sábado, 11 de março de 2023

Marcus Pestana - Socialdemocracia: reforma e democracia

A social-democracia nasce da cisão no interior do movimento socialista internacional, no início do século XX, notadamente na Alemanha. Como vimos antes, nesta série de artigos, o debate nos séculos XVII e XVIII, quando ocorreram as revoluções Gloriosa, Americana, Industrial e Francesa, marcando o nascimento do capitalismo industrial e da democracia moderna, foi dominado pelo confronto entre liberais individualistas, conservadores, contratualistas e republicanos, na Europa e nos EUA. No século XIX, surgem as reações dos trabalhadores às péssimas condições de vida e trabalho, encontrando eco inicialmente no movimento cartista inglês, na tradição jacobina na França, e depois, nos chamados “socialismo utópico” e “socialismo científico”, fundado por Marx, Engels e a Primeira Internacional, cujo o documento fundador foi o “Manifesto Comunista”, de 1884  

A social-democracia nasce no interior da Segunda Internacional Socialista, fundada em 1890. Alguns fatos marcantes foram determinantes para o racha no movimento socialista. A conquista do direito do voto universal e secreto e de leis de limitação da jornada de trabalho e de melhoria das condições de vida dos trabalhadores, em alguns países avançados. A eclosão da Primeira Grande Guerra Mundial e a Revolução Russa, em 1917. A expectativa dos fundadores do marxismo é que a revolução aconteceria nas nações de capitalismo mais avançado e maduro, onde as condições objetivas e subjetivas seriam configuradas, possibilitando a ruptura com o capitalismo. No entanto, a revolução aconteceu em país atrasados de capitalismo incipiente ou inexpressivo, como a URSS, e mais tarde, a China, em 1949.

É preciso ter cuidado com as palavras em sua evolução histórica. Os partidos de esquerda eram chamados de social-democratas, incluindo os marxistas, denominação que incomodava Engels e Lenin, que preferiam a termo comunismo, mas era fato. Liberais hoje nos EUA não são os seguidores de Hayek e Friedman, mas os progressistas hospedados no Partido Democrata e no meio acadêmico.

Dito isto, uma série de líderes da Segunda Internacional, seguindo elementos já presentes no “socialismo utópico”, começaram a perceber a inviabilidade da revolução nos países avançados e as mutações no capitalismo e os avanços na democracia parlamentar.

O marco mais relevante foi a publicação por Eduard Bernstein, parlamentar alemão e líder do SPD, de seus “Os Pré-requisitos do Socialismo e as Tarefas da Social Democracia” e “Socialismo Evolucionário”, em 1899. Adotava uma visão revisionista, crítica em relação ao marxismo, reformista e de valorização da luta democrática e parlamentar. Recebeu duras críticas de Bebel, Rosa Luxemburgo, Kautsky, Plekhanov e Lenin.  A visão começou a ganhar inúmeros adeptos nos partidos socialdemocratas europeus. Mais tarde, Kautsky e Plekhanov também iriam arder na fogueira do marxismo-leninismo caracterizados como revisionistas, reformistas e traidores.

A Primeira Grande Guerra foi o marco divisor. Os líderes russos se colocavam contra a guerra, porque a classe operária não teria fronteiras e não deveriam os operários se matar uns aos outros. Romperam com os social-democratas e fundaram a Terceira Internacional, sob comando do Partido Bolchevique da URSS.

A partir daí, diante da impossibilidade de revolução nos países avançados e das possibilidades abertas pela democracia parlamentar, os socialdemocratas se concentraram em criar partidos de massa, com força eleitoral, acumular experiência de governo, lutar pela evolução da legislação protetiva e promotora de direitos dos trabalhadores, defender as reformas e a intervenção do Estado para avançar e humanizar o capitalismo, sem rompimento com a economia de mercado.

A crise mundial de 1929, dinamitou os cânones do pensamento neoclássico liberal, dando uma prova viva que a economia de mercado não tendia ao equilíbrio geral, mas a crises cíclicas permanentes. Surge o pensamento do maior economista do século XX, o inglês John Maynard Keynes, que ofereceu a fundamentação teórica para a intervenção estatal na economia, em determinadas circunstâncias, para garantir o pleno emprego e o crescimento. Isto foi apropriado pelos governos e partidos sociais-democratas. A guerra fria, a partir de um mundo bipolar marcado pelo confronto entre EUA e URSS, era o pano de fundo. O New Deal americano e o Plano Marshall foram expressões disto. Mais tarde, em linha semelhante, na América Latina, surgiu o pensamento cepalino, que valorizava os conceitos de Estado e Nação, para superar o atraso e promover a industrialização na periferia do capitalismo.

Após a Segunda Grande Guerra, a social-democracia se tornou hegemônica, legitimando o papel do Estado na sociedade e na economia, dando origem ao “Welfare State”. Surgiriam lideranças marcantes na Europa e nos EUA, nas décadas posteriores, como Willy Brandt na Alemanha, Olaf Palme, na Suécia, Felipe González, na Espanha, François Mitterand, na França, Mário Soares, em Portugal, Jospin, na França, Tony Blair, no Reino Unido, Helmut Schmidt, na Alemanha, Bill Clinton e Obama, nos EUA, Fernado Henrique Cardoso, no Brasil. Cada um com seu momento e suas circunstâncias, mas unidos na convicção social-democrata de que o mercado é o melhor organizador dos fatores econômicos, mas produz crises e desigualdades, e que o Estado deve atuar para atenuar as falhas do mercado e intervir através das políticas públicas para promover a maior equidade social possível.

O Estado de Bem Estar Social (Welfare State) se agigantou e a expansão de gastou encontrou seus limites. Houve uma crise no final da década de 1970 e ocorreu a chamada reação neoliberal, nos anos de 1980, liderada por Margaret Thatcher e Ronald Reagan, que marcou uma ofensiva de estratégias liberais na economia e conservadora nos costumes.

Isso e o avanço da globalização mudaram o cenário. Os novos líderes da social-democracia enfrentaram o desafio de reinventar os conceitos e as estratégias diante do novo mundo, aprendendo inclusive com as experiências neoliberais. Sucederam-se a formação da União Europeia, em 1992, impondo austeridade monetária e fiscal, o que colocava limites claros para o financiamento do Welfare State. Depois a criação da Zona do Euro. A dissolução da URSS e a queda do Muro de Berlim colocando fim ao império soviético e à experiência do socialismo real. A revolução da era da robótica e da internet. Restou um mundo multipolar onde as EUA, China – e seu capitalismo de Estado, União Europeia, disputam a liderança e a Rússia tenta recuperar terreno e com transformações tecnológicas em ritmo inédito.

Hoje é impensável em países tão desiguais e com um atraso relativo, como o Brasil, adotar o conservadorismo, porque mudanças radicais são necessárias. Também o liberalismo radical pouco se adequa, já que o mercado não dá conta de erguer autonomamente as respostas necessárias. A perspectiva revolucionária do comunismo foi arquivada pela história. Portanto, é fundamental o diálogo da socialdemocracia e do social-liberalismo para construir um horizonte que combine, nas condições históricas concretas do século XXI, desenvolvimento sustentável, reformas sociais, equilíbrio macroeconômico, crescimento e democracia – o valor universal e permanente indispensável – realizando progressivamente os sonhos de liberdade, equidade social, sustentabilidade ambiental e justiça.

Para quem quiser iniciar-se na história da socialdemocracia e seu conteúdo recomendo a leitura dos textos “Socialismo Evolucionário” de Eduard Bernstein, “O que é uma Revolução Social” de Karl Kautsky, “O Fim do Laissez-faire” de J. M. Keynes, “A proposta Social-Democrata” organizado por Hélio Jaguaribe, “A Terceira Via” de Anthony Giddens e “A Soma e o Resto” de Fernado Henrique Cardoso.     

2 comentários:

Anônimo disse...

Texto bem interessante. Parabéns ao autor e ao blog que divulga seu trabalho!
O autor inclui como socialdemocratas diversos políticos europeus que sempre militaram no Partido Socialista, como Mitterrand na França, González na Espanha e Mário Soares em Portugal. Parece uma ampliação do conceito de socialdemocracia, talvez aceitável (ou necessária) na visão e no objetivo do autor.

Anônimo disse...

Grande texto e sábias lições de política e governabilidade com base na democracia com justiça social e respeito às leis do mercado. Muito úteis para jovens ativistas politicos e partidos de Esquerda, ainda aferrados ao dogmatismo e aos regimes de partido unico.