O Globo
É sabida a implicância — para não dizer
ojeriza — do escritor Michel Houellebecq às situações trazidas pela
globalização. Tendo oportunidade, ele desfia seu elenco de abluções, de
críticas — como seu horror aos motoristas búlgaros nas autoestradas da União
Europeia.
Difícil deixar de imaginar um motorista
búlgaro, entre Barcelona e Toulouse, e não sorrir com a despreocupada tolice:
um búlgaro ao volante! Em seu novo livro, “Aniquilar”, ao dissertar sobre os
diferentes, autoexcludentes e aleatórios ingredientes postos nos pratos pelos
chefs contemporâneos, ele dá um grito e anota: “O frango brasileiro, não!”. Sem
esquecer que Houellebecq é francês, impossível não concordar com a observação:
o frango brasileiro tem a sensualidade da voz de um caixa eletrônico, algo
anódino.
Houellebecq, se informado, riria do princípio ou do conceito por trás da formação do ministério do novo governo. Ali estão contemplados, em conta-gotas, os motoristas búlgaros, o frango brasileiro, a quinoa do Cerrado e a ginkgo biloba do Centrão. Não fosse o malsucedido gabinete britânico de Liz Truss, que durou poucas semanas, dada sua incompetência, a formação trazida à luz por Lula e Gleisi seria a primeira na História mundial a se escudar no lugar de fala como critério político. Mais pela simbologia, pouco pelo crédito ou credenciais.
Calejado pelas lutas sindicais, nas
infindáveis discussões de dissídios coletivos, depois pelos inumeráveis cafés
frios tomados nas intermináveis assembleias petistas, Lula deve ter se
surpreendido com a pressão identitária posta à mesa para a composição de seu
ministério. Ao longo dos últimos 60 dias, se viu no papel de buscar emblemas,
mais pelo valor de face que pelo conteúdo dos currículos profissionais, capazes
de arrefecer a demanda contemporânea pela simbologia.
Longe vai o tempo em que tinha de
contemplar apenas as centenas de tendências de esquerda abrigadas sob o label
do PT — entre elas, socialistas, trotskistas, neostalinistas, protostalinistas,
tímido-comunistas, anarcossindicalistas, verde-sindicalistas etc. A sociedade
digital produziu atomização brutal de manifestações, em exponencial divisão de
matizes, para desespero de quem antes enxergava a luta política numa batalha pelo
coletivo — e, não qual agora, como prêmio às tribxs e neoaldeixs.
É muito egoísta. Antes uma luta pelo
social, até nos binários trabalhadores versus capitalistas, pobres contra
ricos, enquanto os novos tempos hastearam uma infinidade de requisições entre
veleidades pessoais, vocalização de grupos específicos e oportunismos de cepa
corporativa. O velho Marx descrevia a face criativa do capitalismo, onde tudo
se transforma em mercadoria ou produto. Em geral, o lucro é o objetivo. O
ministério cafuzo-identitário ou mameluco-de-aldeia oferece material para
diversos estudos, teses e livros de autoajuda. É de surpreender que o novo
governo conte —apenas! — com 37 ministérios. Por sorte os orgânicos não
insistiram na criação de uma pasta para a categoria dos peixes veganos.
Arthur Lira, envelhecido em vida, brigou
por seu naco à frente do Centrão. A turma da Gleisi, a tal esquerda analógica,
praticou o clássico “entrismo” ao buscar não deixar crescer grama para qualquer
outra candidatura que não seja de algum companheiro; as mulheres, embora tenham
sido na figura de Simone Tebet a única novidade em anos na política pátria,
brigaram e, se se viram representadas, o foram no apagar das luzes; mesmo
assim, em flagrante descompasso de qualidade. Tiveram de se contentar com o
terceiro lugar em vários ministérios. Enquanto o ideológico Ministério da Pesca
(& afins) surge como o cultivo em cativeiro de piabas e curimbatás, o
Ministério do Turismo se oferece em promontório às selfies e ao diário on-line.
A simbologia estampada no novo ministério
espelha a quantidade de velhas ideias da esquerda petista vitoriosa nas urnas
no embalo do antibolsonarismo. Apenas aparências, nada de profundidade. Ao
contrário de 2002, quando se defendia a eleição de um trabalhador à Presidência,
algo já tão antiquado quanto usar orelhão, se enxerga agora um vazio de
propostas efetivas, de novo incapazes de enfrentar a necessidade de educação de
qualidade; de abarcar a massa de trabalhadores vitimados pelas novas
tecnologias; de moldar um ambiente voltado à inovação; de aproveitar a base
para o desenvolvimento em torno de profissões na economia criativa; ou mesmo de
extrair oportunidades dentro do conceito de cidades inteligentes etc.
Lá estão os arcaicos tanques russos
destruídos por modernos drones ucranianos. E aqui se perpetua o “pobrismo de
ocasião”. Na envilecida terra das commodities (desde Caminha, lá se vai muito
tempo).
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Deixo aqui um beijo para minha querida amiga Nélida Piñon, de quem sempre bebi um irremediável amor pela vida.
Um comentário:
Você pode pensar que pode ser o padre Miguelinho, o Miguel Conde de Abrantes, o Miguel Governador-Geral
de Angola, o Miguel Governador da Índia Portuguesa...
Nenhum deles. Este é só o dito jornalista venenoso (bolsonarista, pois não?).
Um dos bons fdputxs.
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