segunda-feira, 28 de novembro de 2022

O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

Apesar do silêncio, Bolsonaro corre para nomear aliados

Valor Econômico

É preciso acompanhar com atenção as indicações que Bolsonaro fará até deixar de vez o Palácio do Planalto

O silêncio de Jair Bolsonaro (PL) desde a derrota para o presidente eleito da República, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), tem gerado expectativas entre aliados e chamado a atenção da equipe de transição. Em mais uma eloquente entrevista, o vice-presidente Hamilton Mourão, por exemplo, argumentou que Bolsonaro saíra do pleito concluído no último fim de semana de outubro com um capital político de 58 milhões de votos e, portanto, estava mais do que apto a liderar a direita.

Para que isso ocorra, todavia, Mourão fez uma ponderação: o chefe do Poder Executivo teria que sair da reclusão autoimposta no Palácio da Alvorada e trabalhar politicamente. “O presidente Bolsonaro, quando emergir do retiro espiritual dele, vai compreender que ganhou esse capital. Acho que ele tem que se posicionar no espectro político, trabalhar politicamente. Vai ser a primeira vez desde 1989 que ele não tem mandato. São 33 anos, é uma vida. É ele entender que agora ele terá uma posição dentro do PL, de presidente de honra. Ou seja, aqui em Brasília, articulando, tem todo o capital para voltar muito bem em 2026. Desde que ele saiba explorar bem isso aí”, declarou ao Valor Mourão, senador eleito pelo Rio Grande do Sul.

Diversos dias se passaram até que Bolsonaro, enfim, retomou as agendas públicas no sábado. Ele deslocou-se da capital federal até Resende, no Rio de Janeiro, onde participou da "Cerimônia do Aspirantado 2022" na Academia das Agulhas Negras (Aman). Mas não discursou. Isso não quer dizer, contudo, que não esteja atuando, nos bastidores, para ter aliados em cadeiras de destaque durante o período em que irá ficar na oposição.

Em alguns casos, inclusive, as nomeações poderão ajudá-lo a se proteger de futuros problemas judiciais. Dois exemplos: as nomeações do ministro da Secretaria de Governo, Célio Faria Junior, e do chefe de sua assessoria especial, João Henrique Nascimento de Freitas, para a Comissão de Ética Pública. É este o colegiado que trata de conflitos de interesse no primeiro escalão do governo, o qual tem ainda outros cinco nomeados por Bolsonaro. Todos eles com mandatos de três anos, cujas indicações não são submetidas à apreciação do Congresso e só podem ser alteradas por renúncia.

Existem, contudo, outros pontos de atenção. Na semana passada, o plenário do Senado aprovou as indicações de 25 autoridades: 13 embaixadores, 7 diretores de agências reguladoras e 5 indicados para conselhos ou tribunais superiores. Entre estes, dois nomes para o Superior Tribunal de Justiça (STJ) e um para o Tribunal Superior do Trabalho (TST).

Quanto aos órgãos reguladores, foram preenchidas vagas para a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) e Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq) - órgãos de Estado que terão grande poder de influenciar a implementação das políticas públicas setoriais do próximo governo.

A chancelaria não ficou de fora. Em seu mais recente esforço concentrado, o Senado aprovou as indicações para as embaixadas da África do Sul, Costa Rica, Guatemala, Guiné Equatorial, Jordânia, Líbano, Mauritânia, Sudão, Tanzânia, Tunísia e Vietnã. Postos importantes para a execução da política externa brasileira em relação à África, ao Oriente Médio e outros pontos estratégicos do planeta.

Em alguns casos, aliados de Lula no Congresso até tentaram adiar o avanço das sabatinas e apreciações de nomes indicados por Bolsonaro. Mas, ao concentrar os esforços nas articulações para a aprovação da proposta de emenda constitucional que abre espaço no Orçamento do ano que vem para o novo Bolsa Família e demais despesas, o gabinete de transição não teve força política suficiente para barrar as nomeações. O máximo que conseguiu foi acertar com a cúpula do Senado que apenas postos de menor relevância diplomática fossem ocupados, à medida em que será aguardado o início do governo Lula para o preenchimento das embaixadas de Buenos Aires, Paris, Roma e Vaticano, entre outras.

Bolsonaro pode manter-se longe dos holofotes até o dia 31 de dezembro. É possível, inclusive, que saia oficialmente de férias para não precisar participar da cerimônia de posse de Lula. Mas será preciso acompanhar com atenção as indicações que fará até deixar de vez o Palácio do Planalto.

‘Revogaço’ não basta para conter desmatamento

O Globo

Novo governo terá de investigar e punir os criminosos responsáveis pela devastação da Amazônia

A COP27 ainda transcorria em Sharm El-Sheikh, no Egito, quando o Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon) divulgou que, de janeiro a outubro, o desmatamento na região chegou perto de 10 mil quilômetros quadrados, seis vezes a área da cidade São Paulo. Tratava-se de mais uma evidência de que a máquina de destruição da floresta, acionada no atual governo com a liberação da Amazônia para madeireiros e garimpeiros ilegais, acelerava a devastação diante da possibilidade de derrota de Jair Bolsonaro nas eleições. A corrida das motosserras alcançou o segundo pior resultado na destruição da Amazônia dos últimos 15 anos.

As informações são um prenúncio de que o sistema Prodes, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), deverá trazer dados alarmantes sobre o período de agosto de 2021 a julho último. No ano passado, o Prodes registrou o pior desmatamento em 15 anos: 13,3 mil quilômetros quadrados.

Em seu levantamento, o Imazon identificou 627 quilômetros quadrados de destruição em outubro, queda de 22% ante o ano anterior. A boa notícia é ilusória. No Pará, onde houve a maior concentração na derrubada da floresta (56%), foram atingidas sete das dez áreas de conservação. Também no Pará estão dez das reservas indígenas mais destruídas.

Uma reportagem do Fantástico deu a dimensão da indústria da devastação que hoje opera na Amazônia. Acompanhando operações da Polícia Federal e do Ibama em sete terras indígenas durante nove meses, com a ajuda de tecnologia de rastreamento por satélite, celulares e câmeras acionadas por movimento, os repórteres seguiram carregamentos de madeira ilegal por mais de 3 mil quilômetros até chegar às serralherias. Tudo estava encoberto por documentação fria.

O delegado da PF acompanhado pela reportagem, Roberto Moreira da Silva Filho, bastante ativo na repressão ao desmatamento, foi morto com um tiro na cabeça quando policiais atiraram num caminhão de madeireiros que avançou sobre um bloqueio montado por eles e por agentes do Ibama. O tiro partiu de um policial, e as investigações concluíram que foi acidente. Apesar disso, um dos fiscais do Ibama disse que o destino do delegado era uma prova de como o crime organizado tomou conta da Amazônia.

A equipe de transição já anunciou um “revogaço” das diretrizes ambientais da gestão Bolsonaro no início do novo governo. Um trabalho exaustivo do projeto Política por Inteiro vasculhou 140 mil atos relacionados ao meio ambiente do atual governo e identificou 2.189 medidas infralegais que configuram a proverbial “boiada” anunciada pelo ex-ministro Ricardo Salles na reunião ministerial de 22 de abril de 2020. O estudo recomenda a revisão de 855 desses atos: 107 revogados de imediato, 276 submetidos a ajustes, e os demais, embora expirem no fim do ano, precisam ser analisados para compreensão da destruição da política ambiental.

A aceleração da devastação e o avanço do crime organizado mostram que o novo governo precisará de bem mais que apenas revogar leis, normas e portarias para voltar a proteger a região. Forças de segurança terão de enfrentar as organizações criminosas. Grileiros, garimpeiros e madeireiros ilegais precisarão ser investigados, denunciados, julgados e punidos. Levará tempo.

Relatório do TCU serve de ponto de partida para melhorar gestão pública

O Globo

Documento entregue ao vice eleito Geraldo Alckmin faz sugestões com base na situação crítica do Estado

Não será por falta de informações que o novo governo deixará de se preparar para assumir em 1° de janeiro. Diante das dificuldades encontradas para obter dados do Executivo, o Tribunal de Contas da União (TCU), a pedido do vice-presidente eleito, Geraldo Alckmin, produziu um alentado diagnóstico para a nova gestão entender o que encontrará pela frente, sugerindo medidas a partir da realidade da máquina pública.

A estrutura de fiscalização e punição de crimes ambientais (Ibama e ICMBio) foi destroçada e precisará ser reerguida com rapidez. Na área da Saúde, o diagnóstico do TCU traça um quadro dantesco do desmonte do Programa Nacional de Imunizações (PNI). Outros problemas, pouco visíveis para a sociedade, precisarão ser identificados e resolvidos logo para não se transformarem em crise mais adiante.

A Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf) expandiu sua área de atuação para atender a interesses políticos. Incluiu Parnaíba no nome para abranger todo o Nordeste. Hoje vai de Minas ao Amapá, passando por Goiás. Essa gigantesca estatal, transformada num veículo de distribuição das verbas do orçamento secreto pelo Centrão, é destaque nas análises entregues pelo TCU à equipe de transição.

Há quatro anos, 24% das emendas parlamentares destinaram-se à Codevasf. No ano passado, quase 62%. Os auditores do TCU constataram que a empresa não faz uma análise eficiente do interesse social dos projetos, nem da regularidade jurídica e fiscal dos beneficiados pelas emendas parlamentares. Deduz-se que isso se deve ao interesse político em torno dos repasses. O TCU avaliou que a estatal também não tem capacidade de acompanhar ou controlar com eficiência o uso dos recursos repassados. Não é por acaso que existem tantas denúncias de superfaturamento em concorrências abertas pela Codevasf.

Também no pagamento do funcionalismo e de benefícios sociais há desvios. Um exemplo foi a inclusão de militares e outros servidores públicos entre os beneficiários do Auxílio Emergencial destinado às famílias carentes durante a pandemia. Casos semelhantes foram encontrados na distribuição do Auxílio Brasil. O diagnóstico do TCU pode ajudar o novo governo a identificar falhas no controle e monitoramento desses gastos bilionários do Estado.

Na entrega das informações a Alckmin, o presidente em exercício do TCU, ministro Bruno Dantas, fez ainda menção aos mais de R$ 450 bilhões que o Estado deixa de arrecadar por ano na concessão de incentivos fiscais. Tal volume de recursos deveria ser avaliado sob a ótica da eficácia. Será preciso revisar os benefícios fiscais e apresentar um plano para cancelar o que não faz sentido.

Um Estado com a carga tributária mais alta no bloco dos emergentes precisa zelar pela eficiência em seus gastos, de modo a liberar recursos para políticas sociais sem ameaçar a responsabilidade fiscal e a estabilidade econômica.

Contando famílias

Folha de S. Paulo

Apuração de distorções no Auxílio Brasil é outro motivo para prudência com gasto

Passou quase despercebida —e não está devidamente contemplada nas discussões sobre os gastos do próximo governo— a abertura recente de um procedimento para apurar distorções no Auxílio Brasil.

Em 4 de novembro, cinco dias depois do segundo turno da eleição presidencial, o Ministério da Cidadania iniciou um processo de averiguação de famílias compostas por apenas uma pessoa que ingressaram no Cadastro Único, que reúne beneficiários em potencial de programas sociais, entre novembro de 2021 e outubro de 2022.

No período em questão, segundo a pasta, o número de famílias unipessoais cadastradas mostra um aumento repentino de 8,9 milhões para 13,9 milhões. Nenhuma transformação demográfica da sociedade brasileira explica tal salto.

Não por acaso, elevou-se também a quantidade de famílias unipessoais atendidas pelo Auxílio Brasil, de 2,2 milhões para 5,3 milhões em menos de um ano.

Note-se que, com o benefício fixado em R$ 600 mensais, um acréscimo de três milhões de atendidos pelo programa de transferência de renda significa um gasto adicional acima de R$ 20 bilhões ao ano.

Ao instaurar o procedimento de apuração do cadastro, a pasta da Cidadania provavelmente confirmará o que diversos especialistas têm apontado —que erros no desenho do Auxílio Brasil, em particular o pagamento de um mesmo valor sem considerar o número de filhos, têm levado famílias a se reconfigurarem artificialmente.

Vale dizer: uma família em que há três adultos, por exemplo, pode se inscrever como três famílias unipessoais e triplicar o valor recebido do programa.

O impacto da averiguação já é tema de preocupação na equipe de transição do presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), como noticiou o jornal O Estado de S. Paulo. O processo de checagem das famílias e de eventuais bloqueios e cancelamentos do auxílio deve avançar ao longo do próximo ano.

Será fundamental que o novo governo também considere mudanças no programa que não se limitem ao previsível restabelecimento da marca Bolsa Família.

Quaisquer que sejam o número de irregularidades descobertas e os valores poupados, urge adotar regras que levem em conta o número de filhos e o grau de carência de cada domicílio para o cálculo dos benefícios. Do contrário, uma iniciativa fundamental para o combate à pobreza e à desigualdade social perderá eficiência.

Trata-se também de mais um argumento contra a licença para expansão de gastos por tempo indeterminado desejada por Lula. É preciso, antes de tudo, um levantamento criterioso da clientela a ser atendida e do dinheiro necessário.

Idas e vindas culturais

Folha de S. Paulo

Lula indica intento de recriar pasta e rever Rouanet, mas Orçamento impõe limite

Ao assumir a Presidência, Jair Bolsonaro (PL) extinguiu o Ministério da Cultura e anunciou reformas na Lei Rouanet. O discurso reverberado por sua claque, ao mesmo tempo agressivo e ingênuo, era o de que "a mamata acabou".

Pela Rouanet, projetos selecionados podem buscar patrocínio em empresas privadas que terão direito a abatimento de impostos. A ideia é defensável, mas a execução sempre deu margem a críticas, muitas delas fundamentadas.

Entre elas se destaca a captação para produtos e artistas consagrados que poderiam se financiar no mercado —como R$ 1,3 milhão para um blog de poesias da cantora Maria Bethânia, em 2011, ou R$ 28,6 milhões para o musical "O Fantasma da Ópera", em 2018.

A reforma feita pelo atual governo trouxe mudanças interessantes, como a tentativa de reduzir a concentração de iniciativas na região Sudeste. O limite de captação por proponente caiu de R$ 60 milhões para R$ 10 milhões, podendo aumentar em 50% para projetos no Sul e dobrar no Norte e Nordeste.

O presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), anunciou que o Ministério da Cultura voltará —o que parece ter mais importância simbólica do que administrativa— e o grupo da área na sua equipe de transição pretende reexaminar as mudanças na Lei Rouanet.

Políticas públicas podem e devem ser revistas e aperfeiçoadas, por óbvio. No caso em tela, deve-se tomar o cuidado de não fazê-lo em um impulso revanchista contra os ataques do bolsonarismo.

Desde o colapso orçamentário do governo Dilma Rousseff (PT), a administração federal tem mirado uma redução do excesso de programas baseados em subsídios tributários, que ainda somam mais de R$ 300 bilhões anuais.

A área cultural decerto responde por uma parcela modesta desse montante, cerca de R$ 4 bilhões estimados para 2023. Mesmo assim, qualquer ampliação deve levar em conta benefícios e custos em um Orçamento já depauperado.

É papel do poder público incentivar e proteger a produção cultural, em especial nos casos de orquestras, museus, patrimônio histórico, folclore. Mas boa parte dessa produção se insere numa indústria cultural e, logo, está atrelada a princípios econômicos básicos.

Deveria ser do interesse da classe artística obter autonomia, sem depender primordialmente do Estado. Para tanto, o mesmo Estado não pode sufocar a economia.

O novo governo e o valor da Federação

O Estado de S. Paulo

Depois de quatro anos de desarranjo nacional, surge uma oportunidade de retomar a ideia de Federação e a cooperação entre o poder central e os governos estaduais e municipais

Revalorizar a Federação e retomar a cooperação entre o governo central e os governos estaduais devem ser algumas das primeiras iniciativas do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva. Isso será essencial tanto para grandes ações inovadoras, como a reforma tributária, quanto para a boa condução, no dia a dia, das ações administrativas. A primeira reunião com os governadores eleitos, prevista para 7 de dezembro, está sendo preparada com ajuda do governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha, coordenador do Fórum Nacional de Governadores.

A cooperação entre Brasília e os poderes subnacionais foi praticamente nula nos últimos quatro anos e renegada quando se tratou de combater a pandemia. Muito mais do que a um estilo de governo, esse abandono do vínculo entre os níveis administrativos é atribuível à miséria da ação governamental do presidente Jair Bolsonaro.

Em todo o mandato, suas ações foram marcadas principalmente por objetivos pessoais e familiares, por voluntarismo e por improvisação. Se pelo menos o ministro da Economia tivesse recorrido a algum planejamento, a história poderia ter sido um pouco diferente. Mas a gestão econômica foi muito bem alinhada ao – por assim dizer – estilo bolsonariano, sem planos, sem projetos claros e sem visão de longo prazo.

A relação entre poder central e poderes subnacionais foi brutalmente afetada por interesses eleitorais – particulares, portanto – do presidente Bolsonaro, quando ele conseguiu do Congresso uma redução do tributo estadual sobre combustíveis, eletricidade, telecomunicações e transporte. Possibilitado por uma violência contra o princípio federativo, esse lance demagógico produziu benefícios de caráter eleitoreiro e até freou, temporariamente, os indicadores de inflação. Mas foi insuficiente, enfim, para o objetivo principal do presidente, a reeleição.

Sobraram, naturalmente, enormes perdas de arrecadação para Estados e municípios, com inevitáveis prejuízos para serviços prestados a dezenas de milhões de brasileiros. Este será, muito provavelmente, um dos temas de conversas entre o futuro presidente da República e os governadores eleitos. Não há como prever com detalhes os possíveis desdobramentos dessa discussão. Mas a colaboração com os governadores, um objetivo muito valorizado pelo presidente eleito, poderá produzir resultados de grande alcance em vários campos.

Um dos mais importantes será a reforma tributária. O atual ministro da Economia nunca foi além, nas suas propostas, de mudanças limitadas na área dos tributos federais e, nos momentos de maior ousadia, de uma ressurreição do malfadado imposto do cheque, a Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF), uma das maiores aberrações da história tributária do Brasil. Nenhuma iniciativa séria, nesse assunto, pode passar longe de uma ampla revisão dos tributos indiretos, a começar pelo Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), principal fonte de receita própria dos Estados.

Importantíssimo como gerador de recursos, o ICMS representou um avanço quando foi implantado, em 1967, mas também se tornou, ao longo de mais de meio século, uma fonte de distorções econômicas e de desigualdade. Qualquer projeto sério e abrangente de reforma deve incluir, entre seus objetivos, maior funcionalidade do imposto, maior compatibilidade com a integração global da economia e mais justiça distributiva. Não há como cuidar dessas questões sem tratar do maior tributo estadual. Pelo menos dois projetos já apresentados no Congresso enfrentam tecnicamente essas questões. O presidente eleito terá, portanto, um bom ponto de partida para discutir com os governadores a modernização tributária, podendo dispor, já se sabe, de respeitável assessoria técnica.

Em muitas outras áreas o futuro presidente poderá revalorizar a ideia de Federação e a colaboração com os governos subnacionais. Infraestrutura, educação, saúde pública, formação de capital humano e saneamento são campos óbvios de cooperação. E tudo recomeça, é claro, com a redescoberta da própria ideia de governo.

Ofensiva política contra o Judiciário

O Estado de S. Paulo

Parlamentares precisam ler a Constituição: pedidos de CPI contra Judiciário e de impeachment contra ministros do STF em razão de decisões judiciais violam a separação dos Poderes

Um sintoma da atual crise brasileira é a irresponsabilidade. Gente com cargo público, que se comprometeu a respeitar a Constituição, tem atuado como se o único critério a pautar sua atuação fosse agradar a seu eleitorado. Para essa turma, não há separação de Poderes, não há limite constitucional. Para insuflar os apoiadores, vale até achacar o Judiciário.

Na semana passada, o deputado federal Marcel van Hattem (Novo-RS) protocolou o pedido de abertura de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar suposto abuso de autoridade do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). O documento fala em “violações de direitos e garantias individuais contra cidadãos brasileiros, políticos e também contra pessoas jurídicas, perpetradas por ministros das cortes superiores”. Segundo informou Marcel van Hattem, mais de 180 deputados apoiaram o pedido para investigar.

Além disso, cinco senadores – Eduardo Girão (Podemos-CE), Lasier Martins (Podemos-RS), Luís Carlos Heinze (PP-RS), Plínio Valério (PSDB-AM) e Styvenson Valentim (Podemos-RN) – apresentaram no Senado um pedido de impeachment contra o ministro do STF Luís Roberto Barroso. Segundo Plínio Valério, o pedido “é um recado para essa gente”, para “esse pessoal que está indo às ruas há vários dias, dando exemplo do que é ser patriota. (...) Vocês não podem esmorecer. Não desistam também do Senado”. Ou seja, o senador reconhece abertamente que o motivo real da denúncia de crime de responsabilidade contra um ministro do STF – um ato jurídico seriíssimo – foi agradar a manifestantes golpistas.

O Poder Judiciário produz diariamente muitas decisões equivocadas. O STF e o TSE não são exceções: diversos julgamentos merecem crítica e reforma, por variadas razões. Há decisões com análise superficial dos fatos. Há decisões que fazem interpretações amplas demais do Direito. Há decisões que extrapolam a competência do órgão julgador. Há decisões que demoram demais para serem tomadas. Há decisões liminares monocráticas que deveriam há muito tempo ter sido julgadas pelo colegiado. Sim, a Justiça tem muitos problemas; alguns deles bastante graves.

No entanto, o caminho para corrigir equívocos judiciais é dado pela lei processual, que prevê a possibilidade de diversos recursos. Não é fazendo pressão política sobre membros do Judiciário nem muito menos criminalizando a atividade jurisdicional. A tal da CPI do Abuso de Autoridade e o pedido de impeachment contra o ministro Luís Roberto Barroso são tentativas de violar a separação e a independência dos Poderes. Vale lembrar que já existe precedente do tratamento a ser dado a esse tipo de manobra. Em agosto do ano passado, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, rejeitou, por absoluta inépcia, um pedido de impeachment contra o ministro Alexandre de Moraes que havia sido apresentado pelo presidente Jair Bolsonaro.

A Constituição garante as liberdades de expressão e de opinião. No regime democrático, especialmente importante é o direito à crítica ao exercício do poder, que inclui, por óbvio, as decisões judiciais. Todos os cidadãos, também os parlamentares, têm direito a criticar julgamentos do STF e do TSE. Mas criticar não significa desobedecer a decisões judiciais nem estimular sua desobediência. Na República, decisão judicial se cumpre. Isso significa que uma coisa é criticar uma decisão; outra muito diferente é desautorizar essa decisão, desqualificando o órgão julgador, simplesmente porque se discorda de sua aplicação do Direito.

A Lei do Abuso de Autoridade (Lei 13.869/2019) dispõe, em seu primeiro artigo, que “a divergência na interpretação de lei ou na avaliação de fatos e provas não configura abuso de autoridade”. Com a tentativa de instaurar CPI contra o Judiciário em função de decisões judiciais e processo de impeachment pelo mesmo motivo, os parlamentares estão descumprindo a própria lei que o Congresso aprovou.

No Estado Democrático de Direito, não cabe achaque ao Judiciário. Afinal, não existe democracia sem Justiça independente.

Dilema brasileiro

O Estado de S. Paulo

Apertada, a maioria dos brasileiros precisa escolher entre pagar a conta de luz e comprar bens de consumo

Pagar a conta de luz ou comprar bens de consumo – esta vem sendo uma escolha obrigatória para 72% dos brasileiros, segundo pesquisa do Datafolha para a Associação Brasileira dos Comercializadores de Energia Elétrica (Abraceel). Economizar eletricidade, uma das providências possíveis para atenuar o problema, acaba sendo uma solução menos eficiente do que pode inicialmente parecer. Afinal, o preço da eletricidade está embutido também no custo dos produtos consumidos. A energia elétrica representa, em média, 23,1% do preço da cesta básica no Brasil, de acordo com estudo encomendado pela Associação de Grandes Consumidores Industriais de Energia e de Consumidores Livres (Abrace) e divulgado em julho.

Custos diretos e indiretos da eletricidade são obviamente mais pesados para famílias de menor renda, aquelas normalmente mais afetadas pela inflação. As tarifas de energia elétrica até diminuíram para a maior parte das famílias, nos últimos meses, graças à redução de impostos, mas o aperto orçamentário continuou. Tem-se discutido se a situação dos consumidores poderia melhorar, se houvesse mais empresas fornecedoras de eletricidade e se eles pudessem escolher de quem comprar. Essa discussão pode ser relevante para todos ou quase todos os tipos de consumidores, familiares ou empresariais, mas o problema real, no Brasil, é mais complicado.

No último ano, 44% dos brasileiros deixaram de pagar alguma conta de luz, segundo a pesquisa do Datafolha, mas às vezes é preciso cortar alguma compra. Não se pode, no entanto, vincular esse dilema apenas ao custo da eletricidade. A conta de luz foi posta de lado, em algum momento, provavelmente porque a alternativa seria o corte de algo inadiável, como comida, por exemplo.

O custo da eletricidade, assim como o do gás, é um problema especialmente grave, no Brasil, porque a maior parte das famílias é pobre e porque, além disso, a inflação raramente dá alguma trégua. Em outubro, por exemplo, o gás de botijão ficou 0,67% mais barato e a tarifa de eletricidade subiu menos que em setembro, com a variação mensal passando de 0,78% para 0,30%. Mas o custo de alimentos e bebidas subiu 0,72%, depois de ter recuado 0,51%, e foi o principal componente do aumento do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA). No ano, o item alimentos e bebidas encareceu 10,32%. Em 12 meses, 11,21%, com elevação muito superior à da média geral dos preços, 6,47%.

Inflação persistente, alimentada pela incerteza fiscal e pela frequente oscilação do dólar, é um problema social associado só em parte ao custo da energia. Num país com muita pobreza e com ampla informalidade no mercado de trabalho, a vulnerabilidade a qualquer aumento de preço é condição da maior parte das famílias. A volatilidade do consumo neste ano tem sido um componente desse quadro. Apesar da expansão observada em vários momentos, neste ano, em 12 meses o volume de vendas do comércio varejista foi 0,7% menor que no período anterior. A conta de luz foi parte apenas parte desse aperto.

Um comentário:

Anônimo disse...

Esses editoriais deixam claro a tragédia do DESgoverno do palerma da República.
Só escombros, SÓ DESTRUIÇÃO DEIXADOS PELO GENOCIDA.

LULA TERÁ MUITO TRABALHO PRA RECONSTRUIR O BRASIL.

E O DIAGNÓSTICO DO ESTRAGO AINDA NAO TERMINOU.