Por Bernardo Mello e Thiago Prado / O Globo
Autor de ‘PT, uma história’ vê lulismo e
governadores petistas como condutores de guinada ao centro do partido, e aponta
urgência de refundar relação com Congresso
O sociólogo Celso Rocha de Barros é autor
do livro "PT, uma história" (Companhia das Letras), lançado
recentemente em meio a disputa eleitoral. A publicação resgata a história do
Partido dos Trabalhadores, de sua fundação, nos anos 1980, até os dias atuais.
Em entrevista ao GLOBO, ele fala sobre os desafios do novo governo de Lula e
a importância de modificar a relação com o poder legislativo.
Lula começa um governo precisando
apresentar resultados na economia. A tendência é de uma gestão mais para
Antonio Palocci ou Guido Mantega?
O cenário que Fernando Haddad enfrenta é bastante diferente do de Palocci. Uma coisa é suceder Fernando Henrique Cardoso e o (ex-ministro da Fazenda) Pedro Malan, outra é Bolsonaro e Paulo Guedes. Em 2003, Lula podia perfeitamente dar um choque ortodoxo que ninguém tentaria um golpe. Hoje não há circunstâncias políticas para administrar dois anos de impopularidade, fazendo ajuste fiscal e esperando os programas sociais darem certo. Também há diferenças em relação ao que o Mantega fez depois da crise de 2008. A PEC da Transição é muito mais para segurar as políticas sociais do que trazer uma visão desenvolvimentista e heterodoxa de como fazer o gasto.
Embora tenha havido um discurso de frente
ampla no segundo turno, Lula se cercou de petistas em postos- chave na
Esplanada. Haverá variedade de pensamento no novo governo?
Lula é um sujeito pragmático, que não está
muito interessado no debate entre departamentos de economia, mas sim em ver que
o negócio funciona. Não acredito em conflito, por exemplo, entre (Simone) Tebet
(ministra do Planejamento), por ter posturas mais ortodoxas na economia, e o
(Fernando) Haddad (ministro da Fazenda). Como prefeito de São Paulo, ele foi
bastante preocupado em manter as contas em dia. Como ministro da Educação, fez
projetos como o Fies e o ProUni, em parceria com o setor privado, o que não
sinaliza um perfil estatista. Se quisessem colocar um petista heterodoxo na
Fazenda, não seria o Haddad.
A ida de Aloizio Mercadante para o BNDES
não é uma retomada do viés econômico petista do governo Dilma?
A Fazenda terá um perfil um pouco mais
ortodoxo, enquanto já se calculava que o BNDES ficaria com o petista mais
heterodoxo. Mas não considero que será colocada em prática a mesma visão do
governo Dilma. A grande autocrítica do PT nos últimos anos foi sobre aquela
política dos campeões nacionais e toda a questão dos subsídios. Há documentos
internos do partido apontando que isso deu errado no governo Dilma.
Em meio à radicalização bolsonarista, Lula
deve confrontar ou buscar uma conciliação com esse grupo?
Isso vai depender em parte do que acontecer com o movimento golpista. Lula certamente vai querer conversar com bolsonaristas que quiserem aceitar o jogo democrático, como os governadores eleitos com apoio do Bolsonaro. Agora, com as pessoas que estão praticando, incentivando ou financiando terrorismo, não existe discussão. É cadeia. O que o STF fez, de maneira 100% correta, foi tratar esse pessoal como participantes de um movimento político concreto, liderado pelo presidente da República, com o objetivo de dar um golpe de Estado. Se esse movimento for desarticulado e sobrar só um pessoal na porta do quartel, aí o melhor é deixar lá, que o próprio “mercado de ideias” refuta.
Em seu livro, o senhor diz que o PT
precisará reconstruir o centro democrático, assumindo um papel que foi do PMDB
nos anos 1980. Como esse movimento pode se dar no governo?
Os ex-governadores petistas de estados do
Nordeste, como Rui Costa (Casa Civil) e Wellington Dias (Desenvolvimento
Social), são o que se espera de um PT moderado na Presidência. Depois do
impeachment houve uma divisão clara no partido: parlamentares e outras figuras
públicas adotaram uma postura combativa de denunciar o governo Temer, enquanto
os governadores do PT faziam reforma da Previdência em seus estados. Por
enquanto, não começou a parte mais difícil desta guinada ao centro. O PMDB dos
anos 1980, por exemplo: conseguiu uma realização imensa fazendo a transição
para a democracia, algo maior do que o Plano Real, não conseguiu dar solução
para a crise econômica e perdeu completamente sua identidade ideológica.
Pode ter guinada ideológica do próprio PT,
para além de seu papel como governo?
Será um governo de propostas mais moderadas
do que as dos programas defendidos no partido, e aí o PT pode voltar a dizer
que tudo o que o governo faz é por causa da necessidade de fazer concessões
para os aliados. Acho um erro insistir na ideia de que não conseguem ser um
partido socialista radical porque sempre tem algo que os atrapalha. Talvez o
lulismo seja uma etapa da transição do PT para uma política social-democrata,
com um partido de esquerda fundado a partir dos sindicatos e que defende a
transferência de renda, como existe em toda democracia madura no mundo.
A relação de Lula com o Congresso será mais
difícil do que em governos anteriores?
Há chance de um novo modelo de relação com
o Congresso graças ao fim do orçamento secreto e ao mérito histórico da
Lava-Jato, apesar das coisas erradas depois, que foi dar uma pancada no cartel
de empreiteiras e levar o Congresso a aprovar o financiamento público de campanha.
Até então, o caixa dois era quase obrigatório, e o padrão era dar cargo para o
parlamentar arrecadar nas estatais. O orçamento secreto foi um retorno à época
em que as empreiteiras pagavam propinas na comissão orçamentária. Ao estourar o
escândalo dos Anões do Orçamento nos anos 1990, esse processo ficou mais
difícil, e aí foram roubar nas estatais. Veio a Lava-Jato, e voltaram a roubar
no orçamento. Quando digo que Lula precisa reconstruir a democracia, incluo aí
o padrão de relação do presidente com o Congresso.
Mas pouco se avançou nisso nas gestões
anteriores do PT, certo?
Houve duas grandes tentativas do PT de
passar uma reforma política, e na segunda já havia petistas contrários,
ganhando eleição e dinheiro naquele jogo. Por isso o anti-lavajatismo também é
um problema. Os abusos da Lava-Jato não podem virar argumento para desmonte de
mecanismos de combate à corrupção. O que Lula sinaliza é com um modelo em que o
presidente tem poder sobre o Orçamento, pode recorrer à liberação de emendas
para construir base parlamentar. A dúvida é se o Congresso vai aceitar isso
depois do governo Bolsonaro, que foi a primavera do Centrão.
Bolsonaro tem condições de liderar a
direita até 2026, ou pode surgir outro nome?
Uma das principais questões da democracia
brasileira é esta reorganização da direita. O silêncio de Bolsonaro o
enfraqueceu como líder democrático, mas o fortaleceu, pelo menos até agora,
como liderança nacional golpista. Todo sistema político funcional do mundo tem
uma direita democrática, como a Democracia Cristã alemã ou os Conservadores
britânicos. No Brasil, ela poderia ficar com a velha terceira via, caso consiga
reconquistar a base empresarial e as igrejas, ou alguém do bolsonarismo que
aceite moderar sua prática política. Seria um movimento rumo ao centro
semelhante ao do antigo PFL para apoiar Fernando Henrique e o PSDB em 1994.
Algum partido do Centrão também pode tentar se reconstruir como partido
conservador.
É possível, caso Lula siga a projeção de
não concorrer à reeleição, imaginar o PT apoiando um nome de outro partido em
2026?
Lula não deve continuar liderando a esquerda por muito tempo, mas dependerá de alguém se projetar. O que não pode acontecer, obviamente, é todo mundo jogar parado e no final pedir para o PT sair da frente. Não dá para fazer que nem o Ciro Gomes, que está há 20 anos concorrendo à Presidência em vez de tentar uma outra costura política, concorrer a outros cargos, como a governador. Em 20 anos o Lula construiu um partido e depois se elegeu presidente. Ninguém saiu da frente quando o PT estava crescendo.
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