Folha de S. Paulo
Só acordos programáticos e instituições de
controle fortes impedirão que governos de coalização degenerem em predação
"Não se assuste, é o governo que
cai." "Mas eu ouço aclamações..." "Então é o governo que
sobe. Não se assuste. Amanhã é dia de cumprimentá-lo!"
A imprensa tem noticiado a criação de dez
novas pastas ministeriais, um aumento de 40%, número que será provavelmente
ampliado. Sim, os partidos da base potencial do governo "querem um
carinho", como afirmou um senador do PT. A expectativa é que a
distribuição das pastas irá reger-se pela realpolitik de governos de coalizão.
Ou, pelo menos, deveria: dela dependerá a governabilidade futura.
Governos de coalizão são encontrados em 80% dos sistemas parlamentaristas e em mais da metade dos presidencialistas e semipresidencialistas; são a regra mais que exceção, ainda que para alguns analistas pareça uma patologia institucional. E ela implica em partilha de poder —o que na prática se manifesta na distribuição do portfólio ministerial e de postos de comando nas estatais.
Mas o horror às coalizões não denota apenas
desconhecimento. Entre nós, ela tem ancoragem real no atávico governismo,
pintado com escárnio por Machado de Assis em "Esaú e Jacó", de onde
retiro o diálogo citado, e na sua associação com a corrupção e a captura de
rendas.
Nos governos anteriores do PT, o número de
ministérios era disparado o maior da América Latina e mais que o dobro da média
europeia, atingindo 39 sob Dilma. Veja aqui.
Na Europa, no período 1944 a 2005, metade dos gabinetes tinha menos de 17
pastas ministeriais, como mostraram I. H.
Indridason e Shaun Bowler.
Para esses pesquisadores, o tamanho dos gabinetes é função da intensidade dos
conflitos no interior dos partidos e entre eles.
Em países onde o conflito —não só
partidário, mas também tribal— é intenso e o império da lei, débil, o gabinete
converte-se em ruidosa assembleia: são 71 ministérios em Uganda, 54 na Nigéria
etc. Leonardo Arriola (UC-Berkeley) argumenta que, nesses casos, os ministérios
hiperdimensionados evitam a escalada violenta de conflitos: o preço da
governabilidade é assim a partilha
predatória da máquina pública.
Em nosso país, as instituições reagiram
recentemente a arranjos similares, o que engendrou uma reação insidiosa do
sistema cujos desdobramentos ainda não estão claros. Sinal amarelo. Na Europa,
os acordos de coalizão são contratualizados em bases programáticas, como discuti
aqui. Entre nós, a construção de maiorias governativas é processo
opaco e de baixa inteligibilidade para a sociedade. O resultado é o cinismo
cívico. E mais: se ela exige a incorporação de mais da metade da oposição, a
responsabilização política —a premiação e punição pelo desempenho de agentes
públicos eleitos— evanesce.
*Professor da Universidade Federal de
Pernambuco e ex-professor visitante do MIT e da Universidade Yale (EUA)
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