sábado, 15 de outubro de 2022

Demétrio Magnoli - Feitiço e feiticeiro

Folha de S. Paulo

O feitiço identitário volta-se contra os feiticeiros e não só na distante ilha de Shakespeare

O gabinete original britânico da primeira-ministra Liz Truss condensava os sonhos mais extremos dos ideólogos das políticas identitárias. No seu núcleo, as "Grandes Pastas de Estado", não figurava nenhum homem branco. O (agora demitido) ministro das Finanças, Kwasi Kwarteng, é negro, filho de imigrantes de Gana. A mãe de James Cleverly, ministro do Exterior, também negro, imigrou da Serra Leoa. A ministra do Interior, Suella Braverman, é negra, filha de imigrantes africanos.

A descrição identitária não deve ocultar a descrição política. Truss formou o governo britânico mais conservador e sectário desde o pós-guerra. São leninistas da direita, segundo a Economist. Na economia, seguem uma cartilha ultraliberal de alegadas raízes thatcheristas. Na política, uma cartilha antieuropeísta e xenófoba apoiada na nostalgia da "Pequena Inglaterra".

O feitiço identitário volta-se contra os feiticeiros —e não só na distante ilha de Shakespeare. Entre os deputados federais eleitos no Brasil, a maioria absoluta dos autodeclarados negros pertence a partidos da coalizão de Bolsonaro, com destaque para PL, Republicanos e PP. No Senado, entre os seis eleitos que se declaram negros, quatro pertencem a partidos bolsonaristas.

"Negro vota em negro", clamaram ativistas do identitarismo racial. Ninguém sabe se a campanha funcionou, pois o voto é secreto. Sabe-se, contudo, sem erro, que cor e ideologia andam em trilhos separados.

Os porta-vozes da política identitária ficaram confusos diante do gabinete ultraidentitário de Truss, mas escolheram criticá-lo nos termos da linguagem identitária. "Não é suficiente ser negro ou de uma minoria étnica; representação não é isso", fulminou um deputado da esquerda trabalhista. Tradução: negros que pensam diferente de mim não representam os negros.

Por aqui, sempre vamos além. "Os tais candidatos negros de direita são negros mesmo?", tuitou o Instituto Luiz Gama, presidido por Silvio Almeida. O insulto habitual é aplicar ao negro "errado" o rótulo de "capataz da Casa Grande". No caso, porém, inaugura-se o procedimento revolucionário de expropriação de cor: o negro que não concorda com as políticas de raça nem negro será. Logo, alguém se levantará para cassar a identidade étnica da indígena bolsonarista Silvia Waiãpi, eleita deputada pelo Amapá.

O "voto identitário" não funcionou, do ponto de vista da esquerda. Mas qual será o efeito eleitoral mais amplo das políticas identitárias?

Nos EUA, ao longo de décadas, ajudaram a empurrar a maioria dos brancos para o Partido Republicano – e já transferem votos das minorias. Trump, o republicano mais à direita desde Barry Goldwater (1964), incrementou sua parcela do voto hispânico entre 2016 e 2020 (29% a 32%, a maior de um republicano desde 2004) e até do voto negro (8% a 12%, a maior de um republicano desde 1980). Lá, a esquerda identitária amplia o eleitorado da direita nacionalista e antidemocrática.

Há indícios de que algo similar ocorre no Brasil. A direita bolsonarista replica o discurso identitário, mas com um ajuste crucial, operando com signos de identidade que apelam à unidade: a religião ("somos todos filhos de Deus") e a pátria ("todos somos brasileiros"). A estratégia revela-se mais eficiente que a proposição de fragmentar os cidadãos em grupos raciais condenados ao conflito perene. Como atestam o gabinete de Liz Truss e a bancada negra bolsonarista, nada disso impede a incorporação dos adereços do identitarismo racial.

Nossos parlamentares negros de direita não promoverão a reforma das polícias ou direitos universais à saúde e educação. Mesmo assim, a esquerda identitária tem algo a comemorar: eles não votarão contra a eternização das cotas raciais nas universidades —e, por interesse próprio, ajudarão a estendê-las para a distribuição de cadeiras no Congresso.

3 comentários:

Anônimo disse...

O colunista volta à sua rotina: tentar ocultar seus preconceitos misturando alhos com bugalhos...

ADEMAR AMANCIO disse...

Demétrio não tem medo de polêmica.

marcos disse...

O movimento negro mente porque a Folha paga.O anônimo prova.

Demétrio na ferida!

MAM