertezas com o potencial de produzir impactos relevantes caso sejam materializadas. A manutenção do piso do Auxílio Brasil em R$ 600, o reajuste dos salários do funcionalismo público e a revisão das despesas discricionárias devem ultrapassar R$ 120 bilhões, valor para o qual não há cobertura e que exigirá uma sétima mudança no teto e na Constituição para que seja viabilizado. Tudo indica que o enterro do atual arcabouço fiscal é uma questão de tempo, independentemente do presidente que vier a ser eleito.

Nesse contexto, tem ganhado força a tese segundo a qual será necessário permitir uma licença temporária para aumentar o gasto público no ano que vem enquanto a equipe do futuro presidente elabora um novo regime fiscal, um entendimento que tem reverberado mesmo entre economistas que não costumam concordar em praticamente nada. Se há divergências a respeito da âncora a ser adotada, não restam dúvidas de que o teto deixou de servir como uma referência de austeridade para as contas nacionais. Eis um legado positivo – e por isso mesmo inesperado – gerado pelo atual governo: seu ímpeto destrutivo extrapolou todos os limites, a ponto de unir o País na busca de consensos para tirá-lo do buraco.

Como mostrou o Estadão, representantes de bancos e de fundos de investimento estão dispostos a aceitar uma ampliação do gasto público de até R$ 70 bilhões em 2023. O “Grupo dos Seis”, formado pelos economistas Bernard Appy, Pérsio Arida, Francisco Gaetani e Marcelo Medeiros, pelo advogado Carlos Ari Sundfeld e pelo cientista político Sérgio Fausto, sugeriu algo semelhante, mas limitado a R$ 100 bilhões, o equivalente a cerca de 1% do PIB. Técnicos do Tesouro Nacional propuseram a adoção de um regime de metas para a dívida bruta, a exemplo do sistema de bandas inflacionárias que orienta o trabalho do Comitê de Política Monetária (Copom) do Banco Central (BC). Já o ex-ministro da Fazenda Nelson Barbosa defendeu a definição de uma meta para o crescimento real do gasto primário – em vez de fixar um objetivo para o saldo entre receitas e despesas, excluídos os juros da dívida. Independentemente da âncora que vier a ser escolhida, fato é que ela precisa sinalizar um compromisso verdadeiro com a credibilidade fiscal no médio e longo prazos. O boletim da FGV Ibre faz um alerta: “Se esse for o caminho a ser seguido, é importante que se chegue a um bom acordo político porque o cenário de juros e inflação ainda requer muito cuidado”.

Um debate sério sobre a âncora fiscal merece ser tratado com prioridade na campanha eleitoral. Adotar políticas públicas que proporcionem dignidade e uma porta de saída a milhões de famílias vulneráveis e que garantam qualidade para a educação e a saúde passa necessariamente pelo resgate da responsabilidade fiscal, sem a qual o financiamento dessas ações se torna impossível. Um aspecto a ser considerado nas discussões é a construção de um arcabouço perene, que possa ser seguido pelo governo eleito em outubro e pelos que vierem a suceder-lhe no futuro, e que simbolize o abandono de manobras contábeis que não enganam ninguém. Superávits primários pontuais, gerados a partir de receitas extraordinárias, de calote nos precatórios e do efeito da inflação na arrecadação, não têm nenhum impacto na redução dos juros. Produzir uma deflação temporária e concentrada em preços administrados não convence nem o eleitor nem o mercado.

Queda da inflação não chega a todos

O Estado de S. Paulo

Queda de 0,73% do IPCA-15 de agosto é a maior desde 1991, mas a alimentação, que pesa no bolso dos pobres, subiu 1,24%

Seria bom se todos os brasileiros pudessem comemorar sem restrições, como certamente estão fazendo o governo e seu chefe, a nova queda da inflação apontada pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O IPCA-15 (que afere a variação dos preços no período de 30 dias encerrado no dia 15) de agosto registrou queda de 0,73%, no recuo mais acentuado para o período em toda a série iniciada em 1991. A redução teve entre os principais fatores a queda do preço da gasolina, da conta de luz e das passagens aéreas. Mas o preço da comida continua a subir.

Esse resultado mostra a eficácia das pressões políticas do governo e, particularmente, do presidente Jair Bolsonaro sobre outros entes ligados ao setor público, como a Petrobras e os governos estaduais, para forçar a redução do preço dos combustíveis e da energia elétrica. Esses itens subiam aceleradamente por diversas razões e, por seu peso na composição do IPCA, estavam entre os que mais pressionavam a inflação, cuja alta coloca em risco o projeto de reeleição de Bolsonaro.

No IPCA-15 de agosto, a gasolina ficou 16,86% mais barata – em boa parte pela mudança dos preços internacionais –, o que contribuiu decisivamente para o recuo médio de 5,24% do grupo Transportes. Outro item do grupo Transportes que apresentou forte redução foi o preço da passagem aérea, que recuou 12,22%. Com redução de 3,29%, por causa da redução do ICMS (tributo de natureza estadual), a tarifa de energia elétrica fez o grupo Habitação do IPCA ficar 0,37% mais barato.

Dos preços que mais contribuíram para a queda do IPCA-15 em agosto, apenas o da energia elétrica teve impacto sobre o orçamento da maioria da população. É difícil imaginar como a redução do preço da passagem aérea possa beneficiar a família do trabalhador que mora distante do local de trabalho e precisa se deslocar a pé ou por meio de transporte público. Também a expressiva redução do preço da gasolina deve ter tido pouco impacto no orçamento dessa família.

Dos nove grupos que compõem o IPCA, seis tiveram alta de preço no IPCA-15. Os gastos com Alimentação e Bebida subiram 1,12%. A alimentação no domicílio ficou 1,24% mais cara. Este é um dos principais componentes da inflação das famílias de renda mais baixa. A inflação dessas famílias, por isso, é diferente da inflação de outras classes de renda. As que gastam mais com gasolina e passagem aérea tiveram em agosto variação média de preços menos acentuada do que a enfrentada pelas demais famílias.

A inflação acumulada em 12 meses vem se reduzindo por causa da deflação observada agora, mas o problema está longe de ter sido resolvido. Mesmo as projeções mais otimistas para a inflação em 2022, agora em torno de 6,5%, estão muito acima da meta de 3,5% fixada para este ano. Por isso, o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, avalia com cautela a trajetória do IPCA. Ele não vê motivos para celebração e adverte que “ainda há muito trabalho a fazer”.

Próximo governo terá de encarar ajuste fiscal relevante

Valor Econômico

Há mais fragilidade fiscal do que a existência de um superávit fiscal minguado deixa entrever

O governo Bolsonaro deixará uma herança maldita nas contas públicas para seu sucessor - ou para si próprio, se reeleito. Há contas adicionais pendentes de até R$ 430 bilhões, ou 4,2% do PIB, que podem vencer no ano que vem, estimam os economistas Manoel Pires e Bráulio Borges no Boletim Macro, do FGV Ibre. O estudo não aponta a origem dos fatores que pioraram as contas públicas, mas eles podem ser atribuídos em sua quase totalidade aos gastos e/ou renúncia de receitas destinados a reeleger o presidente da República.

O ministro da Economia, Paulo Guedes, assumiu o cargo em 2019 prometendo zerar o déficit público em um ano. Era bravata, e não foi a única contada por ele. Este ano o governo pode fechar as contas com um pequeno superávit primário. Mas, longe de se estar a caminho do equilíbrio, há um grande desequilíbrio potencial encoberto, provocado por uma política econômica voltada para fins eleitorais.

O governo vive de imediato um dilema fiscal provocado pela intemperança do presidente. Bolsonaro nunca pensou em criar programas sociais - ao contrário, ironizava os existentes. Chegou o período eleitoral e, querendo repetir a melhoria de seus péssimos índices de popularidade durante a pandemia com a adoção do auxílio emergencial a 68 milhões de brasileiros, resolveu recorrer ao Auxílio Brasil, um arremedo desvirtuado e turbinado do bem-sucedido Bolsa Família. A média de R$ 200 do programa anterior subiu para R$ 400 e depois, para R$ 600. O intuito eleitoral ficou evidente quando fixou a data para por fim ao valor extra: 31 de dezembro.

O presidente, porém, largou muito atrás na corrida eleitoral e continua distante do favorito, o ex-presidente Lula. Bolsonaro prometeu manter os R$ 600 se ganhar a eleição, assim como Lula. Com um detalhe: não há dinheiro para isso. No cargo, Bolsonaro terá de sancionar um orçamento para o próximo presidente, mas a conta, obedecendo o teto de gastos, é difícil de fechar.

Mesmo para criar o Auxílio Brasil e aumentá-lo, foi preciso destruir a prestações o teto de gastos. Para criar o auxílio com o valor de R$ 400, o governo conseguiu, com apoio do Centrão, parceiro na empreitada eleitoral, inscrever o calote dos precatórios na Constituição e liberar R$ 112 bilhões extra-teto, metade dos quais para o programa social. Para elevá-lo a R$ 600, foi decretado estado de emergência, com novo rombo no teto de R$ 42 bilhões. A conta do programa em 2023 é de cerca de R$ 150 bilhões. Os gastos com o Bolsa família giravam em torno de R$ 35 bilhões.

Quando o teto de gastos foi criado, havia a esperança de que ele obrigasse o Legislativo e Executivo a discutirem a fundo as prioridades das despesas públicas. Desejo vão. Com a amarra nas despesas, tratou-se de reduzir as receitas com benesses. No vale tudo eleitoral de agora, as duas coisas ocorreram: redução de receitas e aumento de gastos.

As agruras fiscais de 2023, pelos cálculos dos economistas do FGV Ibre, têm várias naturezas. Afetam diretamente o teto de gastos, em primeiro lugar, o aumento do Auxilio Brasil, seguido do reajuste do funcionalismo público quase inevitável. Ambos, segundo estimativas extra-oficiais do governo, comprimiriam as despesas de custeio do Estado para algo em torno de R$ 90 bilhões ou menos, o que colocaria o aparelho de Estado perto do shutdown. Para Pires e Borges, essa conta é de 1,2% do PIB, ou mais de R$ 120 bilhões.

A redução de receitas, que abala o resultado primário, mas não o teto, pode chegar a 0,8% do PIB, segundo os economistas. Na conta entra a redução dos impostos sobre combustíveis (R$ 62 bilhões) e, se levada adiante, a correção da tabela do IR de pessoas físicas, com mais R$ 25 bilhões.

A conta vai mais longe. Com a redução do ICMS dos combustíveis nos Estados, eles conseguiram no STF deixar de pagar dívidas, reduzindo receitas da União quando ela se vê diante de uma conta maior de juros, elevando o déficit nominal. Essa fatura, segundo Pires e Borges, é da ordem de R$ 77 bilhões, ou 0,7% do PIB. Mas há ainda outra, como a compensação da União aos Estados pelo corte de impostos, estimada em R$ 144 bilhões, ou 1,4% do PIB.

Todos esses impactos não se abaterão sobre as contas públicas ao mesmo tempo e alguns podem até não ocorrer em 2023. No entanto, são a demonstração concreta de que há mais fragilidade fiscal do que a existência de um superávit fiscal minguado, fruto de um aumento excepcional de arrecadação no ano corrente, deixa entrever.

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