O Estado de S. Paulo
Regulamento europeu deve servir de guia na formulação final do PL 2.630/20 do Senado, ora em tramitação na Câmara, matéria urgente, mas a ser bem meditada
Vive-se a virtualidade do real. Estamos
submersos no mundo da informação imediata, alvejados continuamente pela notícia
em rede comunicacional, criando dependência psíquica que leva à persistente
consulta ao celular. A reflexão e a solidão cederam passo à passiva e
permanente recepção de comunicações, fragmentariamente enviadas.
Com a rede, a existência se desenrola na mídia e pela mídia, como dissera Manuel Castells (A sociedade em rede, p. 361). Esse fenômeno tem impacto imenso em nosso cotidiano e em todas as vertentes da vida, apresentando aspectos altamente positivos e negativos. A rede tem sido instrumento de difusão de discursos de ódio, de conteúdo discriminatório ou belicoso, alimentando afrontas à democracia, facilitando a pornografia infantil, a ação de organizações criminosas, bem como o comércio ilegal e a difusão de fake news nocivas à saúde pública, à dignidade e à privacidade das pessoas.
Contra esta utilização gravemente
prejudicial, que antes toca à emoção que à inteligência, requer-se a criação de
mecanismos de moderação de conteúdos. Estes devem, sem ofensa aos limites do
direito de liberdade de expressão, assegurar a exclusão urgente de
manifestações ilegais, para proteção dos usuários e da sociedade.
Hoje está em debate o artigo 19 do Marco
Civil da Internet, que estabelece unicamente a responsabilidade civil das
plataformas com relação a conteúdos de terceiros, na hipótese de descumprimento
de ordem judicial de remoção. No artigo 21, responsabiliza-se,
subsidiariamente, a violação da intimidade decorrente da divulgação, sem
autorização de seus participantes, de imagens, de vídeos ou de atos sexuais de
caráter privado.
Aprovou o Senado o Projeto de Lei (PL) n.º
2.630/20, denominado projeto de combate às fake news, ora na Câmara dos
Deputados, recebendo substitutivo do relator deputado Orlando Silva. Este
projeto apenas determina, no seu artigo 7.º, deverem os provedores elaborar
seus termos e políticas de uso, sem especificar, todavia, qual seja o conteúdo
tido por ilegal. As plataformas, segundo o artigo 35, “podem” criar órgão de
autorregulação visando à transparência e à responsabilidade na internet.
Essas regras são insuficientes. Bom exemplo
vem de fora, do Parlamento Europeu, ao aprovar o Regulamento 2022/2065, o
Digital Services Act (DSA), estatuindo serem conteúdo ilegal as informações em
desconformidade com o direito da União ou de seus Estados-membros: o proibido
fora da internet deve nela ser também vedado. Impõe, ademais, deveres de
cuidado às grandes plataformas.
As plataformas devem ter Código de Conduta
e oferecer meios para reclamações pelos usuários, a serem publicizados, com o
objetivo de responder aos diferentes tipos de conteúdos ilegais por via da
moderação de conteúdos.
A “moderação de conteúdos” consiste em
detectar e combater conteúdos ilegais ou informações incompatíveis com os
termos e condições estatuídos pelas plataformas. Compreende, ainda, a tomada de
medidas que limitem, de forma urgente, a disponibilidade e acessibilidade
desses conteúdos ilegais.
Assim, a conta pode ser suspensa por
período razoável se, com frequência, fornecer conteúdos ilegais. Além do mais,
determina o Regulamento que, ao verificar a ocorrência de delito ou a
possibilidade de tal suceder, cumpre à plataforma informar imediatamente a
suspeita às autoridades policiais ou judiciárias.
Segundo o Regulamento, embora as
plataformas não tenham obrigação geral de vigilância, podem ser
responsabilizadas quando não atuarem, na moderação de conteúdo, de forma
diligente ao tomar conhecimento da existência de conteúdo abusivo. Aos
Estados-membros cabe nomear um coordenador dos serviços digitais, responsável
por todas as matérias relativas à execução do regulamento pelo Estado-membro
que o designou. É, também, criado grupo consultivo independente de
coordenadores dos serviços digitais para a supervisão dos prestadores de
serviços intermediários, denominado Comitê Europeu dos Serviços Digitais.
O Regulamento europeu deve servir de guia
na formulação final do PL 2.630/20 do Senado, ora em tramitação na Câmara dos
Deputados, matéria urgente, mas a ser bem meditada. As plataformas, sem dúvida,
devem ser civilmente responsabilizadas se descumprirem o dever de cuidado.
Em 8 de janeiro deste ano, as plataformas
reproduziram incitamentos à ocupação de prédios dos Três Poderes. O melhor
seria haver tipo penal específico de divulgação em massa que comprometa o
Estado de Direito ou a saúde pública, tornando obrigatório às plataformas
comunicar tal ocorrência às autoridades.
A redação do tipo penal seria: “Art (...)
Promover ou financiar a divulgação massiva de informação inverídica capaz de:
I – Comprometer a higidez do processo
eleitoral;
II – Restringir ou impedir o exercício de
algum dos poderes constitucionais;
III – Comprometer política pública
destinada a impedir a introdução ou propagação de doença contagiosa.
Pena – reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco
anos).”
*Advogado, professor titular Sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras, foi ministro da Justiça
Nenhum comentário:
Postar um comentário