Por Janaína Figueiredo / O Globo
No Brasil para a posse de Lula,
ex-presidente uruguaio diz que frente ampla do novo governo 'reafirma
democracia republicana diante do autoritarismo’
Aos 87 anos, o ex-presidente do Uruguai José
Pepe Mujica, que governou de 2010 a 2015, pretendia pegar um voo via Buenos
Aires para chegar a Brasília e presenciar a posse hoje de seu amigo, Luiz
Inácio Lula da
Silva. Mudou de planos quando foi convidado pelo presidente uruguaio, o
conservador Luis Lacalle Pou, para integrar a comitiva oficial, junto ao também
ex-presidente Julio Maria Sanguinetti (1985-1990 e 1995-2000). Um gesto de
civilidade política que contrasta com uma posse na qual o presidente que
sai decidiu não
passar a faixa para o que assume.
— De certa forma, [a decisão de
Bolsonaro] reflete as enormes dificuldades que Lula enfrentará — disse
Mujica ao GLOBO.
Questionado sobre as tensões entre Lula e o mundo militar, o ex-presidente da Frente Ampla de esquerda, que foi guerrilheiro e esteve 13 anos preso durante a última ditadura em seu país (1973-1985), afirmou que é fundamental conversar e relacionar-se com as Forças Armadas. Segundo Mujica, "os militares são parte de nossa sociedade e expressam as contradições de nosso povo. Temos de pedir a eles um certo grau de participação na estabilização do Brasil".
O governo do Uruguai terá um presidente e
dois ex-presidentes na posse de Lula, na qual o presidente que deixa o
poder, Jair
Bolsonaro, não colocará a faixa presidencial em seu sucessor. Que
contraste, não?
Estas coisas que estão acontecendo no
Brasil entram em contradição com sua própria História. Uma das características
que definem o Brasil é que sempre foi o país da alegria. Por isso é muito
difícil aceitar a imagem de um Brasil de confrontos, endurecido, sem diálogo.
Essas coisas ferem a tradição brasileira. Decidimos acompanhar o presidente de
nosso país, e não é a primeira vez que isso acontece.
Qual é o precedente mais próximo?
Em 2019, quando o ex-presidente Tabaré
Vázquez foi à posse do
presidente da Argentina, Alberto Fernández, convidou o então recém-eleito
presidente do Uruguai [Lacalle Pou]. Fomos todos juntos, com
todas as diferenças políticas que podemos ter, mas com a consciência de que nosso
país não pode se dar ao luxo de ter um sistema político no qual não se possa
dialogar. Podem existir diferenças, mas não devemos transformá-las em
confrontos subjetivos, que acabam multiplicando as dificuldades. Muitas vezes,
um gesto vale mais do que mil discursos. Lula tinha me convidado para ir à
posse, e pensava ir via Buenos Aires, para evitar o aeroporto de São Paulo, que
é terrível, sobretudo para velhos como eu. Mas o presidente
[Lacalle Pou] telefonou e sabia perfeitamente que, apesar de
nossas diferenças, era importante para nosso pequeno país.
E dará um exemplo no Brasil…
Claro que sim. Não passar a faixa, como
gesto, é ruim. De certa forma, [a decisão de Bolsonaro] reflete as enormes
dificuldades que Lula enfrentará. Somente uma personalidade como a dele, depois
de um longo caminho de lutas, pode ter a coragem de enfrentar esse desafio.
Lula governará com meio Brasil que votou
contra ele...
Sim, a arte da política, no médio e longo
prazo, é transformar os inimigos, senão em amigos, pelo menos em adversários.
Esse é o desafio que ele tem pela frente, para que o Brasil possa voltar a ser
o país da alegria. Os que conhecemos Lula também esperamos que a América Latina
volte a ter uma presença no mundo, estávamos apagados do planeta. Viramos uma
espécie de zero à esquerda. Sei perfeitamente que na visão política de Lula a
presença internacional é importante, por momentos, determinante. Estamos
enfrentando uma mudança de época, e estamos atrasados. Temos recursos naturais,
mas nos falta capacidade. E temos uma dívida social com nossos povos muito
grande. Tenho esperança, porque vi que Lula formou um governo diverso.
O senhor acompanhou a formação do Gabinete?
Sim, e vi que Lula fez uma política de
alianças sem precedentes na América Latina. O que vemos não é apenas o PT. É,
acima de tudo, um grito de afirmação da democracia republicana diante do perigo
do autoritarismo. Estão aparecendo novos poderes, como o mundo informático, a
concentração financeira. Nesse mundo, Lula deve demonstrar a importância da
política.
Este Gabinete dará governabilidade a Lula?
Sim, justamente pela política de alianças
que ele fez. Lula não fará um governo radical, acho que buscará fazer um
governo de base ampla, mas sem abrir mão de seu profundo compromisso com os
setores mais humildes da sociedade. Deverá fazer equilíbrios, alguns serão
difíceis.
Como avalia o papel das Forças Armadas
brasileiras no atual contexto político? Preocupa-o a relação entre Lula e os
militares?
Uma pessoa muito velha disse que a guerra é
a continuidade da política por outros meios. No fundo, o mundo militar também
tem preocupações políticas. Espero que predomine o sentimento nacionalista
tradicional das Forças Armadas, e, se não acompanharem com calor, entusiasmo,
que sejam parte dessa mudança cultural, da qual o Brasil tanto precisa. Isso
não quer dizer que todos devem estar de acordo em tudo, mas, pela experiência
do que já aconteceu na História da América e do Brasil, espero que os militares
brasileiros percebam que convém pacificar a relação e respeitar o funcionamento
institucional com todas as dificuldades que possam existir. Como dizia
[Winston] Churchill, por enquanto a democracia representativa é a melhor
porcaria que conseguimos inventar. Não é perfeita, nem pode ser porque não
somos perfeitos os seres humanos. Por isso precisamos de instituições que
funcionem. Hoje é o que temos e temos de defendê-la. Apostamos em que os
militares também entendem isso.
O senhor foi guerrilheiro, esteve preso 13
anos, foi torturado e, anos depois, elegeu-se presidente e teve uma relação sem
sobressaltos com as Forças Armadas. Que conselho daria a Lula para lidar com o
mundo militar?
Acho que é preciso conversar, conversar
muito. Também afugentar fantasmas. Os militares, em definitivo, são humanos,
têm família, são parte de nossos povos, temos de nos relacionar com eles. As
forças políticas não podem achar que são como um cachorro perigoso que deve ser
amarrado no fundo do quintal para que, eventualmente, assuste. Não, os
militares são parte de nossa sociedade e expressam contradições de nosso povo.
Temos de pedir a eles um certo grau de participação na estabilização do Brasil.
Devem ser parte ativa das necessidades que o Brasil tem. Se existem problemas
de habitação, de infraestrutura, de deslizamentos de terra, o que for, deve ser
pedida sua colaboração, porque os militares têm uma grande capacidade de
organização. Não podem ser deixados de lado.
Lula já anunciou que vai recompor as
relações com Nicolás Maduro. O governo Lula pode ajudar a
redemocratizar a Venezuela?
Bom, depois da guerra na
Ucrânia e com a crise do petróleo, parece que a Venezuela não é
tão má como antes, sua economia está melhorando. O mais importante é que os
venezuelanos possam discutir e buscar uma saída. Os de fora podem ajudar a
promover o diálogo e a negociação, mas sem intervenção. As condições
internacionais podem ajudar. Lula é um negociador nato.
O Brasil foi convidado para colaborar
nas negociações
entre o governo da Colômbia e o Exército de Liberação Nacional (ELN)…
Sim, estou de acordo. Lula está
rejuvenescido por razões óbvias, o amor, e acho maravilhoso. Mas se continuarem
jogando responsabilidades em cima dele... (risos). Não podemos pedir tudo a
Lula, temos de ajudá-lo.
Lula irá a Buenos
Aires em janeiro e poderia passar por Montevidéu…
Seria ideal que passasse por Montevidéu e conversasse com nosso presidente. Quem sabe podemos comer um churrasco também.
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