Folha de S. Paulo
Brasileiros votaram para preservar
democracia, o governo eleito precisa respeitá-la
O presidente da República, referindo-se ao
presidente do Banco Central, afirmou que "o país não pode ser refém de um
único homem (...) esse cidadão, que não foi eleito para nada,
acha que tem o poder de decidir as coisas".
É justamente para que o país não fique
"refém de um único homem" que existem instituições como o Banco
Central autônomo. Se for dada ampla liberdade ao presidente da República para
tomar toda e qualquer decisão, ele transformará a sociedade em sua refém.
A estabilidade das democracias exige pesos e contrapesos de poder. Em questões sujeitas à chamada "inconsistência intertemporal", na qual benefícios presentes (juros baixos, por exemplo) podem gerar ganhos políticos ao governante ao custo de grandes perdas futuras para a sociedade (inflação alta, juros altos e baixo crescimento, por muitos anos), as democracias caminharam no sentido de entregar o poder discricionário para técnicos com menores incentivos políticos e mais focados no bem-estar e estabilidade de longo prazo.
O Judiciário, o Ministério Público, as
agências reguladoras, as Forças Armadas e outras instituições públicas também
são (ou deveriam ser) comandadas por técnicos especializados nas respectivas
funções, que mantêm distância das urnas. O mesmo se dá com instituições
semipúblicas, como os fundos de pensões de empresas estatais.
Entregar ao presidente e demais autoridades
eleitas o poder decisório dessas instituições significa instituir a ditadura da
maioria. Daí porque há tanta preocupação e crítica quando há indicações
políticas para a direção de tais instituições. É sinal de que seus objetivos
precípuos e de longo prazo ficarão subordinados aos interesses da maioria do
momento.
O presidente da Petrobras afirmou que a
empresa tem "uma máquina de proibir coisas" e reclamou que a companhia
"tomou alguns caminhos" de forma racional e "apolítica".
E não deveria ser assim? Uma companhia listada
em bolsa, que capta recursos privados, precisa tomar decisões racionais e
apolíticas. A "máquina de proibir coisas" é, na verdade, um conjunto
de regras de governança que visa evitar que meia dúzia de pessoas tome as
decisões que quiser, da forma que quiser.
O reforço da governança da Petrobras veio
justamente em resposta ao elevado nível de corrupção ali instalado, quando, a
título de atingir questionáveis objetivos de políticas públicas, dilapidou-se o
patrimônio da companhia.
Mais uma vez estamos diante de mecanismos
que protegem a coletividade —os acionistas majoritários (os contribuintes) e os
minoritários— de decisões inconsistentes e irresponsáveis, que geram ganhos
políticos no curto prazo, mas muitos prejuízos em seguida.
Um diretor do BNDES propôs que a
instituição emitisse o seu próprio título público, para deixar de ser
"refém" de recursos orçamentários alocados ao Banco pelo Tesouro.
Ora, o BNDES é uma entidade 100% estatal, cuja missão é implementar políticas
públicas. Dar ao BNDES o poder de emitir título próprio é praticamente criar um
Tesouro Nacional paralelo. O BNDES emitiria o quanto quisesse, emprestaria para
quem quisesse, sem dar satisfação às autoridades fiscais ou prestar contas ao
Congresso.
O título do BNDES concorrerá diretamente
com os do Tesouro, aumentando o custo de financiamento da dívida pública, e com
debêntures e certificados privados que hoje já cumprem a função de financiar a
infraestrutura e outros setores, sem precisar que o governo entre para fazer
isso.
A bem da democracia, o BNDES tem que ser
refém da autoridade fiscal. A restrição ao seu "funding" evita dar
superpoderes ao Poder Executivo do momento. Assim como a governança da
Petrobras deve redobrar a vigilância, agora que a companhia distribuirá menos
dividendos (que iriam para o Orçamento da União, de forma transparente) para
ter mais recursos a serem alocados por seus dirigentes, sob determinação do
governo de plantão, com alta discricionariedade.
Lula foi eleito por pequena margem de
votos, garantida por eleitores que temiam que Bolsonaro desmontasse a
democracia. Seu governo precisa respeitar as instituições, limites, pesos e
contrapesos típicos da democracia.
*Pesquisador associado do Insper, é autor
de 'Por que É Difícil Fazer Reformas Econômicas no Brasil?'
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