sábado, 11 de março de 2023

João Gabriel de Lima* - O presidente e o servidor

O Estado de S. Paulo

A noção de bem público do presidente era mais abrangente e imprecisa que a do servidor

O presidente se chamava Jair Messias Bolsonaro. O servidor, Marco Antônio Lopes Santanna. O servidor – importante frisar – era público. O presidente queria incorporar ao seu patrimônio – privado – joias no valor de R$ 16,5 milhões que, pelo regulamento, pertenciam ao Estado. Eram, assim, públicas – mas a noção de bem público do presidente era mais abrangente e imprecisa que a do servidor.

“É importante fazer uma diferenciação entre Estado e governo”, diz Gabriela Lotta, professora de Administração Pública da Fundação Getulio Vargas. “Os servidores públicos são de Estado, representam instituições que permanecem para além dos governos de plantão.” Lotta é vice-presidente do conselho do Instituto República, organização voltada para a melhoria do serviço público – e é a entrevistada do minipodcast da semana.

Dois dias antes da conclusão de seu mandato, o presidente mandou um sargento reaver as joias, retidas no Aeroporto de Guarulhos aos cuidados do servidor em questão. Elas haviam entrado no País como contrabando, na mochila de um assessor. O sargento mostrou documentos na tela do celular, pediu que o servidor atendesse a ligações de seu superior – um coronel – e do superior dele – o secretário da Receita Federal. O servidor sabia o significado estrito da palavra “público” – e não atendeu os telefonemas.

O sargento deu a carteirada final: disse que as joias pertenciam ao presidente, que sairia do governo dali a dois dias: “Não pode ter nada do antigo para o próximo, tem que tirar tudo e levar”. Não colou. E assim o servidor Marco Antônio Lopes Santanna, que continua no cargo, impediu o malfeito do presidente Jair Messias Bolsonaro, hoje fora do posto.

“O servidor precisa de estabilidade para, em momentos de confronto, defender o Estado de algo que seja ilegal ou imoral”, diz Gabriela Lotta. Não que ele não possa ser demitido. “Há regulamentos, estabilidade não significa permissividade.” O ato de Santanna nada tem de heroico. Ele simplesmente cumpriu sua função de forma correta. Se não cumprisse, poderia enfrentar um processo administrativo.

A reportagem sobre as joias é de autoria de Adriana Fernandes e André Borges, da sucursal de Brasília do Estadão. O time comandado por Andreza Matais se tornou uma referência no jornalismo investigativo brasileiro. Nosso país pode ter vários problemas, mas o episódio das joias mostra que por aqui existem pelo menos duas coisas boas: servidores dignos da palavra “público” – que honram como um sobrenome nobre – e uma imprensa que não se curva aos poderosos, mesmo que sejam presidentes da República.

*Escritor, professor da Faap e doutorando em Ciência Política na Universidade de Lisboa

2 comentários:

Anônimo disse...

Esse foi o lado bom do caso do contrabando das jóias.
O outro lado, bom também, desmascarou o ex-presidente ladrão e corrupto, a ex-1a dama(?) mentirosa e comparsa, e diversos FFAA larápios e imbecis.
Receita Federal não corrompida deu aula.
Magna!

ADEMAR AMANCIO disse...

Pois é.