O Globo
O que conta é trombetear a justiça. Dar
esmola com a mão esquerda fazendo selfie com a direita
Nada mais fora de moda que a modéstia,
quando se trata de pôr em ação os valores morais. Praticar a justiça é o de
menos: o que conta é trombeteá-la. Dar esmola com a mão esquerda fazendo selfie
com a direita, para pegar o melhor ângulo. Jejuar em público — de preferência
em cenário instagramável — e deixar para se empanturrar no privado. Mateus 6:
1-6, 16-18 errou: a recompensa não será dada pelo Pai, mas pela plateia.
E a temporada de ostentação de virtude promete. A tendência vem de longe, mas nos últimos dias houve uma escalada — talvez pelo clima de Copa do Mundo, o frisson de fim de ano e de mandato alheio, a perspectiva (enfim!) do crepúsculo do macho tosco e do alvorecer da pessoa desconstruída, sensível e solidária.
Fomos informados de que há uma forma
superior de acompanhar as partidas da Copa: tendo em mãos um livro de História
e uma listagem com a orientação sexual dos jogadores. O torcedor de espírito
elevado cruzará os dedos pelo colonizado, fazendo figa contra o colonizador. Se
os dois países em campo tiverem sido colônia, o subdesenvolvimento será o
critério de desempate. “Que vença o melhor” é suco de meritocracia. Futebol
funciona como reparação histórica — sem nenhum efeito prático, ou o Brasil, pentacampeão, não
estaria tão atrás de Alemanha, França, Itália, Inglaterra,
Países Baixos no Índice de Desenvolvimento Humano.
Se alguém faz um gol espetacular, tem de
ser “um LGBT anti Bolsonarista” [sic]. Não, não tem (nem era), mas a
vocalização automática do preconceito reverso e do pensamento mágico se sobrepõe
à (dispensável, para jornalistas militantes) checagem dos fatos.
É de bom-tom, também, demonstrar indignação
diante de alguma extravagância que não seja sua ou de algum dos seus. Pouco
importa se bancada com (literalmente) o suor do rosto do extravagante. Um bife
salpicado de ouro causa engulhos em quem vê nisso descaso com milhões de
conterrâneos em situação de insegurança alimentar, não uma breguice. Lembra
minha mãe exigindo que eu comesse o que estivesse à mesa, porque “tem gente
passando fome em Biafra”. Nunca entendi como o quiabo que eu engolia a
contragosto faria parar de doer o estômago de uma criança além-mar — mas a
culpa opera milagres na alma de quem se dedica a incuti-la...
“Tantas palavras sobre o teto de gastos,
nenhuma sobre o teto de riqueza”, clama o ministro aposentado que sabe que teto
para a riqueza não garante piso para a miséria — e que, ao viver dentro do que
permite o seu altíssimo salário, não faz senão aplicar o conceito que sugere
renegar.
Sobrou até para a feminista que cometeu a
heresia de dizer o óbvio: mulher não é apenas uma “pessoa que menstrua”. Foi de
pedra a vidraça, acusada de transfobia. É a milícia woke em sua fase terminal,
a do canibalismo. Teóricos e acadêmicos deixam de ser os protagonistas,
devorados e substituídos na linha de frente por aqueles que Madeleine Lacsko
chamou, de forma lapidar, de “Che Guevara de apartamento”.
Os próximos quatro anos serão deles, dos Bakunins de iFood no quarto, das Pasionarias de franja torta e lógica idem. Se isso será melhor que os Pedros Castillos de porta de quartel, o tempo dirá.
2 comentários:
Perfeito !
Jornalista (?), arquiteto, bosta-rala a soldo.
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