quarta-feira, 22 de fevereiro de 2023

Roberto DaMatta* - Da fantasia à gravata

O Estado de S. Paulo

Obardo de Stratfordupon-Avon ensinou que o mundo é um palco e que todos somos atores. Querendo ou não, sabendo ou não, desempenhamos papéis que nos enredam em dilemas e intrigas.

Finalmente, termina Shakespeare, temos entradas e saídas de cena – o que provoca a dolorosa consciência de que o drama continua sem a nossa (quem sabe, inútil) presença. Finitude e incompletude fazem parte do que chamamos de “condição humana” — esse engenho que nos leva a procurar o sentido do que nos afeta.

Nada mais adequado para falar de consciência de início, meio e fim do que esta Quarta-feira de Cinzas. Nela, cessa o direito à fantasia! Agora voltamos ao trabalho que engravata; e o riso obrigatório cede lugar a contrição e, quem sabe, ao arrependimento. As cinzas da Quaresma testemunham a resistência do nosso lugar.

Abandonar a carne é um dos significados da palavra carnaval. Um outro sentido apontado pelos estudiosos é “carrusnavalis” um ambíguo ou impossível navio com rodas que circulava por Roma com seus “passageiros” realizando toda a sorte de abusos.

Em ambos os casos, há a mesma proposta do teatro carnavalesco que acabamos de viver à brasileira. Trata-se de virar pelo avesso ou colocar de cabeça pra baixo a plausibilidade do mundo real – esse conjunto de hábitos e costumes que asseguram uma ordem.

O que aprendemos nos tempos de carnaval é que podemos “virar” outras pessoas. O carnaval desconjunta ou desmonta os elos entre meios e fins e deixa que um homem vire mulher e uma mulher se apresente como uma rainha, esbanjando sexualidade. O feminismo não cabe na festa de Momo, tal como desaparece a racionalidade da economia moral da vulgata marxista.

Na Terça-feira Gorda encarnamos fantasias somente para, na Quarta-feira de Cinzas, tomarmos uma consciência aguda do nosso lugar na dureza da vida.

Voltamos a nos diferenciar num sistema estratificado de castas e classes, pois os blocos aos quais pertencemos desaparecem e tornam-se ilegítimos diante da arcaica, da poderosa e da triste estrutura que, no fundo, explica por que temos carnaval.

*Antropólogo, escritor e autor de ‘Carnavais, malandros e heróis’

Um comentário:

Anônimo disse...

Mas, Roberto, a gravata é a fantasia de tantos!