Folha de S. Paulo
Lula é fiel aos interesses de Havana, que
protege tiranos aliados
"Metaforicamente falando, a Nicarágua
parece uma igrejinha distante onde há um sacerdote que comete excessos e que
todos reprovam. A Venezuela lembra uma arquidiocese de média importância cujo
funcionamento é digno de certas críticas. Cuba... é o Vaticano, cuja santidade
e dogma são inquestionáveis."
A descrição das atitudes da esquerda
latino-americana, publicada no site 1948 – Declaração Universal dos Direitos Humanos, é do cientista político cubano Armando Chaguaceda.
Ela ajuda a entender tanto o tardio distanciamento do governo Lula em relação à
ditadura de Ortega quanto sua natureza incompleta.
Ortega, o sacerdote da paróquia, renunciou há tempos ao "socialismo". Seu regime manteve laços íntimos com o FMI, cerca-se de um cortejo de empresários espertos e o próprio ditador aliou-se à Capitol Ministries, organização político-evangélica americana que entrou no Brasil pela mão de Bolsonaro. O PSOL desistiu do regime nicaraguense –mas, claro, continua a rezar no altar do Vaticano tropical. Já o PT opera em outro compasso, recusando-se a romper com o tirano nicaraguense.
Ortega não conhece limites. Sua investida
mais recente, a cassação da nacionalidade de mais de 300 opositores, inclusive
vários antigos camaradas de armas da Revolução Nicaraguense, constitui infração
direta da Declaração de 1948, que proíbe converter cidadãos em apátridas. O ato
extremo provocou uma onda de indignação, expressa no documento de 54 países que
pede "pressão máxima" sobre o regime. O chileno Boric ofereceu
cidadania aos opositores nicaraguenses, um gesto imitado pelo argentino Fernández
e pelo colombiano Petro.
Há diferenças relevantes. Boric personifica
uma esquerda que aprendeu o valor da democracia: ele utiliza a palavra ditadura
até mesmo para definir o Vaticano castrista. Já Fernández e Petro modulam suas
sentenças de acordo com a hierarquia teológica da esquerda. Para eles, Cuba é
exceção absoluta: a coagulação terrena de um ideal mítico. Por isso, a ruptura
de ambos com Ortega não implica um repúdio geral do autoritarismo de esquerda.
São duas lógicas distintas. Boric mantém
coerência com o princípio de que ditaduras de direita ou esquerda são
igualmente repulsivas. Fernández e Petro guiam-se por outro princípio: a adesão
ao "socialismo", entendido como controle estatal da economia e
ferrenho antiamericanismo. As ditaduras de esquerda fiéis ao dogma figuram como
parceiros numa jornada histórica –e, portanto, permanecem imunes à crítica.
Democracia, sob tal ótica, é bem menos valioso que ideologia.
Em tese, o PT se enquadraria nesta segunda
lógica. Dias atrás, o dirigente petista Alberto Cantalice qualificou Ortega,
Maduro e Díaz-Canel como ditadores, levou um pito dos burocratas partidários e
ajoelhou no milho, desculpando-se pela sacrílega inclusão de Cuba na sentença
condenatória. Lula, entretanto, vacila até mesmo sobre o infame sacerdote de
aldeia.
"Bolsonaro é mil vezes pior que
Ortega", pontificou Lula na campanha eleitoral, fabricando uma comparação
insensata entre um tirano que comanda uma ditadura sanguinária e um presidente
autoritário sitiado pelas instituições democráticas. Agora, o Brasil rejeitou o
texto preciso dos 54 países e, no lugar da oferta de cidadania imediata aos
opositores, declarou-se meramente disposto a recebê-los como refugiados
apátridas. Pior: no Conselho de Direitos Humanos da ONU, tenta articular uma
resolução desdentada, a fim de evitar a condenação da barbárie estatal
nicaraguense.
Lula obedece a uma terceira lógica: a
fidelidade pragmática aos interesses fundamentais de Havana. Como Cuba protege
os tiranos aliados em qualquer circunstância, o Itamaraty busca caminhos
"construtivos" para impedir o isolamento de Ortega. Divergir da
"linha justa" do Vaticano é, afinal, blasfêmia imperdoável.
12 comentários:
Perfeito.
O colunista qualifica como "comparação insensata" a afirmação de Lula de que "Bolsonaro é mil vezes pior que Ortega". O colunista considera Bolsonaro apenas um "presidente autoritário sitiado pelas instituições democráticas"! Não tenho dúvida que a insensatez está muito mais nestas qualificações do preconceituoso colunista do que na afirmação de Lula.
Demétrio Magnoli é uma espécie de bolsonarista frustrado despirocado perdido no tempo e no espaço
Texto interessante, com o qual concordo em muito, mas a chamada é absurda, Lula não é fiel aos interesses de ninguém a não ser ele mesmo. Seu apoio a Havana serve de média com a audiência, e como ataque preemptivo a quem ousar criticá-lo quando ele mesmo for autoritário.
Magnoli é mais um bolsonarista enrustido, assim como o ex-juiz safado Sergio Moro, que acusou Bolsonaro de interferir na PF e depois foi assessorá-lo na campanha eleitoral e pedir voto pros eleitores bolsonaristas. Magnoli deve estar saudoso da política externa do chanceler Ernesto Araújo...
É incrível o esforço retórico que o contorcionista Magnoli faz para criticar Lula e qualquer proposta ou postura do líder petista, como em mais este pouco isento artigo.
Há alguns dias Magnoli escreveu coluna afirmando que a intenção de Lula de participar da mediação da guerra Rússia-Ucrânia era insensata e seria rejeitada pela Ucrânia. Foi desmentido imediatamente, quando 3 dias depois Lula teve reunião virtual com o presidente da Ucrânia e este demonstrou seu interesse na intervenção de Lula.
Jornalistas também têm ideologias, mas as posições constantemente antipetistas de Magnoli vão muito além de qualquer racionalidade esperada minimamente dos colunistas que assinam artigos de opinião.
Demétrio...
O despudor com que estes anônimos defendem ditaduras diz bem da natureza extremista e antidemocrática desta gente que cultiva autoritarismos do bem.
Bolsonaro é apenas um "presidente autoritário sitiado pelas instituições democráticas." Demétrio não precisava rastejar no mesmo esgoto de onde veio o ex-capitão. Com esta "visão", dá pra dizer que o colunista é quase cúmplice do GENOCIDA.
Esses anonimos sao mesmo o esgoto de que falam.
Ótimo texto do Demétrio. E claro que o Ortega é pior do que o Bolsonaro. Ortega é um ditador consumado. Bolsonaro nunca foi. Mas os lulistas vieram aqui para ilustrar o que o Demétrio escreveu sobre a esquerda latino-americana,
né? Retrógrada, anacrônica, que ama um ditadorzinho cumpañero.
Cuba é uma ilha oprimida pela maior superpotência militar de todos os tempos. Para ter internet Chávez teve que esticar um cabo submarino da Venezuela até Cuba. Ao capitalismo em sua atual fase de desenvolvimento: cadáver insepulto, interessa manter Cuba no regime comunista do tempo da Guerra Fria. Daí a manutenção do bloqueio. O boçal se nutriu disso usando seu anticomunismo rastaquera. O que Israel faz em relação aos palestinos é semelhante ou pior que o que a Nicarágua faz, mas Magnoli não comenta. Ao cadáver insepulto essas coisas interessam. O que está faltando é uma Onda Democrática Mundial de inspiração democrática, humanista, ecológica, internacionalista, socializante (abaixo o binômio bilionários X moradores de rua).
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