Iniciativas em favor das mulheres vão na direção certa
O Globo
Parlamentares têm de aprovar a MP contra o
assédio sexual e o PL que pune a desigualdade salarial
Na semana em que foi celebrado o Dia
Internacional da Mulher, Legislativo e Executivo tomaram medidas que buscam
corrigir problemas recorrentes do mercado de trabalho: o assédio sexual e a
disparidade salarial entre homens e mulheres com mesmo cargo, mesma formação e
mesma experiência. Há dúvida se as ações propostas terão o efeito esperado, mas
são, sem dúvida, válidas.
Na terça-feira, a Câmara aprovou a Medida Provisória (MP) 1.140/22. O texto prevê a criação de um programa de prevenção e enfrentamento do assédio sexual em toda a administração pública e também em instituições privadas que prestem serviços à União, estados e municípios.
É enorme a subnotificação de casos de
assédio sexual. Em 2022, a Justiça do Trabalho julgou 5.047 processos
relacionados ao crime. Levantamento da empresa Data Lawyer sobre as petições
iniciais que citam o termo (não necessariamente sobre assédio) reuniu um número
maior: 6.440. Divulgada no início deste mês, uma pesquisa
do Datafolha encomendada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública traz um
quadro mais fidedigno. Entre as entrevistadas, 18,6% dizem ter
recebido cantadas ou comentários desrespeitosos no ambiente de trabalho.
De acordo com texto aprovado na Câmara, que
será examinado no Senado, o programa terá duas frentes principais. Na da
prevenção, as instituições deverão fornecer materiais educativos com exemplos
de condutas caracterizadas como assédio sexual, ou outros crimes contra a
dignidade, e implementar políticas de boas práticas.
Para dar voz às vítimas e buscar a punição
dos culpados, terão de divulgar a legislação pertinente e adotar políticas de
proteção e acolhimento. Também deverão estabelecer procedimentos para
encaminhar reclamações garantindo sigilo e oferecer canais acessíveis para
denúncias. Será preciso exigir execução exemplar e continuada do programa
preventivo do assédio para que ele surta os efeitos esperados.
Na quarta-feira, o governo federal
apresentou outra iniciativa legislativa relevante para o país alcançar a
equidade entre os gêneros: um Projeto de Lei (PL) que obriga à igualdade
salarial entre homens e mulheres com funções iguais — medida óbvia,
infelizmente incomum. Se a lei for aprovada pelo Congresso, a multa de empresas
irregulares será equivalente a dez vezes o salário mais alto praticado na
companhia.
Será necessário ficar alerta a
consequências indesejadas, como a judicialização excessiva. Mesmo assim, a
possibilidade de sanção financeira ajudará a transformar uma realidade
inaceitável: no Brasil, homens ganham mais que mulheres em todas as faixas
etárias. À medida que aumenta a remuneração, cresce a vantagem masculina. No
grupo dos 10% mais bem remunerados, apenas 33% são mulheres, segundo pesquisa
da Fundação Getulio Vargas. Diferentes análises comprovam a mesma tendência.
É dever da opinião pública pressionar o
Congresso para transformar a MP do assédio e o PL da igualdade salarial em lei.
É verdade que, mesmo com as duas vitórias, nenhum dos dois problemas estará
resolvido. Mas são iniciativas que caminham na direção correta.
Empresas que se beneficiam de trabalho
escravo têm de ser punidas
O Globo
Foi correto impor indenização. Não pode
haver tergiversação nem atribuição de culpa só a terceirizadas
É inaceitável que persistam no Brasil os
flagrantes de trabalho análogo à escravidão no campo. O caso de maior
repercussão aconteceu em Bento Gonçalves, Rio Grande do Sul. Mais de 200
contratados para colher uvas nas vinícolas Salton, Aurora e Garibaldi foram
encontrados em condições degradantes. Oriundos da Bahia, mal alojados em
albergues e cumprindo jornadas extenuantes, só foram resgatados depois de
alguns escaparem da vigilância e pedirem ajuda à polícia. Reclamaram de ser
extorquidos na compra de itens básicos, de não receber o que havia sido
prometido, de ser agredidos e torturados com choque elétrico e spray de
pimenta. A Polícia Rodoviária Federal prendeu Pedro Augusto de Oliveira
Santana, administrador da empresa de terceirização Fênix, solto depois de pagar
fiança.
O Ministério Público do Trabalho (MPT), que
investiga o caso, informou ontem que as vinícolas aceitaram assinar um Termo de
Ajuste de Conduta por meio do qual pagarão R$ 7 milhões de indenização por
danos morais, individuais e coletivos — R$ 2 milhões aos trabalhadores e R$ 5
milhões a projetos destinados a reparação. A Federação das Cooperativas
Vinícolas do Rio Grande do Sul (Fecovinho) afirmou que o momento é de
“transformação”, prometeu um debate e uma “consultoria setorial para toda a
cadeia produtiva, para que ela possa estabelecer novas relações contratuais”.
A saída mais fácil teria sido
responsabilizar apenas a empresa de mão de obra terceirizada. Mas seria a
solução errada. É preciso deixar claro para quem contrata serviço de terceiros
que não deve se preocupar apenas com a qualidade, mas também em fiscalizar a
forma como é prestado. Por isso fez bem o MPT em impor indenizações às próprias
vinícolas, além de manter a investigação sobre a terceirizada.
Elas não são as únicas a depender do
trabalho em condições degradantes. No final de janeiro, o MPT resgatou 32
trabalhadores rurais em situação idêntica numa fazenda do interior paulista,
fornecedora de cana-de-açúcar à Colombo, dona da marca Caravelas. Em vez da
Bahia, haviam sido contratados em Minas. A lista de denúncias também provoca repulsa.
Tiveram de arcar com a viagem, eram mal alimentados, o salário pago não foi o
combinado, e parte deles ficou alojada num açougue.
O contrato de mão de obra terceirizada
facilita a vida de empresas que necessitam de trabalho por períodos específicos
e de quem só teria como alternativa o desemprego. O problema não está na
terceirização em si, relação de trabalho referendada pelo Supremo. Está na
falta de pagamento, na extorsão, na tortura, nas agressões e noutras
barbaridades. Ainda que houvesse vínculo empregatício com as vinícolas, seriam
crimes da mesma forma.
Empresas que se beneficiem de trabalho escravo de terceirizadas têm de ser consideradas corresponsáveis, investigadas e punidas. Só a punição exemplar, com o dano de imagem provocado no mercado, incentiva a reação preventiva necessária para extinguir esse tipo de barbaridade. Não pode haver atenuante nem tergiversação.
O teste da CPI
Folha de S. Paulo
Lula tem batismo de fogo no Congresso com
plano de comissão sobre 8 de janeiro
Ao que tudo indica, o governo de Luiz
Inácio Lula da Silva (PT) enfrentará seu primeiro teste relevante no Congresso
não com discussões em torno de projetos de lei, mas com o debate perfunctório
sobre a criação de uma comissão parlamentar para investigar os atos golpistas
de 8 de janeiro.
O presidente, alguns dias depois dos
ataques tresloucados em Brasília, deixou claro
que não endossaria a instalação do colegiado.
Argumentou, e a história é sua melhor
evidência, que a dinâmica de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) acaba
por atrapalhar a rotina do governo, deslocando atenção e energia dos
congressistas para um palco infértil do ponto de vista da agenda legislativa.
Verdade que, sob a perspectiva do interesse
nacional, impõe-se como prioridade não só esclarecer o vandalismo
antidemocrático protagonizado por apoiadores de Jair Bolsonaro (PL) como também
processar e julgar os partícipes da trama criminosa, sobretudo seus líderes e
financiadores.
Mas não se pode tirar a razão de Lula
quando pondera que o episódio já é objeto de inquéritos no Supremo Tribunal
Federal, onde as apurações avançam a passos largos.
Daí por que a CPI teria mesmo pouca
serventia —salvo no que diz respeito aos interesses da oposição, ávida por usar
o colegiado como fonte de desgaste do governo.
O problema de Lula é que já se coletaram as
assinaturas necessárias para criar não uma, mas duas comissões: uma exclusiva
do Senado e a outra
mista, composta por senadores e deputados.
Com isso, o presidente do Senado, Rodrigo
Pacheco (PSD-MG), avisou que, cumpridos os requisitos, não poderá travar nenhum
pedido de investigação. Assim que houver uma sessão conjunta do Congresso, ele
formalizará a instalação do colegiado parlamentar.
Ao governo petista resta apenas um recurso:
convencer os congressistas a retirarem seus nomes do requerimento de criação da
CPI.
A situação é insólita porque entre os
signatários estão parlamentares de partidos considerados da base lulista. Se
resistirem ao apelo do Palácio do Planalto e mantiverem as assinaturas,
mostrarão que os aliados do governo são ainda menos confiáveis do que se
supunha à primeira vista.
Por outro lado, caso a articulação
governista seja bem-sucedida, Lula demonstrará mais força do que parecia ter a
princípio, dado que uma CPI requer o apoio de apenas um terço de cada Casa —171
deputados e 27 senadores.
A ironia é que, neste caso, o governo não
terá mais desculpa para não tocar sua pauta legislativa —o que até agora foi
incapaz de fazer.
R$ 1 bi para nada
Folha de S. Paulo
VLT de Cuiabá reúne as mazelas ligadas ao
investimento público, em baixa no país
Além do trauma esportivo dos 7 a 1 para
Alemanha, a Copa de 2014 no Brasil deixou um legado de estádios megalômanos de
escassa utilidade posterior, além de obras urbanas atrasadas ou inacabadas.
Entre esses casos, o mais escandaloso
talvez seja o do fracassado VLT (veículo leve sobre trilhos) que ligaria Cuiabá
a Várzea Grande, no Mato Grosso. Uma década depois, o
governo estadual desistiu da empreitada e arrancou 6 km de trilhos já
instalados. O trecho dará lugar a um corredor de ônibus, ou BRT.
Estão reunidas no episódio todas as mazelas
associadas a investimentos públicos no país: projetos mal concebidos, atrasos
na execução, custos crescentes e, não menos importante, corrupção.
O VLT contou com financiamento da Caixa
Econômica Federal. Noticiou-se em 2011 que a presidente Dilma Rousseff
(PT), pressionada
pelo governo mato-grossense, concordou em mudar o plano original,
que previa um BRT. Com a troca, os custos subiram de R$ 500 milhões para R$ 1,2
bilhão.
No ano seguinte, o Ministério Público já
investigava suspeitas de direcionamento na licitação, e a Justiça chegou a
suspender a execução da obra por considerá-la "ilegal, inviável e
superdimensionada".
Silval Barbosa, o governador que deu início
ao projeto, declararia à Polícia Federal, em 2017, que houve pagamento de
propina por parte das empresas contratadas.
Hoje, depois de gastos de R$ 1 bilhão, 24
km de aço importado da Polônia e 40 trens comprados, o governo do estado
calcula que seriam necessários mais R$ 760 milhões para a conclusão do VLT. A
alternativa do BRT não sairá por muito menos —serão R$ 680 milhões.
O ano da Copa no Brasil marcou também o fim
de um período de alta do investimento público patrocinado pelas administrações
petistas. Entre 2009 e 2014, essa modalidade de despesa oscilou em torno de 4%
do
Produto Interno Bruto. Mas montantes, como
se viu, não são garantia de melhora correspondente da produção e dos serviços.
Após o colapso do Orçamento sob Dilma e os
escândalos de corrupção, tais dispêndios em obras e equipamentos minguaram nos
últimos anos, somando apenas 2,05% do PIB em 2021.
O governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) anuncia que pretende elevar os investimentos públicos, de fato necessários em áreas que não despertam o interesse privado. Para evitar erros do passado, há não apenas que respeitar o equilíbrio fiscal, mas sobretudo buscar novos meios de gestão e controle.
Prisão não é ato discricionário de juiz
O Estado de S. Paulo.
Ao soltar presas do 8 de Janeiro por
ocasião do Dia da Mulher, Moraes deixa claro que não havia base legal para
mantê-las na cadeia. Prisão decorre da lei, e não da vontade do juiz
Se, por hipótese, o presidente da República
deseja utilizar o Dia Internacional da Mulher para conceder indulto a
determinadas mulheres presas, trata-se de exercício de uma competência
constitucional, de natureza política, própria do Poder Executivo. Já o
Judiciário não dispõe dessa discricionariedade. Ele apenas aplica a lei e, no seu
exercício jurisdicional, evita todo e qualquer indício de conotação política,
como forma de preservar e fortalecer a sua autoridade. Afinal, a Justiça não é
órgão político e nunca deve atuar movida por razões políticas – por mais
louváveis que possam ser suas intenções.
Errou, portanto, o ministro Alexandre de
Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), ao utilizar o 8 de Março para soltar
149 mulheres que haviam sido presas por envolvimento nos atos criminosos do 8
de Janeiro.
Ninguém discute que essas mulheres deveriam
ser soltas. A legislação processual é cristalina. “A prisão preventiva somente
será determinada quando não for cabível a sua substituição por outra medida
cautelar”, diz o
Código de Processo Penal. Além disso, para
reforçar o caráter excepcional da prisão – em consonância com o regime de
liberdade da Constituição –, a lei estabelece que “o não cabimento da
substituição (da prisão) por outra medida cautelar deverá ser justificado de
forma fundamentada nos elementos presentes do caso concreto, de forma
individualizada”.
O problema foi a soltura sob pretexto do
Dia Internacional da Mulher. Ou há fundamento legal para alguém estar preso ou
não há, simples assim. E, se não existe, ninguém deve ficar nem um dia a mais
na prisão. A pessoa deve ser solta imediatamente. O primeiro e mais básico ato
de homenagem a uma pessoa – de reconhecimento de sua dignidade – é respeitar
sua liberdade.
No momento em que um juiz solta mulheres
por ocasião do 8 de Março, há a afirmação implícita de que ele tem discricionariedade
sobre a liberdade daquelas pessoas. Assim, a prisão preventiva deixa de ser
decorrência da aplicação da lei sobre as circunstâncias concretas de cada
pessoa para tornar-se um ato de vontade do magistrado: um ato discricionário.
No Estado Democrático de Direito, não há prisões assim; não há juízes com esse
poder.
Deve-se reconhecer que, dentro do sistema
de Justiça brasileiro, o comportamento de Alexandre de Moraes, que aqui se
critica, está longe de ser uma exceção. Na verdade, o problema é muito maior e
mais grave. Em todo o País, há muitas prisões preventivas completamente
ilegais, sem a devida individualização das circunstâncias de cada pessoa e sem
a necessária fundamentação legal. Por exemplo, não raro, existem pessoas presas
com base apenas em reconhecimento fotográfico, ou seja, a partir de elementos
probatórios inteiramente frágeis e falhos. Verifica-se também, com frequência,
um automatismo na manutenção de prisões preventivas, sem a periódica revisão de
sua efetiva necessidade, como manda a lei.
Reconhecer eventuais excessos ou medidas
que fragilizam a autoridade da Justiça não significa, por óbvio, desautorizar o
trabalho do Judiciário, como se o País estivesse sob uma ditadura judicial. Não
há nada no horizonte que fundamente minimamente essa crítica. Ao contrário. Faz
parte do funcionamento normal da Justiça a prática de erros. E se isso é assim
em situações corriqueiras, a falibilidade é ainda mais justificável num caso
como o do 8 de Janeiro, que envolve muitas pessoas e circunstâncias
absolutamente excepcionais. Seria ingenuidade supor que a necessária resposta
da Justiça aos atos golpistas seria imaculada. A questão é assegurar os meios
concretos para que eventuais erros sejam rapidamente corrigidos. Nesse sentido,
é indispensável preservar, em todas as esferas, a garantia do duplo grau de
jurisdição: que outro órgão julgador tenha a possibilidade de revisar a decisão
judicial.
O Supremo teve e tem um papel fundamental
na defesa da democracia. É por isso que se olha com lupa cada ato seu – para
que a Corte possa continuar desempenhando, com autoridade e respeito, sua
missão.
O desencanto com a ‘frente ampla’
O Estado de S. Paulo.
Quanto mais se evidencia o engodo, mais se
mostra necessário construir uma verdadeira coalizão plural para frear os
ímpetos hegemônicos do PT e alternativas à polarização que ele fomentou
Em 2022, brotou forte em uma imensa parcela
do eleitorado o anseio por uma frente ampla democrática capaz de serenar o País
e distensionar as relações entre as instituições, abrindo canais de comunicação
entre o melhor das forças republicanas à direita e à esquerda para enfrentar
desafios urgentes, como a recuperação pós-pandemia, a fome, a inflação, e
pavimentar os caminhos para o crescimento econômico e para melhorar a educação,
a saúde ou a segurança pública. Seja por falta de ideias, de paixão ou
articulação, os candidatos da chamada terceira via não conseguiram cativar
esses eleitores. Mas o candidato que acabou vencedor também não conseguiu.
A coligação de Lula da Silva não logrou
reunir senão partidos de esquerda.
Ela não conquistou a maioria no primeiro
turno. No segundo, venceu pela margem mais apertada desde a redemocratização,
perdendo em regiões importantes como o Sul, Sudeste e Centro-Oeste e entre as
classes média e alta. Aqueles que não lhe deram um voto de confiança, seja por
terem votado no adversário, nulo, branco ou não terem votado, representam quase
dois terços do eleitorado. Na Câmara, ela conquistou pouco mais de 130 cadeiras
(cerca de um quarto) e no Senado, 5 das 27 disputadas.
Longe de representarem o triunfo de uma
“frente ampla democrática” consolidada, esses resultados sugerem que o grande
desafio dos vencedores seria construir essa frente por meio de negociações e,
inevitavelmente, concessões, distribuindo o poder e articulando projetos de
conteúdos mais moderados. Mas o governo fez o oposto.
“Estamos vendo um Lula até raivoso em
determinados momentos”, disse ao Estadão o ex-senador pelo PSDB Tasso
Jereissati, que apoiou Lula no segundo turno contra o mal maior, Jair Bolsonaro.
“Ele mesmo falou que era preciso acabar com o nós contra eles. Não veio um Lula
Mandela, veio um Lula antiBolsonaro”, disse o ex-senador, referindo-se ao líder
sul-africano que, mesmo após 27 anos na prisão, dialogou com seus algozes em
nome da união do país.
Não deixa de ser um tanto surpreendente que
o experiente Jereissati se diga “muito surpreso” com a radicalidade do governo
na forma e no conteúdo. Não havia nada na campanha que autorizasse expectativas
de que o PT teria revisto suas pretensões hegemônicas e seus programas
retrógrados; não havia nenhuma proposta que autorizasse supor que Lula adotaria
o pragmatismo de seu primeiro mandato; não havia nenhuma retratação pelas
políticas econômicas heterodoxas gestadas em seu segundo mandato e consumadas
pela sua criatura Dilma Rousseff, que mergulharam o País na pior recessão da
história recente; nem pelas táticas empregadas no mensalão ou no petrolão, que
o mergulharam na maior crise moral da Nova República; nem pelo sectarismo
virulento que o polarizou e abriu caminho para a eleição da nêmesis petista,
Jair Bolsonaro.
Lula e o PT não só não aprenderam nada nem
esqueceram nada, como falam de um Brasil em estado catastrófico, como se não
tivessem recebido cinco dos últimos seis mandatos e governado o País por quase
14 dos últimos 20 anos.
Já no poder, o Diretório Nacional do PT,
que, como se sabe, nada mais é que um porta-voz de Lula, consolidou essa
atitude em uma resolução eivada de ressentimentos e mentiras. O partido teria
sido vítima de uma conspiração das elites, e seu retorno ao poder é uma espécie
de reparação histórica que lhe dará a oportunidade de se vingar e implementar
plenamente seus dogmas.
Lula não despreza apenas os partidos de
oposição, mas seus próprios aliados. “O único partido com cabeça, tronco e
membro é o PT”, disse em entrevista recente. “O restante é uma cooperativa de
deputados que se juntam nas eleições.”
Assim, a rigor, não se pode dizer que a
“frente ampla democrática” de Lula malogrou, porque ela nunca existiu, nem nas
intenções do partido, muito menos nas suas articulações, apenas na retórica
eleitoral. Mas quanto mais o engodo é evidenciado, mais se mostra necessário
construir uma verdadeira frente ampla democrática, seja para frear a marcha da
insensatez lulopetista rumo a um passado idealizado como glorioso que na
realidade foi desastroso, seja para construir as bases de um futuro governo
verdadeiramente amplo, plural, eficiente e republicano.
Nem inadimplência segura inflação
O Estado de S. Paulo.
IPCA de fevereiro lança novas dúvidas sobre cenário econômico e sinaliza que é cedo para o BC reduzir os juros
O número de brasileiros inadimplentes bateu
recorde histórico e chegou a 70,1 milhões de pessoas em janeiro, segundo dados
da Serasa. O valor dos débitos também foi o mais alto da série e atingiu a
marca de R$ 323,3 bilhões. No intervalo de um ano, o número de pessoas que
ficaram com o nome sujo na praça subiu 8,3%, enquanto o volume das dívidas
aumentou assombrosos 24%.
Esse quadro tenebroso no que diz respeito
ao endividamento se deve a um conjunto de fatores. Além do aumento das taxas de
juros, que por si só já retroalimenta o crescimento das dívidas, muitas
famílias buscaram se financiar com linhas que já são tradicionalmente mais caras,
como cheque especial e cartão de crédito.
Não há dúvidas, no entanto, de que a
inflação tem contribuído para ampliar as agruras dos inadimplentes. “A inflação
fez um estrago gigantesco no orçamento das famílias, especialmente nas de baixa
renda, o que gerou esse crescimento no número de brasileiros inadimplentes”,
explicou ao Estadão o economistachefe da Serasa, Luiz Rabi. E o pior é que a
inflação insiste em não arrefecer.
Em fevereiro, o IPCA subiu 0,84%, ante
0,53% em janeiro, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE). A taxa de difusão, que mede a proporção dos 377 subitens do indicador
que tiveram aumento de preços no período, avançou de 63% em janeiro para 65% em
fevereiro. Dos nove grupos que compõem o índice, oito registraram altas no mês
passado, com exceção de vestuário.
Tudo indica que a tendência de
desaceleração que vinha sendo observada até o fim do ano passado está perdendo
força. Isso já seria suficientemente preocupante, mas o problema é que esse
movimento começou a ocorrer com a inflação ainda rodando em níveis bastante
elevados. “Estamos em uma pausa na desinflação”, disse Anna Reis, economista da
GAP Asset. A economista-chefe da CM Capital, Carla Argenta, mencionou os
impactos positivos da política monetária em bens duráveis e alimentos, mas
destacou que os serviços, que também costumam reagir às restrições geradas por
juros altos, não apenas resistem a ceder, como subiram 1,41%.
Como não poderia ser diferente, o mercado
financeiro ajustou as expectativas ao resultado do IPCA, e os juros futuros
voltaram a subir imediatamente após o indicador. A despeito das incertezas
sobre a política fiscal do governo e sobre o novo arcabouço, parte dos
investidores avaliava que a piora no mercado de crédito para empresas – em razão
da crise das Americanas – poderia estimular o Banco Central (BC) a antecipar o
ciclo de redução dos juros, hoje em 13,75% ao ano.
No entanto, nem mesmo a inadimplência
recorde das pessoas físicas tem sido suficiente para debelar a resiliência da
inflação – e vale lembrar que controlar a inflação e garantir a estabilidade do
poder de compra da moeda é a principal missão institucional do BC. Apesar de
toda a pressão do governo de Lula da Silva e dos temores de vários setores
sobre uma recessão, o cenário macroeconômico segue muito incerto e pouco
favorável para motivar o BC a começar a reduzir a Selic.
Uma difícil composição
Revista Veja
O Brasil não pode ficar paralisado em meio
à queda de braço entre poderes. A coalizão precisa acontecer em torno de
princípios e valores — e quanto antes
Há mais de trinta anos, o sociólogo Sergio
Abranches diagnosticou de forma precisa a nova relação entre os poderes
Executivo e Legislativo que começou a tomar forma no país nas últimas décadas.
Segundo o especialista, passou a vigorar no Brasil o “presidencialismo de
coalizão”, um regime no qual o ocupante do Palácio do Planalto depende cada vez
mais da aprovação do Congresso para impor sua pauta programática. Nos casos
mais complexos, dois terços dos deputados precisam votar com o governo, algo
que só é possível a partir de uma base parlamentar sólida. Assim, elevou-se
substancialmente a necessidade das negociações suprapartidárias.
Dentro de um contexto em que há uma selva
de legendas sem demarcações ideológicas claras, a semente do chamado Centrão
germinou, cresceu e adquiriu viço. O fenômeno teve origem na época da
Constituinte de 1988, quando parlamentares conservadores começaram a se unir
para combater propostas que consideravam progressistas demais durante as discussões
temáticas lideradas por Ulysses Guimarães. Um dos líderes do movimento, o
deputado Roberto Cardoso Alves (1927-1996) cunhou na época a frase que definiu
para sempre o espírito da turma: “É dando que se recebe”. Nos governos
seguintes, o grupo teve diferentes lideranças e nuances políticas, mas sem
nunca abandonar esse espírito pragmático que dá origem a algumas negociações
republicanas com o Poder Executivo em torno de projetos e prioridades, e outras
que ficam bastante longe disso, pois versam sobre distribuição de cargos e
verbas.
Em seu retrato mais atual, o Centrão se
apresenta de uma forma ainda mais coesa e com poderes multiplicados, sob a
batuta competente de Arthur Lira, o presidente da Câmara.
Outra característica marcante do momento é que o grupo, com claras inclinações
liberais e conservadoras, distancia-se (e muito) das convicções do presidente
eleito, o que já cria obstáculos naturais para as conversas entre os poderes.
Como se não bastasse, a articulação política de Lula não parece até aqui ter
entrado no jogo do presidencialismo de coalizão com a necessária organização.
Conforme mostra a reportagem da edição,
alas do PT capricham no fogo amigo, dificultando a convivência do governo com
outras legendas, sem que o presidente faça gestos firmes de contenção, algo que
soa como uma carta branca para autorizar os companheiros a fazer a medição de
forças. Do outro lado, Lira vem aumentando o tom dos alertas, reclamando de que
o Poder Executivo tem sido amador no trato com o Congresso. Em um evento na
última segunda, 6, afirmou que Lula não tem hoje uma base de apoio consistente
nem na Câmara nem no Senado, mas ponderou que há tempo ainda para que a atuação
das lideranças do Palácio do Planalto se estabilize.
Para o país, é fundamental o entendimento,
desde que, claro, ele ocorra dentro do desejável cânone republicano. Reformas
necessárias, como a tributária, e projetos como o do novo arcabouço fiscal
serão apreciados em breve pelo Congresso. Lá fora, a situação vem se
deteriorando com sinais de recessão na economia americana, o que vai acarretar
uma alta dos juros nos Estados Unidos, e a momentânea falta de pujança da
China, nosso maior parceiro comercial. Diante desse quadro sombrio, o Brasil
não pode ficar paralisado em meio a uma queda de braço entre os poderes (mais
uma). Evidentemente, também não seria positivo construir essa composição
repetindo erros do passado, nos moldes do toma lá dá cá que originou o
mensalão. A coalizão precisa acontecer em torno de princípios e valores — e
quanto antes.
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