sábado, 11 de março de 2023

O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

Iniciativas em favor das mulheres vão na direção certa

O Globo

Parlamentares têm de aprovar a MP contra o assédio sexual e o PL que pune a desigualdade salarial

Na semana em que foi celebrado o Dia Internacional da Mulher, Legislativo e Executivo tomaram medidas que buscam corrigir problemas recorrentes do mercado de trabalho: o assédio sexual e a disparidade salarial entre homens e mulheres com mesmo cargo, mesma formação e mesma experiência. Há dúvida se as ações propostas terão o efeito esperado, mas são, sem dúvida, válidas.

Na terça-feira, a Câmara aprovou a Medida Provisória (MP) 1.140/22. O texto prevê a criação de um programa de prevenção e enfrentamento do assédio sexual em toda a administração pública e também em instituições privadas que prestem serviços à União, estados e municípios.

É enorme a subnotificação de casos de assédio sexual. Em 2022, a Justiça do Trabalho julgou 5.047 processos relacionados ao crime. Levantamento da empresa Data Lawyer sobre as petições iniciais que citam o termo (não necessariamente sobre assédio) reuniu um número maior: 6.440. Divulgada no início deste mês, uma pesquisa do Datafolha encomendada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública traz um quadro mais fidedigno. Entre as entrevistadas, 18,6% dizem ter recebido cantadas ou comentários desrespeitosos no ambiente de trabalho.

De acordo com texto aprovado na Câmara, que será examinado no Senado, o programa terá duas frentes principais. Na da prevenção, as instituições deverão fornecer materiais educativos com exemplos de condutas caracterizadas como assédio sexual, ou outros crimes contra a dignidade, e implementar políticas de boas práticas.

Para dar voz às vítimas e buscar a punição dos culpados, terão de divulgar a legislação pertinente e adotar políticas de proteção e acolhimento. Também deverão estabelecer procedimentos para encaminhar reclamações garantindo sigilo e oferecer canais acessíveis para denúncias. Será preciso exigir execução exemplar e continuada do programa preventivo do assédio para que ele surta os efeitos esperados.

Na quarta-feira, o governo federal apresentou outra iniciativa legislativa relevante para o país alcançar a equidade entre os gêneros: um Projeto de Lei (PL) que obriga à igualdade salarial entre homens e mulheres com funções iguais — medida óbvia, infelizmente incomum. Se a lei for aprovada pelo Congresso, a multa de empresas irregulares será equivalente a dez vezes o salário mais alto praticado na companhia.

Será necessário ficar alerta a consequências indesejadas, como a judicialização excessiva. Mesmo assim, a possibilidade de sanção financeira ajudará a transformar uma realidade inaceitável: no Brasil, homens ganham mais que mulheres em todas as faixas etárias. À medida que aumenta a remuneração, cresce a vantagem masculina. No grupo dos 10% mais bem remunerados, apenas 33% são mulheres, segundo pesquisa da Fundação Getulio Vargas. Diferentes análises comprovam a mesma tendência.

É dever da opinião pública pressionar o Congresso para transformar a MP do assédio e o PL da igualdade salarial em lei. É verdade que, mesmo com as duas vitórias, nenhum dos dois problemas estará resolvido. Mas são iniciativas que caminham na direção correta.

Empresas que se beneficiam de trabalho escravo têm de ser punidas

O Globo

Foi correto impor indenização. Não pode haver tergiversação nem atribuição de culpa só a terceirizadas

É inaceitável que persistam no Brasil os flagrantes de trabalho análogo à escravidão no campo. O caso de maior repercussão aconteceu em Bento Gonçalves, Rio Grande do Sul. Mais de 200 contratados para colher uvas nas vinícolas Salton, Aurora e Garibaldi foram encontrados em condições degradantes. Oriundos da Bahia, mal alojados em albergues e cumprindo jornadas extenuantes, só foram resgatados depois de alguns escaparem da vigilância e pedirem ajuda à polícia. Reclamaram de ser extorquidos na compra de itens básicos, de não receber o que havia sido prometido, de ser agredidos e torturados com choque elétrico e spray de pimenta. A Polícia Rodoviária Federal prendeu Pedro Augusto de Oliveira Santana, administrador da empresa de terceirização Fênix, solto depois de pagar fiança.

O Ministério Público do Trabalho (MPT), que investiga o caso, informou ontem que as vinícolas aceitaram assinar um Termo de Ajuste de Conduta por meio do qual pagarão R$ 7 milhões de indenização por danos morais, individuais e coletivos — R$ 2 milhões aos trabalhadores e R$ 5 milhões a projetos destinados a reparação. A Federação das Cooperativas Vinícolas do Rio Grande do Sul (Fecovinho) afirmou que o momento é de “transformação”, prometeu um debate e uma “consultoria setorial para toda a cadeia produtiva, para que ela possa estabelecer novas relações contratuais”.

A saída mais fácil teria sido responsabilizar apenas a empresa de mão de obra terceirizada. Mas seria a solução errada. É preciso deixar claro para quem contrata serviço de terceiros que não deve se preocupar apenas com a qualidade, mas também em fiscalizar a forma como é prestado. Por isso fez bem o MPT em impor indenizações às próprias vinícolas, além de manter a investigação sobre a terceirizada.

Elas não são as únicas a depender do trabalho em condições degradantes. No final de janeiro, o MPT resgatou 32 trabalhadores rurais em situação idêntica numa fazenda do interior paulista, fornecedora de cana-de-açúcar à Colombo, dona da marca Caravelas. Em vez da Bahia, haviam sido contratados em Minas. A lista de denúncias também provoca repulsa. Tiveram de arcar com a viagem, eram mal alimentados, o salário pago não foi o combinado, e parte deles ficou alojada num açougue.

O contrato de mão de obra terceirizada facilita a vida de empresas que necessitam de trabalho por períodos específicos e de quem só teria como alternativa o desemprego. O problema não está na terceirização em si, relação de trabalho referendada pelo Supremo. Está na falta de pagamento, na extorsão, na tortura, nas agressões e noutras barbaridades. Ainda que houvesse vínculo empregatício com as vinícolas, seriam crimes da mesma forma.

Empresas que se beneficiem de trabalho escravo de terceirizadas têm de ser consideradas corresponsáveis, investigadas e punidas. Só a punição exemplar, com o dano de imagem provocado no mercado, incentiva a reação preventiva necessária para extinguir esse tipo de barbaridade. Não pode haver atenuante nem tergiversação.

O teste da CPI

Folha de S. Paulo

Lula tem batismo de fogo no Congresso com plano de comissão sobre 8 de janeiro

Ao que tudo indica, o governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) enfrentará seu primeiro teste relevante no Congresso não com discussões em torno de projetos de lei, mas com o debate perfunctório sobre a criação de uma comissão parlamentar para investigar os atos golpistas de 8 de janeiro.

O presidente, alguns dias depois dos ataques tresloucados em Brasília, deixou claro que não endossaria a instalação do colegiado.

Argumentou, e a história é sua melhor evidência, que a dinâmica de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) acaba por atrapalhar a rotina do governo, deslocando atenção e energia dos congressistas para um palco infértil do ponto de vista da agenda legislativa.

Verdade que, sob a perspectiva do interesse nacional, impõe-se como prioridade não só esclarecer o vandalismo antidemocrático protagonizado por apoiadores de Jair Bolsonaro (PL) como também processar e julgar os partícipes da trama criminosa, sobretudo seus líderes e financiadores.

Mas não se pode tirar a razão de Lula quando pondera que o episódio já é objeto de inquéritos no Supremo Tribunal Federal, onde as apurações avançam a passos largos.

Daí por que a CPI teria mesmo pouca serventia —salvo no que diz respeito aos interesses da oposição, ávida por usar o colegiado como fonte de desgaste do governo.

O problema de Lula é que já se coletaram as assinaturas necessárias para criar não uma, mas duas comissões: uma exclusiva do Senado e a outra mista, composta por senadores e deputados.

Com isso, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), avisou que, cumpridos os requisitos, não poderá travar nenhum pedido de investigação. Assim que houver uma sessão conjunta do Congresso, ele formalizará a instalação do colegiado parlamentar.

Ao governo petista resta apenas um recurso: convencer os congressistas a retirarem seus nomes do requerimento de criação da CPI.

A situação é insólita porque entre os signatários estão parlamentares de partidos considerados da base lulista. Se resistirem ao apelo do Palácio do Planalto e mantiverem as assinaturas, mostrarão que os aliados do governo são ainda menos confiáveis do que se supunha à primeira vista.

Por outro lado, caso a articulação governista seja bem-sucedida, Lula demonstrará mais força do que parecia ter a princípio, dado que uma CPI requer o apoio de apenas um terço de cada Casa —171 deputados e 27 senadores.

A ironia é que, neste caso, o governo não terá mais desculpa para não tocar sua pauta legislativa —o que até agora foi incapaz de fazer.

R$ 1 bi para nada

Folha de S. Paulo

VLT de Cuiabá reúne as mazelas ligadas ao investimento público, em baixa no país

Além do trauma esportivo dos 7 a 1 para Alemanha, a Copa de 2014 no Brasil deixou um legado de estádios megalômanos de escassa utilidade posterior, além de obras urbanas atrasadas ou inacabadas.

Entre esses casos, o mais escandaloso talvez seja o do fracassado VLT (veículo leve sobre trilhos) que ligaria Cuiabá a Várzea Grande, no Mato Grosso. Uma década depois, o governo estadual desistiu da empreitada e arrancou 6 km de trilhos já instalados. O trecho dará lugar a um corredor de ônibus, ou BRT.

Estão reunidas no episódio todas as mazelas associadas a investimentos públicos no país: projetos mal concebidos, atrasos na execução, custos crescentes e, não menos importante, corrupção.

O VLT contou com financiamento da Caixa Econômica Federal. Noticiou-se em 2011 que a presidente Dilma Rousseff (PT), pressionada pelo governo mato-grossense, concordou em mudar o plano original, que previa um BRT. Com a troca, os custos subiram de R$ 500 milhões para R$ 1,2 bilhão.

No ano seguinte, o Ministério Público já investigava suspeitas de direcionamento na licitação, e a Justiça chegou a suspender a execução da obra por considerá-la "ilegal, inviável e superdimensionada".

Silval Barbosa, o governador que deu início ao projeto, declararia à Polícia Federal, em 2017, que houve pagamento de propina por parte das empresas contratadas.

Hoje, depois de gastos de R$ 1 bilhão, 24 km de aço importado da Polônia e 40 trens comprados, o governo do estado calcula que seriam necessários mais R$ 760 milhões para a conclusão do VLT. A alternativa do BRT não sairá por muito menos —serão R$ 680 milhões.

O ano da Copa no Brasil marcou também o fim de um período de alta do investimento público patrocinado pelas administrações petistas. Entre 2009 e 2014, essa modalidade de despesa oscilou em torno de 4% do

Produto Interno Bruto. Mas montantes, como se viu, não são garantia de melhora correspondente da produção e dos serviços.

Após o colapso do Orçamento sob Dilma e os escândalos de corrupção, tais dispêndios em obras e equipamentos minguaram nos últimos anos, somando apenas 2,05% do PIB em 2021.

O governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) anuncia que pretende elevar os investimentos públicos, de fato necessários em áreas que não despertam o interesse privado. Para evitar erros do passado, há não apenas que respeitar o equilíbrio fiscal, mas sobretudo buscar novos meios de gestão e controle.

Prisão não é ato discricionário de juiz

O Estado de S. Paulo.

Ao soltar presas do 8 de Janeiro por ocasião do Dia da Mulher, Moraes deixa claro que não havia base legal para mantê-las na cadeia. Prisão decorre da lei, e não da vontade do juiz

Se, por hipótese, o presidente da República deseja utilizar o Dia Internacional da Mulher para conceder indulto a determinadas mulheres presas, trata-se de exercício de uma competência constitucional, de natureza política, própria do Poder Executivo. Já o Judiciário não dispõe dessa discricionariedade. Ele apenas aplica a lei e, no seu exercício jurisdicional, evita todo e qualquer indício de conotação política, como forma de preservar e fortalecer a sua autoridade. Afinal, a Justiça não é órgão político e nunca deve atuar movida por razões políticas – por mais louváveis que possam ser suas intenções.

Errou, portanto, o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), ao utilizar o 8 de Março para soltar 149 mulheres que haviam sido presas por envolvimento nos atos criminosos do 8 de Janeiro.

Ninguém discute que essas mulheres deveriam ser soltas. A legislação processual é cristalina. “A prisão preventiva somente será determinada quando não for cabível a sua substituição por outra medida cautelar”, diz o

Código de Processo Penal. Além disso, para reforçar o caráter excepcional da prisão – em consonância com o regime de liberdade da Constituição –, a lei estabelece que “o não cabimento da substituição (da prisão) por outra medida cautelar deverá ser justificado de forma fundamentada nos elementos presentes do caso concreto, de forma individualizada”.

O problema foi a soltura sob pretexto do Dia Internacional da Mulher. Ou há fundamento legal para alguém estar preso ou não há, simples assim. E, se não existe, ninguém deve ficar nem um dia a mais na prisão. A pessoa deve ser solta imediatamente. O primeiro e mais básico ato de homenagem a uma pessoa – de reconhecimento de sua dignidade – é respeitar sua liberdade.

No momento em que um juiz solta mulheres por ocasião do 8 de Março, há a afirmação implícita de que ele tem discricionariedade sobre a liberdade daquelas pessoas. Assim, a prisão preventiva deixa de ser decorrência da aplicação da lei sobre as circunstâncias concretas de cada pessoa para tornar-se um ato de vontade do magistrado: um ato discricionário. No Estado Democrático de Direito, não há prisões assim; não há juízes com esse poder.

Deve-se reconhecer que, dentro do sistema de Justiça brasileiro, o comportamento de Alexandre de Moraes, que aqui se critica, está longe de ser uma exceção. Na verdade, o problema é muito maior e mais grave. Em todo o País, há muitas prisões preventivas completamente ilegais, sem a devida individualização das circunstâncias de cada pessoa e sem a necessária fundamentação legal. Por exemplo, não raro, existem pessoas presas com base apenas em reconhecimento fotográfico, ou seja, a partir de elementos probatórios inteiramente frágeis e falhos. Verifica-se também, com frequência, um automatismo na manutenção de prisões preventivas, sem a periódica revisão de sua efetiva necessidade, como manda a lei.

Reconhecer eventuais excessos ou medidas que fragilizam a autoridade da Justiça não significa, por óbvio, desautorizar o trabalho do Judiciário, como se o País estivesse sob uma ditadura judicial. Não há nada no horizonte que fundamente minimamente essa crítica. Ao contrário. Faz parte do funcionamento normal da Justiça a prática de erros. E se isso é assim em situações corriqueiras, a falibilidade é ainda mais justificável num caso como o do 8 de Janeiro, que envolve muitas pessoas e circunstâncias absolutamente excepcionais. Seria ingenuidade supor que a necessária resposta da Justiça aos atos golpistas seria imaculada. A questão é assegurar os meios concretos para que eventuais erros sejam rapidamente corrigidos. Nesse sentido, é indispensável preservar, em todas as esferas, a garantia do duplo grau de jurisdição: que outro órgão julgador tenha a possibilidade de revisar a decisão judicial.

O Supremo teve e tem um papel fundamental na defesa da democracia. É por isso que se olha com lupa cada ato seu – para que a Corte possa continuar desempenhando, com autoridade e respeito, sua missão.

O desencanto com a ‘frente ampla’

O Estado de S. Paulo.

Quanto mais se evidencia o engodo, mais se mostra necessário construir uma verdadeira coalizão plural para frear os ímpetos hegemônicos do PT e alternativas à polarização que ele fomentou

Em 2022, brotou forte em uma imensa parcela do eleitorado o anseio por uma frente ampla democrática capaz de serenar o País e distensionar as relações entre as instituições, abrindo canais de comunicação entre o melhor das forças republicanas à direita e à esquerda para enfrentar desafios urgentes, como a recuperação pós-pandemia, a fome, a inflação, e pavimentar os caminhos para o crescimento econômico e para melhorar a educação, a saúde ou a segurança pública. Seja por falta de ideias, de paixão ou articulação, os candidatos da chamada terceira via não conseguiram cativar esses eleitores. Mas o candidato que acabou vencedor também não conseguiu.

A coligação de Lula da Silva não logrou reunir senão partidos de esquerda.

Ela não conquistou a maioria no primeiro turno. No segundo, venceu pela margem mais apertada desde a redemocratização, perdendo em regiões importantes como o Sul, Sudeste e Centro-Oeste e entre as classes média e alta. Aqueles que não lhe deram um voto de confiança, seja por terem votado no adversário, nulo, branco ou não terem votado, representam quase dois terços do eleitorado. Na Câmara, ela conquistou pouco mais de 130 cadeiras (cerca de um quarto) e no Senado, 5 das 27 disputadas.

Longe de representarem o triunfo de uma “frente ampla democrática” consolidada, esses resultados sugerem que o grande desafio dos vencedores seria construir essa frente por meio de negociações e, inevitavelmente, concessões, distribuindo o poder e articulando projetos de conteúdos mais moderados. Mas o governo fez o oposto.

“Estamos vendo um Lula até raivoso em determinados momentos”, disse ao Estadão o ex-senador pelo PSDB Tasso Jereissati, que apoiou Lula no segundo turno contra o mal maior, Jair Bolsonaro. “Ele mesmo falou que era preciso acabar com o nós contra eles. Não veio um Lula Mandela, veio um Lula antiBolsonaro”, disse o ex-senador, referindo-se ao líder sul-africano que, mesmo após 27 anos na prisão, dialogou com seus algozes em nome da união do país.

Não deixa de ser um tanto surpreendente que o experiente Jereissati se diga “muito surpreso” com a radicalidade do governo na forma e no conteúdo. Não havia nada na campanha que autorizasse expectativas de que o PT teria revisto suas pretensões hegemônicas e seus programas retrógrados; não havia nenhuma proposta que autorizasse supor que Lula adotaria o pragmatismo de seu primeiro mandato; não havia nenhuma retratação pelas políticas econômicas heterodoxas gestadas em seu segundo mandato e consumadas pela sua criatura Dilma Rousseff, que mergulharam o País na pior recessão da história recente; nem pelas táticas empregadas no mensalão ou no petrolão, que o mergulharam na maior crise moral da Nova República; nem pelo sectarismo virulento que o polarizou e abriu caminho para a eleição da nêmesis petista, Jair Bolsonaro.

Lula e o PT não só não aprenderam nada nem esqueceram nada, como falam de um Brasil em estado catastrófico, como se não tivessem recebido cinco dos últimos seis mandatos e governado o País por quase 14 dos últimos 20 anos.

Já no poder, o Diretório Nacional do PT, que, como se sabe, nada mais é que um porta-voz de Lula, consolidou essa atitude em uma resolução eivada de ressentimentos e mentiras. O partido teria sido vítima de uma conspiração das elites, e seu retorno ao poder é uma espécie de reparação histórica que lhe dará a oportunidade de se vingar e implementar plenamente seus dogmas.

Lula não despreza apenas os partidos de oposição, mas seus próprios aliados. “O único partido com cabeça, tronco e membro é o PT”, disse em entrevista recente. “O restante é uma cooperativa de deputados que se juntam nas eleições.”

Assim, a rigor, não se pode dizer que a “frente ampla democrática” de Lula malogrou, porque ela nunca existiu, nem nas intenções do partido, muito menos nas suas articulações, apenas na retórica eleitoral. Mas quanto mais o engodo é evidenciado, mais se mostra necessário construir uma verdadeira frente ampla democrática, seja para frear a marcha da insensatez lulopetista rumo a um passado idealizado como glorioso que na realidade foi desastroso, seja para construir as bases de um futuro governo verdadeiramente amplo, plural, eficiente e republicano.

Nem inadimplência segura inflação

O Estado de S. Paulo.

IPCA de fevereiro lança novas dúvidas sobre cenário econômico e sinaliza que é cedo para o BC reduzir os juros

O número de brasileiros inadimplentes bateu recorde histórico e chegou a 70,1 milhões de pessoas em janeiro, segundo dados da Serasa. O valor dos débitos também foi o mais alto da série e atingiu a marca de R$ 323,3 bilhões. No intervalo de um ano, o número de pessoas que ficaram com o nome sujo na praça subiu 8,3%, enquanto o volume das dívidas aumentou assombrosos 24%.

Esse quadro tenebroso no que diz respeito ao endividamento se deve a um conjunto de fatores. Além do aumento das taxas de juros, que por si só já retroalimenta o crescimento das dívidas, muitas famílias buscaram se financiar com linhas que já são tradicionalmente mais caras, como cheque especial e cartão de crédito.

Não há dúvidas, no entanto, de que a inflação tem contribuído para ampliar as agruras dos inadimplentes. “A inflação fez um estrago gigantesco no orçamento das famílias, especialmente nas de baixa renda, o que gerou esse crescimento no número de brasileiros inadimplentes”, explicou ao Estadão o economistachefe da Serasa, Luiz Rabi. E o pior é que a inflação insiste em não arrefecer.

Em fevereiro, o IPCA subiu 0,84%, ante 0,53% em janeiro, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A taxa de difusão, que mede a proporção dos 377 subitens do indicador que tiveram aumento de preços no período, avançou de 63% em janeiro para 65% em fevereiro. Dos nove grupos que compõem o índice, oito registraram altas no mês passado, com exceção de vestuário.

Tudo indica que a tendência de desaceleração que vinha sendo observada até o fim do ano passado está perdendo força. Isso já seria suficientemente preocupante, mas o problema é que esse movimento começou a ocorrer com a inflação ainda rodando em níveis bastante elevados. “Estamos em uma pausa na desinflação”, disse Anna Reis, economista da GAP Asset. A economista-chefe da CM Capital, Carla Argenta, mencionou os impactos positivos da política monetária em bens duráveis e alimentos, mas destacou que os serviços, que também costumam reagir às restrições geradas por juros altos, não apenas resistem a ceder, como subiram 1,41%.

Como não poderia ser diferente, o mercado financeiro ajustou as expectativas ao resultado do IPCA, e os juros futuros voltaram a subir imediatamente após o indicador. A despeito das incertezas sobre a política fiscal do governo e sobre o novo arcabouço, parte dos investidores avaliava que a piora no mercado de crédito para empresas – em razão da crise das Americanas – poderia estimular o Banco Central (BC) a antecipar o ciclo de redução dos juros, hoje em 13,75% ao ano.

No entanto, nem mesmo a inadimplência recorde das pessoas físicas tem sido suficiente para debelar a resiliência da inflação – e vale lembrar que controlar a inflação e garantir a estabilidade do poder de compra da moeda é a principal missão institucional do BC. Apesar de toda a pressão do governo de Lula da Silva e dos temores de vários setores sobre uma recessão, o cenário macroeconômico segue muito incerto e pouco favorável para motivar o BC a começar a reduzir a Selic.

Uma difícil composição

Revista Veja

O Brasil não pode ficar paralisado em meio à queda de braço entre poderes. A coalizão precisa acontecer em torno de princípios e valores — e quanto antes

Há mais de trinta anos, o sociólogo Sergio Abranches diagnosticou de forma precisa a nova relação entre os poderes Executivo e Legislativo que começou a tomar forma no país nas últimas décadas. Segundo o especialista, passou a vigorar no Brasil o “presidencialismo de coalizão”, um regime no qual o ocupante do Palácio do Planalto depende cada vez mais da aprovação do Congresso para impor sua pauta programática. Nos casos mais complexos, dois terços dos deputados precisam votar com o governo, algo que só é possível a partir de uma base parlamentar sólida. Assim, elevou-se substancialmente a necessidade das negociações suprapartidárias.

Dentro de um contexto em que há uma selva de legendas sem demarcações ideológicas claras, a semente do chamado Centrão germinou, cresceu e adquiriu viço. O fenômeno teve origem na época da Constituinte de 1988, quando parlamentares conservadores começaram a se unir para combater propostas que consideravam progressistas demais durante as discussões temáticas lideradas por Ulysses Guimarães. Um dos líderes do movimento, o deputado Roberto Cardoso Alves (1927-1996) cunhou na época a frase que definiu para sempre o espírito da turma: “É dando que se recebe”. Nos governos seguintes, o grupo teve diferentes lideranças e nuances políticas, mas sem nunca abandonar esse espírito pragmático que dá origem a algumas negociações republicanas com o Poder Executivo em torno de projetos e prioridades, e outras que ficam bastante longe disso, pois versam sobre distribuição de cargos e verbas.

Em seu retrato mais atual, o Centrão se apresenta de uma forma ainda mais coesa e com poderes multiplicados, sob a batuta competente de Arthur Lira, o presidente da Câmara. Outra característica marcante do momento é que o grupo, com claras inclinações liberais e conservadoras, distancia-se (e muito) das convicções do presidente eleito, o que já cria obstáculos naturais para as conversas entre os poderes. Como se não bastasse, a articulação política de Lula não parece até aqui ter entrado no jogo do presidencialismo de coalizão com a necessária organização.

Conforme mostra a reportagem da edição, alas do PT capricham no fogo amigo, dificultando a convivência do governo com outras legendas, sem que o presidente faça gestos firmes de contenção, algo que soa como uma carta branca para autorizar os companheiros a fazer a medição de forças. Do outro lado, Lira vem aumentando o tom dos alertas, reclamando de que o Poder Executivo tem sido amador no trato com o Congresso. Em um evento na última segunda, 6, afirmou que Lula não tem hoje uma base de apoio consistente nem na Câmara nem no Senado, mas ponderou que há tempo ainda para que a atuação das lideranças do Palácio do Planalto se estabilize.

Para o país, é fundamental o entendimento, desde que, claro, ele ocorra dentro do desejável cânone republicano. Reformas necessárias, como a tributária, e projetos como o do novo arcabouço fiscal serão apreciados em breve pelo Congresso. Lá fora, a situação vem se deteriorando com sinais de recessão na economia americana, o que vai acarretar uma alta dos juros nos Estados Unidos, e a momentânea falta de pujança da China, nosso maior parceiro comercial. Diante desse quadro sombrio, o Brasil não pode ficar paralisado em meio a uma queda de braço entre os poderes (mais uma). Evidentemente, também não seria positivo construir essa composição repetindo erros do passado, nos moldes do toma lá dá cá que originou o mensalão. A coalizão precisa acontecer em torno de princípios e valores — e quanto antes.

Publicado em VEJA de 15 de março de 2023, edição nº 2832

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