Editoriais / Opiniões
Sob Bolsonaro, abertura comercial ficou na
promessa
O Globo
Ao adotar um “liberalismo whey”, governo se
viu refém do lobby dos ineficientes que só querem proteção
Jair Bolsonaro fez campanha em 2018
apresentando-se como um liberal. No programa de governo havia uma defesa
enfática da abertura comercial: “A evidência empírica é robusta: países mais
abertos são também mais ricos”. Correto. O que fez no governo? Muito pouco, se
algo. Na semana passada, ele festejou ao anunciar a
redução dos impostos de importação de suplementos alimentares, como whey
protein, acessórios para motociclistas e praticantes de asa-delta.
As medidas, disse ele, favorecem o “pessoal que gosta de malhar”. Esqueceu-se,
porém, de olhar para o “pessoal que gosta de produzir”.
O Brasil tem uma das economias mais fechadas do mundo. Sem poder importar componentes melhores e mais baratos que os fabricados localmente, o país produz e exporta menos do que poderia. No mercado interno, pagamos mais por produtos piores. Nossa eficiência é baixa, a produtividade patina, e a geração de renda e de empregos pena para deslanchar. Persistem a miséria e a pobreza que tanto afligem a população.
Uma simulação feita pela Secretaria
Especial de Assuntos Estratégicos (Seae) da Presidência ainda no governo Michel
Temer estimou que uma abertura comercial ampla, zerando alíquotas não só do
whey ou das jaquetas de moto, reduziria os preços de serviços e produtos em
cerca de 5% ao largo de toda a economia. Nos setores mais protegidos, como
maquinário ou têxtil, a queda ficaria entre 6% e 16%. Depois da abertura, 75%
dos setores da economia experimentariam expansão do emprego. Haveria, claro,
perdedores. Isso exigiria investimentos em requalificação de mão de obra. O
saldo, porém, seria amplamente positivo.
Para promover uma abertura dessa
envergadura, zerando alíquotas sobre milhares de produtos, seria preciso vencer
o lobby de quem se beneficia das portas fechadas e investe nos discursos vazios
em defesa da indústria nacional. A proteção indiscriminada não funciona há
muito tempo, como mostram os dados de exportação de manufaturados, a
improdutividade crônica e a desindustrialização progressiva.
A perda de peso da indústria não é
exclusividade brasileira. O que caracteriza a indústria nacional é a
produtividade sofrível, incapaz de permitir competir em escala global. A
indústria ganharia muito se pudesse importar máquinas, equipamentos, produtos
de telecomunicações e informática sem pagar tarifas extorsivas. O estudo da
Seae deixou claro que isenções pontuais, obtidas à custa de lobby e medidas
excepcionais, são um remendo. A melhor solução para a improdutividade é a
abertura, uma espécie de incentivo para a “indústria que gosta de malhar”.
Bolsonaro, infelizmente, falhou nesse
front. Houve, é verdade, outras reduções de tarifa além do surto recente de
“liberalismo whey”. No cômputo geral, porém, foram insuficientes.“Uma parte dos
cortes tarifários tem duração até o final de 2023. A justificativa foi aliviar
os impactos na inflação da pandemia e da guerra na Ucrânia”, diz Sandra Rios,
diretora do Centro de Estudos de Integração e Desenvolvimento. Em vez de
equipamentos para os frequentadores de suas “motociatas”, Bolsonaro deveria ter
pensado no país e realizado uma abertura mais ampla. Os ganhos para o Brasil
teriam sido bem maiores.
Devastação no Cerrado ameaça exportação
brasileira de soja
O Globo
Associação do setor quer antecipar para
2026 prazo a partir do qual não comprará grão de áreas desmatadas
O presidente eleito em outubro terá de
enfrentar ameaças à posição confortável do país no mercado mundial de grãos.
Antes mesmo de assumir em 2019, o presidente Jair Bolsonaro foi alertado por
emissários de grandes exportadores agrícolas sobre o risco de retaliações no
comércio internacional se a preservação ambiental não fosse levada a sério.
Como não foi, represálias começam a surgir.
A última veio da associação global Tropical
Forest Alliance na forma de uma sugestão, depois aceita pelo Fórum de
Commodities Agrícolas. Ela antecipa de 2028 para 2025 a meta brasileira de
eliminar o desmatamento ilegal no Cerrado. Isso prejudicaria a exportação
brasileira da soja, que se tornaria alvo de boicote por incluir a produção de
áreas devastadas ilegalmente.
A proposta foi uma resposta ao pedido do
governo americano por iniciativas para reduzir o aquecimento global, feito na
COP 26, a conferência das Nações Unidas sobre o meio ambiente em novembro
passado. A retaliação ao Brasil pela destruição do Cerrado estará na pauta da
COP 27, prevista para o final do ano no Egito. Nada impede que as grandes
operadoras do Fórum de Commodities deixem de comprar soja de áreas de
desmatamento do Cerrado a partir de janeiro de 2026, independentemente do que
seja decidido no Egito.
Segundo maior produtor e exportador mundial
de soja, superado apenas pelos Estados Unidos, o Brasil deverá exportar neste
ano 75 milhões de toneladas do grão, pouco menos que no ano passado, devido à
quebra de safra. Como os efeitos da invasão da Ucrânia pela Rússia elevaram o
preço da soja em quase 30%, estima-se que, apesar da queda, ela renderá US$
43,6 bilhões à balança comercial, voltando a ser o maior item na pauta de
exportações brasileiras.
Metade dessas exportações sai do Cerrado,
região na mira dos ambientalistas. Distribuído por dez estados, o bioma já
perdeu quase metade da vegetação nativa. Será devastado completamente se não
houver ações na área pública que impeçam a destruição e as reações do mercado
decorrentes de pressões da opinião pública mundial.
A Tropical Forest Alliance há tempos
acompanha a degradação. Na COP 21, em 2015, obteve uma declaração do então
governador de Mato Grosso, Pedro Taques, comprometendo-se a acabar com o desmatamento
ilegal até 2020. O tempo passou, o advogado Pedro Taques, hoje filiado ao
Solidariedade, foi sucedido por Mauro Mendes (União Brasil), e Mato Grosso
devastou 803 dos 8.531 quilômetros quadrados de vegetação que o Cerrado perdeu
entre agosto de 2020 e julho de 2021 (equivalente a seis vezes a superfície da
cidade de São Paulo).
Diante disso, o Itamaraty terá trabalho no próximo governo para defender a posição brasileira contra os boicotes que poderão ocorrer por causa do descaso com o meio ambiente. A mata é acompanhada por satélites a todo instante. Não há como esconder.
Limites da Justiça
Folha de S. Paulo
Sem base clara, decisão de Moraes contra
empresários dá argumento a Bolsonaro
A ruidosa operação deflagrada pela Polícia
Federal sobre empresários que opinaram a favor de um golpe de Estado num grupo
de WhatsApp alvoroçou a campanha eleitoral, acirrou ânimos e
ofereceu ao presidente Jair Bolsonaro (PL) uma oportunidade para renovar seus
argumentos contra decisões que
vêm sendo tomadas pelo ministro Alexandre de Moraes.
O magistrado conduz inquérito no Supremo
Tribunal Federal para apurar a atividade de milícias digitais e a existência de
uma suposta organização criminosa responsável por disseminação de fake news e
ataques às instituições democráticas. Bolsonaristas alegam que a investigação carece
de fundamento constitucional e fere a liberdade de expressão.
Em que pese a controvérsia, o inquérito
enquadra-se nas prerrogativas do STF e justifica-se diante das circunstâncias
que levaram à sua criação: organização de manifestações golpistas, divulgação
de discurso de ódio e difusão de informações falsas, além de atos de violência
orquestrados contra o Supremo e seus ministros.
Tais iniciativas revelam-se ainda mais
graves ao se constatar que não são isoladas, uma vez que encontram eco e
incentivo no discurso golpista do presidente da República e seu entorno.
Bolsonaro jamais escondeu pendores autoritários e simpatias pela ditadura
militar.
Eleito, deu provas suficientes nos últimos
anos de desprezo pelo arcabouço da democracia, o qual não se cansa de tentar
solapar.
A atuação severa do STF —e particularmente
de Moraes— na defesa do Estado de Direito e na dissuasão de investidas de tom
golpista é valiosa e merece elogios.
Entretanto é preciso, em quaisquer
circunstâncias, evitar que se borrem os limites entre a resistência
intransigente contra atos antidemocráticos e o cerceamento à liberdade de
expressão.
Esta Folha defende uma concepção
ampla e vigorosa do direito à manifestação de opinião. Conversas em que se
ventilam simpatias golpistas, como no caso
dos empresários bolsonaristas, são odiosas, mas não devem ser
reprimidas como se fossem prática de crime —o que de fato não são.
Nesse sentido, a operação autorizada por
Moraes, dentro do que foi dado a se conhecer acerca de suas motivações, deixou
grande margem para dúvidas —e deu a Bolsonaro argumentos para apresentar-se
como vítima.
É plausível que o magistrado, atual
presidente do Tribunal Superior Eleitoral, tenha conhecimento de fatos
objetivos, como eventuais articulações para atacar a ordem democrática, que
justifiquem as medidas impostas aos envolvidos. É o que a sociedade, por todos
os motivos, tem urgência em saber.
Ainda o rol da ANS
Folha de S. Paulo
Congresso vai encarecer planos de saúde se
deixar terapias a critério de juízes
Parlamentares são rápidos quando se trata
de aprovar projetos que eles julgam capazes de lhes renderem dividendos
eleitorais.
Em junho, o Superior Tribunal de Justiça
decidiu que o rol de
procedimentos listados pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) para os
planos privados é taxativo, não apenas indicativo. Em 13 de julho,
deputados apresentaram texto que anula o entendimento do STJ, sacramentando em
lei o caráter exemplificativo da lista.
Em 2 de agosto, foi requerida urgência para
a tramitação do diploma, aprovado no dia seguinte em três comissões e no
plenário da Câmara. Mais 24 horas e a propositura já estava no Senado, onde
deve ser votada em breve.
Não deveria haver dúvida de que considerar
o rol taxativo é a abordagem mais racional. Ela permite lidar melhor com dois
problemas —efetividade e economicidade dos procedimentos e terapias.
Quando a lista do que está coberto pelo
plano passa antes por uma comissão de especialistas, os charlatanismos mais
acintosos tendem a ser eliminados. A pandemia mostrou que não são poucos os
médicos dispostos a prescrever drogas sem nenhum amparo da ciência.
O projeto aprovado na Câmara até exige que
os procedimentos a ser pagos pelos planos tenham amparo em evidências. Mas,
como não oferece uma fórmula inquestionável para definir o que é científico ou
não, fica ainda muito aquém de resolver o assunto.
O problema da economicidade é ainda mais
complexo. É disseminada a ilusão de que, quando um paciente tem tratamento
custeado pela operadora, o montante gasto sai dos lucros dos capitalistas. Na
realidade, porém, é o conjunto de usuários que, com suas mensalidades, paga por
todos os sinistros.
Isso significa que tudo aquilo que é incluído
na cobertura deveria idealmente passar por uma análise de custo-benefício. Se o
rol é taxativo, a decisão caberá a especialistas da ANS; se indicativo, caberá
aos juízes, que raramente terão a formação adequada.
A judicialização do tema introduz ainda um
elemento de iniquidade, já que são as famílias mais ricas que costumam recorrer
à Justiça.
Se os parlamentares querem favorecer os
usuários, o melhor seria criar regras para evitar que a lista da ANS fique
congelada para reduzir os custos dos planos. Ela deve ser
sempre atualizada, proporcionando a todos a melhor combinação de
eficácia e custo.
Defesa da democracia deve respeitar a lei
O Estado de S. Paulo
O caso dos empresários bolsonaristas recorda a importância de o STF respeitar os limites de sua competência e dar a máxima publicidade possível aos seus atos. Sigilo é exceção
Em março de 2019, quando o então presidente
do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Dias Toffoli, anunciou a abertura
de um inquérito criminal para apurar fake news e ameaças envolvendo o
STF, este jornal defendeu a decisão, lembrando a competência do STF prevista no
Regimento Interno, bem como o dever do presidente do Supremo de velar pelas
prerrogativas da Corte. “O ambiente de liberdade assegurado pela Constituição
não pode ser entendido como respaldo para ataques pessoais, ameaças ou difusão
de notícias mentirosas”, dissemos neste espaço (O sigilo do STF, dia 16/3/2019). Ao mesmo tempo, no entanto,
criticamos o caráter sigiloso do inquérito, pois nenhum motivo para esse sigilo
havia sido apresentado.
Desde então, aquela investigação e outras
relacionadas ao livre funcionamento das instituições democráticas ganharam
especial relevância. As ameaças contra o Poder Judiciário e o regime
democrático cresceram. Em várias ocasiões, houve envolvimento direto do
presidente da República, de seus filhos e de ministros de Estado. Um episódio
ocorrido em 2020 escancarou a desfaçatez do bolsonarismo. Ao se tornar
investigado no STF, Abraham Weintraub, então ministro da Educação, simplesmente
fugiu do País. Enquanto isso, o Congresso e a Procuradoria-Geral da República
estiveram rigorosamente indiferentes ao tema. Nesse cenário de omissões, o
Supremo teve papel especial na defesa da Constituição.
É de justiça reconhecer: o País tem muito a
agradecer pela atuação do STF nos últimos anos. Sem se curvar a conveniências
ou a pressões políticas, a Corte cumpriu seu dever de defender o Estado
Democrático de Direito. De toda forma, por óbvio, esse reconhecimento não
significa aplaudir tudo o que foi feito ou decidido pela Corte. O próprio
Supremo reviu várias decisões suas no período, como a censura imposta aos sites
da revista Crusoé e de O Antagonista em abril de 2019. Na
ocasião, dissemos neste espaço que “não cabe à Justiça determinar o que é e o
que não é verdadeiro, ordenando retirar – ordenando censurar, repita-se – o que
considera que não corresponde aos fatos” (O STF decreta censura, 17/4/2019). O ministro Alexandre de
Moraes revogou a decisão restritiva.
Nesta semana, a Polícia Federal, com a
autorização do ministro Alexandre de Moraes, cumpriu mandados de busca e
apreensão em endereços de oito empresários bolsonaristas que, num grupo de
WhatsApp, discutiam a hipótese de um golpe de Estado caso o petista Lula da
Silva seja eleito presidente. Os sigilos bancário e telemático dos investigados
foram quebrados e as contas nas redes sociais, bloqueadas. A ação suscitou
diversos questionamentos e críticas.
Por ser uma investigação sigilosa,
desconhece-se a motivação da decisão, tampouco suas circunstâncias específicas.
De toda forma, vale lembrar que o Estado tem o dever de investigar indícios de
crimes – a princípio, tal atividade não representa nenhuma violação das
liberdades e garantias fundamentais – e que deve fazê-lo dentro da lei. Não
cabem exceções. Sobre isso, um aspecto especialmente importante é o respeito à
competência jurisdicional. Um dos grandes equívocos no âmbito da Operação Lava
Jato – que depois suscitou diversas nulidades, algumas delas reconhecidas pelo
próprio STF – foi uma compreensão especialmente ampla, muito além do que a lei
determina, das competências da 13.ª Vara Federal de Curitiba. Não há razão para
o STF incorrer no mesmo erro, atribuindo a si a competência para lidar com todas
as ocorrências relativas à Lei de Defesa do Estado Democrático de Direito.
A experiência da Lava Jato oferece outra
importante lição sobre cumprimento da lei. Inquérito policial deve ter como
objetivo a apuração de fato determinado e por prazo certo. Não é uma espécie de
escudo de proteção a ser renovado indefinidamente enquanto houver risco de
novos crimes.
Precisamente por ter sido – e continuar sendo – essencial na defesa do Estado Democrático de Direito, o STF deve ser o primeiro a zelar por sua autoridade. O caminho é a observância estrita da lei, motivando devidamente as decisões e restringindo ao máximo os casos de sigilo. A regra é a publicidade
A herança maldita de R$ 430 bilhões
O Estado de S. Paulo
Medido em estudo da FGV, eis o tamanho do descalabro fiscal que Bolsonaro deixará para próximo governo; com isso, ganha força necessidade de licença temporária para aumentar gastos
O descalabro fiscal que o governo Jair
Bolsonaro deixará como herança para quem vencer as eleições pode atingir
inacreditáveis R$ 430 bilhões em 2023, o equivalente a 4,3% do Produto Interno
Bruto (PIB). A estimativa foi calculada pelos economistas Braulio Borges e
Manoel Pires e consta da edição de agosto do Boletim Macro do Instituto
Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV Ibre). O número inclui
despesas não cobertas no Orçamento e que colocam em dúvida o cumprimento do
teto de gastos; propostas que reduzem a arrecadação e afetam o superávit
primário; eventos com impacto financeiro negativo e que pioram o déficit
nominal; e incertezas com o potencial de produzir impactos relevantes caso
sejam materializadas. A manutenção do piso do Auxílio Brasil em R$ 600, o
reajuste dos salários do funcionalismo público e a revisão das despesas
discricionárias devem ultrapassar R$ 120 bilhões, valor para o qual não há
cobertura e que exigirá uma sétima mudança no teto e na Constituição para que
seja viabilizado. Tudo indica que o enterro do atual arcabouço fiscal é uma
questão de tempo, independentemente do presidente que vier a ser eleito.
Nesse contexto, tem ganhado força a tese
segundo a qual será necessário permitir uma licença temporária para aumentar o
gasto público no ano que vem enquanto a equipe do futuro presidente elabora um
novo regime fiscal, um entendimento que tem reverberado mesmo entre economistas
que não costumam concordar em praticamente nada. Se há divergências a respeito
da âncora a ser adotada, não restam dúvidas de que o teto deixou de servir como
uma referência de austeridade para as contas nacionais. Eis um legado positivo
– e por isso mesmo inesperado – gerado pelo atual governo: seu ímpeto
destrutivo extrapolou todos os limites, a ponto de unir o País na busca de
consensos para tirá-lo do buraco.
Como mostrou o Estadão, representantes
de bancos e de fundos de investimento estão dispostos a aceitar uma ampliação
do gasto público de até R$ 70 bilhões em 2023. O “Grupo dos Seis”, formado
pelos economistas Bernard Appy, Pérsio Arida, Francisco Gaetani e Marcelo
Medeiros, pelo advogado Carlos Ari Sundfeld e pelo cientista político Sérgio
Fausto, sugeriu algo semelhante, mas limitado a R$ 100 bilhões, o equivalente a
cerca de 1% do PIB. Técnicos do Tesouro Nacional propuseram a adoção de um
regime de metas para a dívida bruta, a exemplo do sistema de bandas
inflacionárias que orienta o trabalho do Comitê de Política Monetária (Copom)
do Banco Central (BC). Já o ex-ministro da Fazenda Nelson Barbosa defendeu a
definição de uma meta para o crescimento real do gasto primário – em vez de
fixar um objetivo para o saldo entre receitas e despesas, excluídos os juros da
dívida. Independentemente da âncora que vier a ser escolhida, fato é que ela
precisa sinalizar um compromisso verdadeiro com a credibilidade fiscal no médio
e longo prazos. O boletim da FGV Ibre faz um alerta: “Se esse for o caminho a
ser seguido, é importante que se chegue a um bom acordo político porque o
cenário de juros e inflação ainda requer muito cuidado”.
Um debate sério sobre a âncora fiscal
merece ser tratado com prioridade na campanha eleitoral. Adotar políticas
públicas que proporcionem dignidade e uma porta de saída a milhões de famílias
vulneráveis e que garantam qualidade para a educação e a saúde passa
necessariamente pelo resgate da responsabilidade fiscal, sem a qual o
financiamento dessas ações se torna impossível. Um aspecto a ser considerado
nas discussões é a construção de um arcabouço perene, que possa ser seguido pelo
governo eleito em outubro e pelos que vierem a suceder-lhe no futuro, e que
simbolize o abandono de manobras contábeis que não enganam ninguém. Superávits
primários pontuais, gerados a partir de receitas extraordinárias, de calote nos
precatórios e do efeito da inflação na arrecadação, não têm nenhum impacto na
redução dos juros. Produzir uma deflação temporária e concentrada em preços
administrados não convence nem o eleitor nem o mercado.
Queda da inflação não chega a todos
O Estado de S. Paulo
Queda de 0,73% do IPCA-15 de agosto é a maior desde 1991, mas a alimentação, que pesa no bolso dos pobres, subiu 1,24%
Seria bom se todos os brasileiros pudessem
comemorar sem restrições, como certamente estão fazendo o governo e seu chefe,
a nova queda da inflação apontada pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor
Amplo (IPCA) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O IPCA-15 (que afere a variação dos preços no período de 30 dias
encerrado no dia 15) de agosto registrou queda de 0,73%, no recuo mais
acentuado para o período em toda a série iniciada em 1991. A
redução teve entre os principais fatores a queda do preço da gasolina, da conta
de luz e das passagens aéreas. Mas o preço da comida continua a subir.
Esse resultado mostra a eficácia das
pressões políticas do governo e, particularmente, do presidente Jair Bolsonaro
sobre outros entes ligados ao setor público, como a Petrobras e os governos
estaduais, para forçar a redução do preço dos combustíveis e da energia
elétrica. Esses itens subiam aceleradamente por diversas razões e, por seu peso
na composição do IPCA, estavam entre os que mais pressionavam a inflação, cuja
alta coloca em risco o projeto de reeleição de Bolsonaro.
No IPCA-15 de agosto, a gasolina ficou
16,86% mais barata – em boa parte pela mudança dos preços internacionais –, o
que contribuiu decisivamente para o recuo médio de 5,24% do grupo Transportes.
Outro item do grupo Transportes que apresentou forte redução foi o preço da passagem
aérea, que recuou 12,22%. Com redução de 3,29%, por causa da redução do ICMS
(tributo de natureza estadual), a tarifa de energia elétrica fez o grupo
Habitação do IPCA ficar 0,37% mais barato.
Dos preços que mais contribuíram para a
queda do IPCA-15 em agosto, apenas o da energia elétrica teve impacto sobre o
orçamento da maioria da população. É difícil imaginar como a redução do preço
da passagem aérea possa beneficiar a família do trabalhador que mora distante
do local de trabalho e precisa se deslocar a pé ou por meio de transporte
público. Também a expressiva redução do preço da gasolina deve ter tido pouco
impacto no orçamento dessa família.
Dos nove grupos que compõem o IPCA, seis
tiveram alta de preço no IPCA-15. Os gastos com Alimentação e Bebida subiram
1,12%. A alimentação no domicílio ficou 1,24% mais cara. Este é um dos
principais componentes da inflação das famílias de renda mais baixa. A inflação
dessas famílias, por isso, é diferente da inflação de outras classes de renda.
As que gastam mais com gasolina e passagem aérea tiveram em agosto variação
média de preços menos acentuada do que a enfrentada pelas demais famílias.
A inflação acumulada em 12 meses vem se
reduzindo por causa da deflação observada agora, mas o problema está longe de
ter sido resolvido. Mesmo as projeções mais otimistas para a inflação em 2022,
agora em torno de 6,5%, estão muito acima da meta de 3,5% fixada para este ano.
Por isso, o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, avalia com
cautela a trajetória do IPCA. Ele não vê motivos para celebração e adverte que
“ainda há muito trabalho a fazer”.
Próximo governo terá de encarar ajuste
fiscal relevante
Valor Econômico
Há mais fragilidade fiscal do que a
existência de um superávit fiscal minguado deixa entrever
O governo Bolsonaro deixará uma herança
maldita nas contas públicas para seu sucessor - ou para si próprio, se
reeleito. Há contas adicionais pendentes de até R$ 430 bilhões, ou 4,2% do PIB,
que podem vencer no ano que vem, estimam os economistas Manoel Pires e Bráulio
Borges no Boletim Macro, do FGV Ibre. O estudo não aponta a origem dos fatores
que pioraram as contas públicas, mas eles podem ser atribuídos em sua quase
totalidade aos gastos e/ou renúncia de receitas destinados a reeleger o
presidente da República.
O ministro da Economia, Paulo Guedes, assumiu
o cargo em 2019 prometendo zerar o déficit público em um ano. Era bravata, e
não foi a única contada por ele. Este ano o governo pode fechar as contas com
um pequeno superávit primário. Mas, longe de se estar a caminho do equilíbrio,
há um grande desequilíbrio potencial encoberto, provocado por uma política
econômica voltada para fins eleitorais.
O governo vive de imediato um dilema fiscal
provocado pela intemperança do presidente. Bolsonaro nunca pensou em criar
programas sociais - ao contrário, ironizava os existentes. Chegou o período
eleitoral e, querendo repetir a melhoria de seus péssimos índices de
popularidade durante a pandemia com a adoção do auxílio emergencial a 68
milhões de brasileiros, resolveu recorrer ao Auxílio Brasil, um arremedo desvirtuado
e turbinado do bem-sucedido Bolsa Família. A média de R$ 200 do programa
anterior subiu para R$ 400 e depois, para R$ 600. O intuito eleitoral ficou
evidente quando fixou a data para por fim ao valor extra: 31 de dezembro.
O presidente, porém, largou muito atrás na
corrida eleitoral e continua distante do favorito, o ex-presidente Lula.
Bolsonaro prometeu manter os R$ 600 se ganhar a eleição, assim como Lula. Com
um detalhe: não há dinheiro para isso. No cargo, Bolsonaro terá de sancionar um
orçamento para o próximo presidente, mas a conta, obedecendo o teto de gastos,
é difícil de fechar.
Mesmo para criar o Auxílio Brasil e
aumentá-lo, foi preciso destruir a prestações o teto de gastos. Para criar o
auxílio com o valor de R$ 400, o governo conseguiu, com apoio do Centrão,
parceiro na empreitada eleitoral, inscrever o calote dos precatórios na
Constituição e liberar R$ 112 bilhões extra-teto, metade dos quais para o
programa social. Para elevá-lo a R$ 600, foi decretado estado de emergência,
com novo rombo no teto de R$ 42 bilhões. A conta do programa em 2023 é de cerca
de R$ 150 bilhões. Os gastos com o Bolsa família giravam em torno de R$ 35
bilhões.
Quando o teto de gastos foi criado, havia a
esperança de que ele obrigasse o Legislativo e Executivo a discutirem a fundo
as prioridades das despesas públicas. Desejo vão. Com a amarra nas despesas,
tratou-se de reduzir as receitas com benesses. No vale tudo eleitoral de agora,
as duas coisas ocorreram: redução de receitas e aumento de gastos.
As agruras fiscais de 2023, pelos cálculos
dos economistas do FGV Ibre, têm várias naturezas. Afetam diretamente o teto de
gastos, em primeiro lugar, o aumento do Auxilio Brasil, seguido do reajuste do
funcionalismo público quase inevitável. Ambos, segundo estimativas
extra-oficiais do governo, comprimiriam as despesas de custeio do Estado para
algo em torno de R$ 90 bilhões ou menos, o que colocaria o aparelho de Estado
perto do shutdown. Para Pires e Borges, essa conta é de 1,2% do PIB, ou mais de
R$ 120 bilhões.
A redução de receitas, que abala o
resultado primário, mas não o teto, pode chegar a 0,8% do PIB, segundo os
economistas. Na conta entra a redução dos impostos sobre combustíveis (R$ 62
bilhões) e, se levada adiante, a correção da tabela do IR de pessoas físicas,
com mais R$ 25 bilhões.
A conta vai mais longe. Com a redução do
ICMS dos combustíveis nos Estados, eles conseguiram no STF deixar de pagar
dívidas, reduzindo receitas da União quando ela se vê diante de uma conta maior
de juros, elevando o déficit nominal. Essa fatura, segundo Pires e Borges, é da
ordem de R$ 77 bilhões, ou 0,7% do PIB. Mas há ainda outra, como a compensação
da União aos Estados pelo corte de impostos, estimada em R$ 144 bilhões, ou
1,4% do PIB.
Todos esses impactos não se abaterão sobre
as contas públicas ao mesmo tempo e alguns podem até não ocorrer em 2023. No
entanto, são a demonstração concreta de que há mais fragilidade fiscal do que a
existência de um superávit fiscal minguado, fruto de um aumento excepcional de
arrecadação no ano corrente, deixa entrever.
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