O Globo
O óbvio ululante é procurar vê-lo como um
dos fios com os quais construímos o lado mais denso da nossa identidade
Falamos infindavelmente de “política”,
deixando de lado a festa maior que chega neste fim de semana e continua sendo
assunto de difícil entendimento. Sobretudo para nós, brasileiros, para quem a
festa de Momo tem uma presença sistemática (lida como positiva ou alienada) nas
nossas vidas.
Falar do carnaval é ser obrigado a
discorrer sobre uma realidade ainda mais complicada: nosso sempre fugaz e
indomesticável Brasil.
O elo entre o carnaval e o Brasil tem muitas máscaras. Tanto o carnaval pertence ao Brasil — não há como negar um “carnaval brasileiro” com história, gestos, música e outros tantos elementos particulares — quanto o Brasil pertence ao carnaval!
Esse carnaval que — com seu maravilhoso espírito antiburguês, com sua atitude contrária à razão utilitária e com seu afeto pelas ambiguidades, pelas transformações míticas e, sobretudo, pela possibilidade de trocar radical e democraticamente de lugar — não tem rival como modelo de um “contrato social” brasileiro.
O carnaval é constituído e constitutivo
daquilo que chamamos de “Brasil” ou “realidade brasileira”. Pois o que seria o
Brasil sem carnaval, sem cachaça, sem futebol, sem macumba, sem jogo do bicho,
sem sua ladra politicagem, sem jeitinho, sem “não fazer nada” e sem
salvacionismos? Sem esse punhado de instituições órfãs de pedigree
político-acadêmico que nossos “caga-regras” conhecem como a palma de suas mãos?
Quantos de nós seríamos capazes de
caracterizar o Brasil sem falar em carnaval? E, no entanto, quantos pensaram no
carnaval — amnesiando a economia política — para tentar desenhar o Brasil?
Embora o carnaval seja um hóspede não
convidado de nossas historiografia e sociologia oficiais, pois — se a memória
não me falha — fui dos poucos a levá-lo a sério, estudando-o de uma perspectiva
simbólica e comparativa, sua presença em outros setores da nossa vida social
sempre foi flagrante. Aliás, ninguém exprimiu melhor a intimidade entre Brasil
e carnaval que Lamartine Babo, na marchinha composta em 1934,
significativamente intitulada “História do Brasil”. Nela, ele faz a pergunta
crucial: Quem foi que inventou o Brasil?/Foi Seu Cabral… Foi Seu Cabral/No dia
21 de abril…/Dois meses, depois do carnaval!
Seria Lamartine Babo uma antecipação do
pensamento pós-moderno? Nem tanto, mas sua obra é uma mostra do “óbvio
ululante”, em que os intelectuais politicamente corretos e donos da verdade
odeiam tocar. Seja porque não sabem como engavetá-lo, seja porque o riso
satírico de Momo os embaraça. Afinal, o carnaval não cabe nas categorias que
definem weberianamente o racional como elo entre meios e fins. Como explicar
essa explosiva alegria quando deveria haver somente tristeza?
E, no entanto, o carnaval é o rito de
passagem temporal que nos ajuda a transitar do Advento e, largando a carne,
aceitamos as penitências de Dona Quaresma. Ele é também o que Alexis de
Tocqueville chamava, com Rousseau, de “hábito do coração”, e Nélson Rodrigues
denominava “óbvio ululante” — essa coisa tão próxima que não é — ou não pode —
ser vista.
Quem sabe você que olha sem ler estas
linhas não gostaria de ouvir esse óbvio ululante do carnaval, simplesmente um
grito para compreender o Brasil? Pois, para parafrasear Jorge Luis Borges, a
despeito do sentimento derrotista, algumas pessoas descobriam verdades eternas
no Rio de Janeiro e no Brasil...
No caso do carnaval, o óbvio ululante não é
seu estudo como festa popular de feitio “alienado” e “pré-político”, prestes a
ser comido pela indústria de comunicação e pelo discurso ainda mais fantasioso
e cretino dos salvadores da pátria. Muito pelo contrário. É procurar vê-lo como
um dos fios com que construímos o lado mais denso da nossa identidade.
Mas sobre isso eu só falo depois do
carnaval...
Nenhum comentário:
Postar um comentário