Por Renato Vasconcelos / O Globo
O recuo de Benjamin
Netanyahu para rediscutir o projeto de lei de reforma do
Judiciário em Israel —
que muitos ativistas apontam como a morte da divisão de Poderes no país— não
foi suficiente para convencer historiador Arieh Saposnik, professor da
Universidade Ben-Gurion do Negev. Um dos milhares de israelenses que foram às
ruas nos protestos contra a reforma, que propõe uma maior intervenção do
governo na escolha de ministros e redução do poder de revisão legal da Suprema
Corte sobre leis aprovadas no Parlamento, Saposnik acredita que a pausa no
processo é apenas uma estratégia para diminuir a pressão dos opositores da
iniciativa.
Em conversa com O GLOBO em visita ao
Brasil, onde participou de um ciclo de palestras sobre a transformação de
Israel em um símbolo para a extrema direita global, o historiador afirmou que a
tendência é que a violência contra os protestos aumente, e que em caso de
aprovação, o projeto pode ecoar pelo mundo.
Sua vinda ao Brasil foi para um ciclo de
palestras sobre a apropriação de Israel como modelo cultural pela extrema
direita no mundo. Poderia explicar esse fenômeno?
Como você sabe muito bem, existem símbolos de Israel, como a bandeira do país, que se tornaram marcadores de identidade política, social e ideológica em um contexto que na verdade não tem nada a ver com Israel. É como se Israel tivesse se tornado uma marca ou um código para uma série de questões que às vezes não têm nada a ver com o próprio Estado de Israel ou com o que de fato está acontecendo no país. Infelizmente, neste momento, Israel se tornou um dos estereótipos mais negativos sobre isso.
Mas o que levou Israel e seus símbolos a se
tornarem a representação dessa extrema direita, que muitas vezes não tem
conexão alguma com o país ou com o judaísmo?
A resposta fácil e rápida seria que temos
um governo de extrema direita, e que desde 1977, salvo poucos anos, Israel tem
sido liderado por um governo de direita e conservador, do partido Likud em
aliança com partidos religiosos. Mas as raízes são muito mais profundas. Há um
pilar religioso, que tem a ver com o simbolismo da Terra Santa, que desde o
século XIX motiva disputas geopolíticas e religiosas não apenas entre judeus e
muçulmanos, mas também as Igrejas Católica e Ortodoxa.
Há também uma conexão com o imaginário do
judeu nas tradições de direita, que mudou em pouco tempo. Se você pensar no
século XIX, os judeus estavam no imaginário como fracos, afeminados,
coniventes. Hoje, a imagem do judeu é exatamente oposta: forte, militarizado,
exportador de armas. Essa transformação radical permitiu que essa tendência
aparentemente filosófica entrasse e tomasse o lugar de algumas tendências
antissemitas, mas criou uma linha divisória muito tênue, o que criou uma
tendência de “antis-semitismo pró-Israel”.
Infelizmente, temos na atual direita
israelense pessoas que estão interessadas em cultivar essa imagem.
Existe uma conexão entre os movimentos de
extrema direita em Israel e no Brasil?
Certamente. Sabemos que os movimentos de
extrema direita pelo mundo estão conectados, como a aliança entre Netanyahu e
Bolsonaro, as alianças com [o premier húngaro, Viktor] Orbán. Há uma extrema
direita global — não entenda que estou sugerindo alguma teoria da conspiração,
não acho que eles sejam tão organizados. Eles criam essa aliança de uma maneira
esperada e natural, da mesma forma que a luta que estamos travando agora pela
democracia israelense também faz parte de uma luta global em um momento de
crise da democracia liberal em todo o mundo.
Eles claramente fazem parte de uma
tendência ampla que é essa pós-verdade populista, de fatos alternativos. Está
minando nossa própria capacidade de entender a realidade. E essa é a base desse
populismo que faz parte do que houve aqui no Brasil e, infelizmente, temos
Israel na vanguarda hoje.
Quais seriam os pontos comuns da agenda
desses grupos?
Uma das bases intelectuais é a era da
pós-verdade. Acho que essa realidade orwelliana é muito crucial para esses
movimentos. Nos EUA, [o ex-presidente Donald] Trump foi o campeão mundial
disso, mas também vemos em Israel, e isso cria uma base. Além disso, há os
ataques a instituições liberais, concentração de poder nas mãos de cada regime
— esse é um dos principais eixos do que o governo chama de reforma judicial,
que muitos de nós em Israel vemos realmente como um golpe ilegal — e é sobre
uma semeadura de ódio. Uma das principais táticas que este governo usa é usar
as feridas históricas da sociedade israelense para alimentar sua narrativa.
Este governo está muito ativamente engajado em semear o ódio como um dos
principais pilares e em minar as instituições, e as instituições judiciais são
um alvo geral. Elas foram um alvo na Polônia e na Hungria antes.
O que estamos vendo em Israel neste momento
é uma reação institucional a essa agenda de extrema direita?
Outro dos pilares da agenda da extrema
direita é a destruição da sociedade civil, porque ela é perigosa para um regime
autocrático centralizado. Então, em Israel, há esse esforço para minar a
sociedade civil. Acho que a sociedade civil israelense esteve um pouco
adormecida, mas agora temos instituições e líderes de instituições que estão
lutando contra isso.
O verdadeiro desafio acontecerá à medida
que essa legislação for aprovada na Knesset [o Parlamento] e, em seguida, for
para a Suprema Corte. Essa será uma crise muito séria, porque algumas das
instituições do Estado, como os militares e a polícia, terão que tomar a
decisão de obedecer à Suprema Corte ou ao governo? E então podemos estar diante
de um problema muito grande.
Em discursos recentes, Netanyahu vem
alardeando a possibilidade de uma guerra civil. Ela existe realmente?
Ele está fazendo de tudo para provocar uma.
Nas últimas semanas, o governo vem mobilizando e incentivando manifestações de
direita, como contramanifestações aos atos democráticos. Já houve incidentes de
violência sem condenação da violência por parte do governo. E a violência vai
piorar. Quando Netanyahu decidiu interromper o processo legislativo, Itamar
Ben-Gvir ameaçou deixar o governo e, para mantê-lo, lhe prometeram
essencialmente sua própria milícia privada. Aonde isso pode levar?
A pausa do processo legislativo da reforma
do Judiciário é um artifício de sobrevivência política ou Netanyahu tem mesmo
intenção de uma abertura ao diálogo?
Eu acho que é parte de uma estratégia dupla
de tentar acalmar os protestos e depois preparar o solo para continuar com o
golpe. O governo não deu nenhuma indicação em nenhum momento [de que abriria
diálogo]. Na verdade, eles deram todas as indicações claras de que não têm nenhuma
intenção real de interromper essa lei.
O senhor acha que, se essa reforma for
aprovada em Israel, os outros movimentos de direita vão usá-la como modelo no
resto do mundo?
Certamente soa como um cenário provável. Há um vídeo que está circulando em grupos de WhatsApp do movimento de protestos que mostra Netanyahu anos atrás, falando sobre a importância da independência do Judiciário e como se isso fosse comprometido em Israel, se espalharia para outras democracias. O próprio Netanyahu respondeu para você: sim. E nesse caso, acho que ele provavelmente está certo.
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