sábado, 15 de outubro de 2022

O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

Editoriais / Opiniões

O bolsonarismo e sua perversa disjuntiva

O Estado de S. Paulo

Ao usar a máquina pública para atacar institutos de pesquisa, Bolsonaro insiste na tática de sempre: impõe às instituições a disjuntiva entre a omissão e a atuação fora dos ritos

O Estado brasileiro tem sofrido a mais descarada e intensa distorção desde a redemocratização do País. O presidente Jair Bolsonaro manipula o aparato estatal para seus interesses particulares, produzindo continuamente novos abusos, numa sequência aparentemente interminável de excepcionalidades, e suscitando, por sua vez, respostas das instituições que, infelizmente, não têm sido as melhores, com outras tantas excepcionalidades. O cenário é desolador.

O abuso desta semana consistiu em usar a máquina pública para atacar, em duas novas frentes, os institutos de pesquisa. A partir de uma representação feita pela campanha de reeleição do presidente, o Ministério da Justiça requisitou à Polícia Federal a abertura de inquérito contra os institutos. Além disso, o presidente do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), Alexandre Cordeiro, abriu uma investigação contra o Datafolha, o Ipec e o Ipespe.

São duas ações inéditas e absolutamente ineptas para produzir os supostos efeitos legais pretendidos. Seu objetivo é outro: disseminar desconfiança e criar ainda mais confusão na campanha eleitoral. Usa-se supostamente a lei – o Ministério da Justiça falou em apurar eventual crime de divulgação de pesquisa fraudulenta, o presidente do Cade disse haver indícios de cartel na atuação dos institutos – para atacar a própria lei. Afinal, um dos objetivos do Direito eleitoral é prover um ambiente de tranquilidade durante a campanha, justamente o que o bolsonarismo deseja impedir com suas contínuas excepcionalidades.

Diante dessas inéditas ameaças, o presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ministro Alexandre de Moraes, considerou que houve por parte da Polícia Federal e do Cade uma “flagrante usurpação das funções constitucionais da Justiça Eleitoral” e determinou, de ofício, a interrupção das duas investigações. Pode-se entender, não sem razão, que Alexandre de Moraes fez o que lhe cabia fazer: eliminou, pela raiz, mais uma ameaça do bolsonarismo à tranquilidade das eleições.

Entretanto, não se pode ignorar que, com a atuação de ofício do presidente do TSE interferindo em órgãos que não estão sob a alçada da Justiça Eleitoral, o bolsonarismo também atingiu seu objetivo. Obteve mais um caso em que a Justiça agiu de forma excepcional, além de seus limites legais, o que não apenas dá munição ao discurso de que Jair Bolsonaro estaria sendo indevidamente perseguido por Alexandre de Moraes, como produz um enfraquecimento do próprio Judiciário. As instituições republicanas devem atuar sempre, sem exceção, dentro da lei. A legitimidade de sua ação inclui necessariamente o estrito respeito aos procedimentos e às esferas de atuação. Ainda que possam ser justificadas pelas circunstâncias, excepcionalidades sempre desgastam o Judiciário.

O bolsonarismo impõe às instituições uma disjuntiva rigorosamente antirrepublicana: a omissão ou o abuso. Suas constantes e crescentes ameaças são tão abusadas – não há rigorosamente nenhum limite – que uma resposta dentro da lei, de acordo com os ritos previstos, parece ser insuficiente, mais se assemelhando a uma omissão. Ou seja, para não serem coniventes, as instituições são instadas a uma atuação fora dos padrões, fora dos ritos.

A ameaça desta semana é, por si só, muito grave. O governo federal conseguiu envolver até o Cade nas eleições. Toda a máquina pública – mesmo aqueles órgãos que, em tese, dispõem de autonomia e não têm relação com temas eleitorais – está orientada para reeleger Jair Bolsonaro. Mas o problema do bolsonarismo é muito mais sério do que uma campanha eleitoral sem escrúpulos. São quatro anos em que, de forma ininterrupta, Jair Bolsonaro tem imposto essa disjuntiva entre omissão e abuso sobre o funcionamento de todo o Estado Democrático de Direito.

Não há respostas fáceis para lidar com esse problema. De toda forma, há um requisito para seu enfrentamento. É preciso reconhecer, sem meias palavras, o problema: há um presidente da República deturpando profundamente a lei e a máquina pública.

O ‘apagão’ de professores

O Estado de S. Paulo

Ante projeção de que faltarão 235 mil professores na educação básica em 2040, é urgente melhorar atratividade da carreira, hoje opção só de poucos jovens que se sentem vocacionados

O Brasil corre o risco de não ter professores em número suficiente para lecionar na educação básica. O alerta, muito oportuno neste Dia do Professor, foi dado pelo Instituto Semesp (ligado ao sindicato das mantenedoras de ensino superior), que prevê um déficit de 235 mil educadores no País em 2040, se for mantido o atual ritmo de formação docente. A projeção, grave e preocupante, joga luz sobre uma questão central para o presente e o futuro da educação brasileira: a pouca atratividade da carreira do magistério, reflexo dos salários mais baixos do que em outras áreas e das precárias condições de trabalho em muitas escolas.

O estudo foi apresentado na última semana de setembro e analisou uma série de variáveis ao longo da década passada. Primeiro, a evolução do número de ingressantes nas faculdades de licenciatura, como são chamados os cursos de formação de professores, assim como o total de concluintes. O cruzamento dos dados chamou a atenção para outro problema: as elevadas taxas de evasão, já que muitos universitários abandonam o curso antes da formatura. 

A desproporção é impressionante. De 2010 a 2020, o número de ingressantes nas licenciaturas cresceu 61%, puxado pelas matrículas em cursos de educação a distância (EAD), enquanto o total de concluintes aumentou apenas 4%. Isso, no entanto, é só a ponta do iceberg: o estudo informa que mais da metade dos concluintes nesse período já era de professores com atuação na sala de aula. Esse dado remete à alarmante constatação de que a quantidade de novos docentes, na verdade, é provavelmente muito mais baixa.

Prova disso é a mudança no perfil etário dos professores em atividade no Brasil. De acordo com o estudo, o contingente de docentes com menos de 29 anos diminuiu 27%, ao passo que o de profissionais acima dos 55 anos aumentou 44% entre 2016 e 2021. 

O professor, como se sabe, é o principal fator de aprendizagem dos alunos. Por isso, melhorar a formação docente é um passo indispensável para elevar a qualidade do ensino. O Brasil está longe de superar esse desafio − e um dos obstáculos é justamente a pouca atratividade da carreira do magistério, o que acaba afugentando os melhores candidatos. Tirando quem escolhe lecionar por genuína vocação, e felizmente ainda há gente assim, a verdade é que um vasto contingente de universitários só procura os cursos de licenciatura por suposta incapacidade de ingressar em carreiras em geral mais concorridas e, portanto, com melhor remuneração.

Até aqui, o debate mais amplo em torno da carreira do magistério tinha como foco a qualidade da educação. É consenso que maiores salários, melhores condições de trabalho e a perspectiva de progressão funcional ao longo dos anos são passos necessários para atrair profissionais mais qualificados − estudantes com nota alta o suficiente para ingressar em qualquer outra faculdade, mas que optam por uma licenciatura para serem professores. Pois bem, isso continua válido. A novidade duplamente lamentável agora é que a baixa atratividade da carreira do magistério desponta como empecilho até mesmo para suprir o número mínimo de profissionais nas salas de aula do País.

Sinais disso já aparecem aqui e ali. Neste ano, por exemplo, a rede estadual de São Paulo não conseguiu preencher todas as vagas de professores temporários para o Novo Ensino Médio. Em sua nova organização, o ensino médio passou a ter maior carga horária, o que demanda mais docentes. O mesmo ocorre nas escolas de tempo integral, outro avanço fundamental em andamento em São Paulo e nas redes de ensino de vários Estados. Desse modo, há demanda por mais profissionais, mesmo diante da projetada redução do número de alunos em decorrência da constante queda nas taxas de natalidade.

O alerta, portanto, está dado: ninguém poderá alegar que foi pego de surpresa. Desde já, evitar o anunciado “apagão” de docentes deve ser uma das prioridades dos governantes que tomarão posse em janeiro.

Inflação nos EUA, risco internacional

O Estado de S. Paulo

Alta de preços eleva risco de novo aumento de juros, afetando o financiamento internacional e o crescimento

Além de assombrar as famílias americanas, a inflação nos Estados Unidos pode resultar em maior aperto financeiro, com efeitos negativos para a economia internacional e perdas especialmente graves para os emergentes, incluindo o Brasil. Os preços ao consumidor subiram 0,4% no mercado americano, em setembro, acumulando alta de 8,2% em 12 meses. Os números foram piores que o estimado pelos especialistas e o mundo financeiro reagiu de imediato. Cotações de papéis caíram nas bolsas, juros subiram e o preço internacional do petróleo recuou.

Novo aumento da taxa básica de juros pelo Federal Reserve (Fed, o banco central americano) foi apontado como altamente provável por analistas de instituições financeiras. Em agosto a inflação acumulada em 12 meses havia chegado a 8,3%. Houve algum recuo, portanto, mas o novo número, pelas previsões, deveria ter ficado em 8,1%. O desajuste nos Estados Unidos ultrapassa o do Brasil, onde os preços ao consumidor subiram 7,17% nos 12 meses até setembro.

Nos dois países houve redução dos preços dos combustíveis, mas o custo da alimentação continua pressionando fortemente os orçamentos familiares. Em 12 meses a comida ficou 11,2% mais cara para os americanos. No Brasil, a alta foi de 11,71% nesse período, mesmo com a redução de 0,51% no último mês.

Juros mais altos nos Estados Unidos tendem a afetar o mercado cambial, provocando valorização do dólar. Isso afeta, no mercado brasileiro, os preços dos produtos importados. Uma das consequências é inflação mais alta. Ao mesmo tempo, juros elevados no mercado americano encarecem os financiamentos e tendem a desestimular o investimento estrangeiro nos mercados emergentes e em desenvolvimento, com efeitos negativos para o crescimento econômico.

Esses fatores elevam o risco de recessão global, mas é preciso insistir no esforço de estabilização dos preços para ancorar as expectativas, comentou a diretora-gerente do Fundo Monetário Internacional (FMI), Kristalina Georgieva. Seria um erro grave aumentar os gastos públicos para tentar compensar os efeitos do aperto monetário promovido pelos bancos centrais. “Quando a política monetária coloca o pé no freio, a política fiscal não deve pisar no acelerador.” Se os governos o fizerem, acrescentou, “correrão o risco de entrar numa trajetória muito perigosa”. “Se não estabilizarmos os preços”, argumentou, “vamos criar mais incertezas para os investidores.”

No Brasil, os candidatos à Presidência da República deveriam dar atenção a essas advertências. As bondades eleitoreiras concebidas pelo candidato à reeleição já devem pressionar perigosamente as contas públicas em 2023. Qualquer novo afrouxamento da política fiscal, na busca de uma reativação da economia, poderá conflitar com o esforço anti-inflacionário do Banco Central. Isso criará uma razão adicional para a manutenção de juros altos e crédito apertado. Seja quem for o presidente eleito, precisará de muita prudência, no primeiro ano de mandato, para ampliar o espaço necessário a uma política de crescimento.

Como gastar

Folha de S. Paulo

Em alerta que vale para o Brasil, FMI defende foco da despesa pública nos pobres

Juros em alta para conter a maior inflação em quase 40 anos, riscos de recessão e tensões geopolíticas que encarecem alimentos e energia formam uma combinação inglória que dificulta a gestão das contas públicas na maioria dos países.

O aumento do custo de financiamento e a necessidade de proteger as populações mais vulneráveis são fatores que levam o Fundo Monetário Internacional (FMI) a projetar que, no agregado, a dívida dos governos atingirá 91% do Produto Interno Bruto mundial neste ano, 7,5 pontos percentuais acima do nível anterior à pandemia.

Diante dos riscos de descontrole, o FMI começa a rever a postura tolerante a déficits dos últimos anos. A recomendação agora é de foco nos mais pobres e austeridade como conduta geral, até para que haja alinhamento com os bancos centrais na tarefa de controlar a inflação. A mensagem da instituição também vale para o Brasil.

Com o vale-tudo de gastos eleitorais patrocinado pelo governo de Jair Bolsonaro (PL), são crescentes as ameaças ao erário. Auxílio Brasil, desonerações de impostos e emendas parlamentares direcionadas politicamente somam cerca de R$ 150 bilhões neste ano.

O impacto negativo na confiança dos credores do governo é evidente, na forma de juros básicos de 13,75% ao ano. Tal custo de financiamento da dívida pública é proibitivo a longo prazo, ainda que o impacto negativo da imprudência do governo não apareça com clareza nos números da dívida —hoje em 77% do PIB na metodologia brasileira e 88% na do FMI.

Isso ocorre por causa do forte crescimento da arrecadação, muito influenciado pelo salto da inflação nos últimos dois anos e pela volta da atividade econômica, que deve crescer mais de 2,5% em 2022.

Ocorre que parte desse desempenho não tem garantia de sustentabilidade. Se a permanência do Auxílio Brasil é meritória, há pressões por muitas outras despesas menos nobres —e as campanhas de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e de Bolsonaro não se preocupam em sinalizar meios de controle.

A coleta de impostos, por sua vez, deve perder força se houver queda nos preço das matérias-primas exportadas pelo país, algo não implausível dada a ameaça de recessão mundial. A ação restritiva do Banco Central para controlar a inflação também deve desacelerar a economia, o que certamente prejudicará a arrecadação.

Diante desse quadro, será necessário antes do fim do ano um trabalho acelerado para consertar o Orçamento fictício elaborado pela equipe econômica de Bolsonaro, contemplando os gastos inevitáveis para o próximo governo.

Ainda Belo Monte

Folha de S. Paulo

Uma década depois, Estado falha em compensar impacto causado pela hidrelétrica

Passaram-se 12 anos desde que o Ibama expediu a licença de instalação da hidrelétrica de Belo Monte, no Xingu (PA), mas ainda prossegue a disputa sobre os impactos causados pela obra portentosa.

A controvérsia sobre o aproveitamento começara muito antes, na década de 1980, com o projeto megalômano de plantar um colar de usinas no rio mais emblemático da questão indígena. Quando governos do PT se decidiram pela construção, o plano havia encolhido para uma única barragem.

Nem por isso o projeto ficou isento de problemas. Especialistas apontaram a desproporção entre o dano socioambiental previsível e a energia que seria produzida.

No ano passado, Belo Monte atendeu cerca de 5% da demanda nacional por eletricidade —quantidade significativa, sem dúvida. Mas isso se obtém com a redução drástica da vazão fluvial e a desfiguração de 100 km do rio, a Volta Grande do Xingu, da qual dependem milhares de ribeirinhos e indígenas.

Como noticiou esta Folha, deu-se o que já se sabia: colapso da pesca. O Ibama exige a solução do problema para dar aval à licença de operação da hidrelétrica, que deveria ter sido renovada há um ano.

A agência, em análise de junho, apontou inconformidades da concessionária Norte Energia na mitigação do impacto. Recomendou que ela pague indenizações a um grupo inicial de 785 pescadores.

Na realidade, há 1.976 domicílios dependentes da atividade, conforme cadastro concluído em 2019. Para o Ministério Público Federal, esse contingente seria ainda maior, acima de 4.000 famílias.

A Norte Energia contesta que esteja em desacordo. Diverge, também, da recomendação para indenizar e propõe um auxílio parcelado em três vezes —condicionado a projetos de geração de renda que a empresa teria o poder de auditar após a primeira parcela e, eventualmente, cancelar as subsequentes.

Não cabe aqui prescrever qual a melhor saída para as agruras dos pescadores. Impõe-se assinalar, porém, o absurdo de nada disso ter sido equacionado antes da operação da usina, como manda a lógica elementar. Fato consumado, sobra aos mais fracos padecer com a arrastada contenda burocrática.

Tal tem sido a perversidade perene de projetos de aproveitamento hidrelétrico no Brasil: dar prioridade a interesses de empreiteiras e concessionárias (para nada dizer de políticos e oportunidades para corrupção), em detrimento do impacto socioambiental da obra. Belo Monte não fugiu à regra.

Não há justificativa para perseguição a pesquisas eleitorais

O Globo

Bolsonarismo mistura pseudociência e oportunismo político ao promover cerco a institutos que medem opinião

A discussão — essencial para a democracia brasileira — sobre as pesquisas eleitorais precisa ser pautada pela lógica e pelo bom senso, não por bravatas oportunistas destinadas a confundir a opinião pública. Fez bem, por isso, o presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ministro Alexandre de Moraes, em barrar as investigações sobre os institutos pela Polícia Federal (PF) e pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade).

Não há justificativa para o cerco armado pelo bolsonarismo contra as empresas de pesquisa, tentativa ridícula de espalhar teses conspiratórias a respeito de um instrumento essencial para informação dos eleitores. Já seria inaceitável envolver nessa pantomima órgãos do Estado, como Cade e PF. Mais absurdo ainda é a Câmara tentar instaurar uma CPI para investigar os institutos ou aprovar o estapafúrdio Projeto de Lei — endossado pelo presidente da Casa, Arthur Lira (PP) — exigindo que pesquisas publicadas a 15 dias da eleição “acertem” o resultado.

Todas essas iniciativas padecem de dois problemas. O primeiro, óbvio, está na origem: foram determinadas por aliados do governo para criar confusão e contribuir para o clima de desinformação de que se nutre o bolsonarismo. O segundo, menos evidente, é estarem todas envoltas num misto de pseudociência e ignorância sobre o que são e o que se pode exigir das pesquisas.

Tome-se ofício em que o presidente do Cade, Alexandre Cordeiro — protegido do ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira —, solicita investigação contra os institutos, acusados de formar cartel para “manipular” as eleições. Juridicamente, a iniciativa não tem pé nem cabeça, pois não cabe ao presidente do Cade determinar investigações. E, mesmo supondo que Cordeiro tivesse razão, o Cade existe para coibir abusos econômicos, não eleitorais.

Quanto às evidências apresentadas para sustentar sua desconfiança, Cordeiro tece um raciocínio falacioso, apoiado sobre premissas falsas. Supõe que pesquisas da véspera deveriam refletir o resultado, quando elas jamais se propuseram a isso, já que o eleitor pode mudar de ideia até a última hora. E ainda mede a discrepância nos números comparando votos válidos, quando as sondagens são realizadas para refletir todo o universo de eleitores — portanto só faria sentido comparar o resultado a proporções sobre o eleitorado total, inclusive os ausentes (a abstenção é, por sinal, a hipótese mais plausível para explicar as divergências constatadas nas sondagens nacionais).

Também em busca de ruído, e com base na mesma visão pseudocientífica, o ministro da Justiça, Anderson Torres, solicitou que a PF abrisse inquérito contra os institutos sem justificativa que embase suspeitas de crime. No Congresso, Lira trabalha para aprovar o projeto que na prática inviabiliza as pesquisas, cerceando o direito do eleitor à informação. Não satisfeito, apoia a coleta de assinaturas para instalar uma CPI sem o menor cabimento.

Tem razão a Associação Brasileira de Pesquisadores Eleitorais (Abrapel) ao se dizer preocupada com “as tentativas de intimidação e criminalização”. É preciso reconhecer que as empresas que medem a opinião pública precisam fazer um exame das causas da discrepância entre suas medidas e vários resultados das urnas. Mas a informação que fornecem continua a ser essencial. O importante é saber lê-la como recomenda a ciência estatística — não a pseudociência bolsonarista.

Governo tem obrigação de rever cortes em programa contra aids

O Globo

Orçamento retira R$ 407 milhões do combate à doença, mas mantém intocado orçamento secreto

Outrora iniciativa exemplar no mundo, o programa brasileiro de prevenção e tratamento da aids deverá perder R$ 407 milhões no ano que vem, cortados no Orçamento do Ministério da Saúde por um governo que tem outras prioridades. Ao todo, a pasta da Saúde corre o risco de sofrer cortes de R$ 3,3 bilhões, de acordo com relatório do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (Ieps) e da associação independente Umane.

Para ter uma ideia da eficácia do programa brasileiro de prevenção, controle e tratamento da aids, o SUS começou a fazer a distribuição gratuita dos primeiros coquetéis de antirretrovirais em 1991, e oito anos depois as mortes haviam caído 50% e as infecções oportunistas contraídas pelos soropositivos 80%. Segundo o Boletim Epidemiológico do Ministério da Saúde, de 2010 a 2020 a mortalidade por aids caiu 30%. Mas o vírus continua a circular na população. Qualquer recuo provocado pela facada orçamentária aumentará o contágio e as mortes.

Os cortes atingirão a compra de drogas antirretrovirais e as estratégias para a fase de pré-exposição ao vírus (PrEP) e para a pós-exposição (PEP), essenciais para quebrar a cadeia de transmissão da doença. Constam da estratégia de enfrentamento ao HIV distribuição de preservativos, testagem e campanhas de esclarecimento, há tempos esvaziadas. O corte de verbas atingirá a espinha dorsal do programa.

A preocupação já começou com a falta de lamivudina, um dos antirretrovirais. O Ministério da Saúde afirma que “laboratórios fabricantes estão com dificuldades para atender ao aumento de demanda”, mas a explicação é vista com ceticismo. “O governo faz um orçamento para comprar um medicamento, mas desse valor empenha apenas metade e não justifica”, diz Marcio Villard, coordenador-geral do Grupo Pela Vidda, ONG voltada a atender portadores do HIV.

Desestabilizar o programa de combate à aids significa criar todas as condições para uma grave crise de saúde pública. Em 2019, último ano antes da pandemia, havia 37.731 novas infecções por HIV anuais, cerca de 10 mil a mais do que há 20 anos. A fragilização poderá levar o país a retroceder mais de uma década no enfrentamento da aids. É preocupante também o crescimento da contaminação entre os jovens. De 2009 a 2019, a taxa de infecção pelo HIV se manteve estável na população, mas subiu 24% na faixa de 15 a 24 anos. Por falta de campanhas de esclarecimento ou por confiarem na eficácia dos coquetéis antirretrovirais, os mais jovens têm sido mais descuidados.

Ao mesmo tempo que pretendem cortar os R$ 407 milhões do programa anti-HIV/aids, o Congresso e o Executivo mantêm intocadas as emendas do relator que irrigarão com R$ 19,4 bilhões obras paroquiais indicadas pelos parlamentares, sem nenhum critério técnico nem transparência. No orçamento secreto, ninguém corta.

 

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