O Estado de S. Paulo
Obardo de Stratfordupon-Avon ensinou que o
mundo é um palco e que todos somos atores. Querendo ou não, sabendo ou não,
desempenhamos papéis que nos enredam em dilemas e intrigas.
Finalmente, termina Shakespeare, temos
entradas e saídas de cena – o que provoca a dolorosa consciência de que o drama
continua sem a nossa (quem sabe, inútil) presença. Finitude e incompletude
fazem parte do que chamamos de “condição humana” — esse engenho que nos leva a
procurar o sentido do que nos afeta.
Nada mais adequado para falar de consciência de início, meio e fim do que esta Quarta-feira de Cinzas. Nela, cessa o direito à fantasia! Agora voltamos ao trabalho que engravata; e o riso obrigatório cede lugar a contrição e, quem sabe, ao arrependimento. As cinzas da Quaresma testemunham a resistência do nosso lugar.
Abandonar a carne é um dos significados da
palavra carnaval. Um outro sentido apontado pelos estudiosos é “carrusnavalis”
um ambíguo ou impossível navio com rodas que circulava por Roma com seus
“passageiros” realizando toda a sorte de abusos.
Em ambos os casos, há a mesma proposta do
teatro carnavalesco que acabamos de viver à brasileira. Trata-se de virar pelo
avesso ou colocar de cabeça pra baixo a plausibilidade do mundo real – esse
conjunto de hábitos e costumes que asseguram uma ordem.
O que aprendemos nos tempos de carnaval é
que podemos “virar” outras pessoas. O carnaval desconjunta ou desmonta os elos
entre meios e fins e deixa que um homem vire mulher e uma mulher se apresente
como uma rainha, esbanjando sexualidade. O feminismo não cabe na festa de Momo,
tal como desaparece a racionalidade da economia moral da vulgata marxista.
Na Terça-feira Gorda encarnamos fantasias
somente para, na Quarta-feira de Cinzas, tomarmos uma consciência aguda do
nosso lugar na dureza da vida.
Voltamos a nos diferenciar num sistema
estratificado de castas e classes, pois os blocos aos quais pertencemos
desaparecem e tornam-se ilegítimos diante da arcaica, da poderosa e da triste
estrutura que, no fundo, explica por que temos carnaval.
*Antropólogo, escritor e autor de ‘Carnavais, malandros e heróis’
Um comentário:
Mas, Roberto, a gravata é a fantasia de tantos!
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