O Estado de S. Paulo
Mesmo depois de dois anos, Bolsonaro nem
sequer começou a intuir como suas atitudes na pandemia foram desumanas
Na entrevista ao Jornal Nacional, o
presidente Jair Bolsonaro não pediu desculpas à população brasileira por suas
falas e, principalmente, por suas atitudes no enfrentamento da pandemia. Agora,
vendo que a rejeição à sua pessoa não diminui, mudou o tom. “A questão do
coveiro eu retiraria”, disse na segunda-feira em entrevista a um conjunto de
podcasts evangélicos. Em abril de 2020, após ser questionado sobre o número de
mortes por covid, disse: “Não sou coveiro”.
“Dei uma aloprada (na questão do coveiro).
Aloprei. Perdi a linha. Aí eu me arrependo”, falou Jair Bolsonaro aos
entrevistadores evangélicos.
O arrependimento é uma das atitudes humanas mais admiráveis. Ele permite reconciliar-nos com o nosso passado e com as pessoas que possamos ter ferido ou magoado ao longo da vida. Há um ditado africano, de grande realismo, que relaciona a maturidade com a descoberta da nossa capacidade de magoar – de fazer sofrer – os outros. De fato, a vida ganha outra dimensão quando se descobre como as nossas ações, nossas ausências, nossas falas, nossas distrações, nossos silêncios, nossas piadas e até mesmo nossos olhares podem afetar os outros de uma maneira muito diferente do que havíamos originalmente pensado. É simplesmente espetacular a descoberta do outro, de sua alteridade.
O arrependimento também se relaciona com o
futuro. Não existe arrependimento sem a disposição de não voltar a fazer aquilo
do que nos arrependemos. O propósito quanto ao futuro é consequência necessária
desse condoer-se interiormente pelo que fizemos ou deixamos de fazer. E aqui
está outro aspecto espetacular do arrependimento humano: a abertura a um futuro
diferente do que foi o passado, a possibilidade real de um novo modo de vida.
No caso do arrependimento de Jair
Bolsonaro, não é preciso fazer um julgamento de suas disposições internas para
concluir que ele não representa um ato de grandeza moral, um ato de coragem. As
suas próprias palavras expressam a natureza de sua atitude.
Não duvido de que, neste momento eleitoral,
Jair Bolsonaro preferisse não ter esse passivo verborrágico. Ou seja, não
duvido de que o presidente da República possa, diante das atuais circunstâncias
eleitorais, ter-se arrependido do que disse. Suas palavras na segunda-feira
podem ter sido sinceras. O ponto é outro. Jair Bolsonaro explicita que, no seu
modo de ver, foi mero deslize: “Dei uma aloprada. Aloprei. Perdi a linha”.
Com isso, Jair Bolsonaro desvela a natureza
de seu arrependimento. Mesmo depois de mais de dois anos, ele nem sequer
começou a intuir como suas atitudes na pandemia foram profundamente desumanas,
como foram profundamente agressivas, como foram profundamente desrespeitosas,
como foram profundamente inadequadas para o cargo que ocupa, como foram
profundamente desconectadas da realidade que a população vivia, como foram
profundamente covardes. Na hora mais difícil, Jair Bolsonaro não assumiu o peso
de suas responsabilidades. Teve medo das consequências políticas. Teve medo de
liderar. Teve medo de olhar a realidade de frente. Teve medo de falar de morte
quando a vida exigia falar de morte.
Não nego a possibilidade de que Jair
Bolsonaro venha a se arrepender genuinamente de sua covardia, de sua
escandalosa covardia, durante a pandemia. Mas, quando isso ocorrer, as palavras
e as atitudes a expressar esse arrependimento terão de ser muito diferentes –
ou não será arrependimento.
Fico abismado como líderes religiosos, que,
a princípio, lidam cotidianamente com profundas conversões humanas, possam
apoiar alguém tão indecorosamente superficial em sua contrição. Terão esses
líderes religiosos meditado alguma vez sobre o Salmo Miserere, no qual
Davi manifesta a Deus a dor pelo seu pecado? Arrependimento é coisa séria. Não
é dito fazendo piada. Não é formulado em meio a deboches. Não é truque
eleitoral.
Uma das consequências do arrependimento é
uma grande vergonha pelo que se fez ou deixou de fazer. Isso se dá porque o
arrependimento não é mera decisão racional, como se fosse a detecção de um erro
de cálculo. Nunca é descoberta de mero deslize. Arrependimento é cair em si, é
dar-se conta do que fez e de suas consequências. O arrependimento gera um
reenquadramento afetivo dos atos passados, com um desejo incontido de agir no
futuro de forma inteiramente diferente.
Até agora, Jair Bolsonaro não fez nada
disso. Ele disse que cometeu um deslize ao falar “não sou coveiro”. Será essa a
sua grande reflexão sobre o seu governo durante a pandemia? Será esse o seu
grande aprendizado? Não é preciso recorrer aos críticos mais ardorosos de Jair
Bolsonaro para desqualificar sua gestão. Ele mesmo explicita quem ele é.
Causa perplexidade, não há dúvida, que
tantos brasileiros queiram a reeleição de Jair Bolsonaro. Mas é possível também
ver a situação atual por outra perspectiva. Quantos brasileiros não eleitores
de Jair Bolsonaro em 2018 querem votar nele agora? Quantos se sentiram
positivamente surpresos com o atual governo? Por mais que haja fake news,
a covardia ainda não se tornou uma virtude.
*Advogado e jornalista
3 comentários:
Excelente análise do colunista! Bolsonaro é um monstro, "suas atitudes na pandemia foram profundamente desumanas, como foram profundamente agressivas, como foram profundamente desrespeitosas, como foram profundamente inadequadas para o cargo que ocupa, como foram profundamente desconectadas da realidade que a população vivia, como foram profundamente covardes." Bolsonaro não precisa se arrepender de suas palavras, ele DEVE SE ARREPENDER DE SEUS ATOS E CRIMES! Passando o resto da vida na cadeia, pode ser que isto aconteça...
A cadeia é ele mesmo, deve ser duro de aguentar um Bolsonaro 24 horas por dia. Quanta podridão nessa cabeça doentia.
A gente planta e colhe.
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