O Globo
Decisão do voto deixou de ser só a
expressão de uma preferência política e passou a ser manifestação de uma identidade
Ao final da eleição de 2018, achávamos que
o Brasil havia experimentado uma ruptura, em que as campanhas de TV e rádio, o
uso da máquina pública e o financiamento eleitoral deixaram de ser ferramentas
decisivas. Quatro anos depois, os fatos mostraram que a vitória de Jair
Bolsonaro não foi uma ruptura — um evento capaz de interromper
definitivamente uma tendência observada na História —, mas um acontecimento
fora da curva. A derrota de Bolsonaro em 2022 mostrou que, mais que os
instrumentos de campanha, são as profundas divisões na sociedade brasileira que
determinam o resultado.
A campanha de 2022 mostrou que a decisão do voto deixou de ser apenas a expressão de uma preferência política e passou a ser manifestação de uma identidade. O interessante é que não se trata de mera compatibilidade partidária, mas de uma identidade consolidada em torno do sentimento do que é ser petista ou antipetista. Tomando emprestado um termo usado pelos cientistas políticos John Sides, Chris Tausanovitch e Lynn Vareck para descrever a polarização nos EUA pós-Donald Trump, a eleição de 2022 no Brasil calcificou o mecanismo de escolha, em que os interesses perderam força para as paixões.
O embate entre Lula e
Bolsonaro apenas consolidou ainda mais os alinhamentos políticos criados nos
anos de polarização entre PT e PSDB. O que era um “nós contra eles” — por pior
que ele fosse, ainda admitia a existência do outro — se tornou um “apenas nós
temos o direito legítimo de representar o Brasil”.
Essa calcificação da opinião pública é
visível na estabilidade das escolhas dos eleitores em 2022 em comparação com
2018, 2014 e 2010. Há uma forte relação entre como um estado vota no PT numa
eleição e como vota noutra, mesmo sem Lula candidato. Essa estabilidade no
nível estadual também se observou no nível municipal. A volatilidade entre um
ciclo eleitoral e o seguinte vem permanecendo estável há algum tempo. Desde
2010, o padrão de votação nos municípios se repete. Apesar de todas as
reviravoltas da presidência de Bolsonaro, da pandemia e da grave crise
econômica e social que atingiu o país, teria sido possível prever com muita
confiança os resultados por município nas eleições de 2022 simplesmente
conhecendo os resultados de 2010, 2014 e 2018.
Como essa calcificação das identidades políticas
em torno do petismo e do antipetismo afetarão a sociedade brasileira nos
próximos anos e, em especial, no próximo governo? Esse enrijecimento dos lados
transforma os eleitores em torcedores apaixonados, que tornam essa identidade o
que melhor define sua posição na sociedade. Essas identidades calcificadas numa
sociedade altamente polarizada, por sua vez, afetarão nosso comportamento
cotidiano. As escolhas sobre onde matricular seu filho, que bares e
restaurantes frequentar, com que membros da família se relacionar, que marcas
consumir, que canais de TV e rádio buscar passarão cada vez mais pela afirmação
dessas identidades políticas muito enrijecidas.
O presidente eleito governará um país em
que se tem menos vontade de desertar de seu próprio grupo político. Compreender
a extensão da calcificação política entre os brasileiros, e que conteúdo tem
força para flexibilizar tais posturas, é o principal desafio do governo Lula,
mas não apenas dele. O novo Congresso será mais pressionado, a paciência com os
novos governadores será curta, a cobertura da mídia será contestada por parte
do público desde o primeiro dia, e as empresas terão dificuldade de posicionar
suas marcas. O Brasil de opiniões calcificadas é um dilema para todos os
brasileiros.
*Felipe Nunes é PhD em ciência política e
mestre em estatística pela UCLA, professor da UFMG e diretor da Quaest, Thomas
Traumann é jornalista e pesquisador da Escola de Comunicação, Mídia e
Informação da Fundação Getulio Vargas (Ecmi-FGV)
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