Pela direita: Donald Trump nos EUA; Silvio Berlusconi, Matteo Salvini e Giorgia Meloni na Itália; Marine Le Pen na França; Viktor Orbán na Hungria; Vladimir Putin na Rússia; Benjamin Netanyahu em Israel; Erdogan na Turquia e Jair Bolsonaro no Brasil. Pela esquerda: Chavez e Maduro na Venezuela e Daniel Ortega na Nicarágua. Todos seriam líderes que chegaram ao poder pela via democrática e lá estando procuram desestabilizar as instituições, a Constituição e as regras do jogo, subvertendo a própria democracia.
Usam o amplo espaço de tolerância próprio à
democracia para tentar instalar a cultura da intolerância. Aproveitam a
liberdade de imprensa, opinião e manifestação para semear o mundo das “verdades
alternativas”, das fakenews, da manipulação das informações. Instrumentalizam
as modernas ferramentas digitais, os algoritmos dos “engenheiros do caos”, para
alimentar suas “bolhas” de apoio. Estimulam a polarização insana, reduzem os
espaços de diálogo e construção de consensos, estigmatizam adversários
convertidos em inimigos a serem eliminados. Ou seja, usam as ferramentas da
democracia contra a própria democracia. E, obviamente, só viabilizam seus
projetos por contarem com apoio social a partir de frustações, ódios e
ressentimentos acumulados em relação à democracia, à globalização, ao sistema
político tradicional e à exclusão social de amplas parcelas da população.
As correntes de pensamento que movimentaram
as lutas políticas no mundo moderno, e que são objeto desta série de artigos,
se organizam a partir de cinco vetores essenciais: valores morais e religiosos,
compromisso ou não com a liberdade e a democracia, papel do Estado na sociedade
e na economia, busca da equidade social e papel das Nações no mundo. Mas o
grande divisor de águas é a questão democrática. Das correntes até aqui
analisadas, conservadores, liberais, socialdemocratas e eurocomunistas têm
compromisso com a democracia como valor universal. Os reacionários, o comunismo
do socialismo real e o nazifascismo, não. Os “populistas autoritários” do
século XXI também não.
As questões relativas aos valores morais,
filosóficos e religiosos devem pertencer às órbitas individual, familiar e da
sociedade civil, embora os “populistas autoritários” manipulem esta discussão
na órbita política, a partir de uma ótica conservadora, contra os movimentos
identitários majoritariamente vinculados às esquerdas.
A relação entre Estado e mercado, o grau de
intervenção governamental, a organização do sistema econômico, assumem formatos
e formulações variados. Não há nenhuma experiência em todo o mundo que se
assemelhe ao laissez-faire do liberalismo clássico. Há razoável convergência em
torno da visão do Estado socialmente necessário com uma economia de mercado
democraticamente regulada em consonância com as condições históricas concretas
e características peculiares de cada país. Até a China, um Estado totalitário,
incorporou o mercado à sua lógica, no que chamam “Socialismo de mercado”, e
outros chamam de “Capitalismo de Estado”.
Na busca de uma sociedade mais igualitária
a partir de uma maior equidade social, há divergências sobre o formato e a
intensidade das políticas públicas, mas não há quem defenda a manutenção das
inaceitáveis e escandalosas desigualdades sociais que ainda imperam no mundo
contemporâneo.
Na questão nacional há divergências de
posturas, mas conservadores, liberais, socialdemocratas, socialistas modernos,
convergem na percepção de que a globalização é uma tendência irreversível e que
cada país deve descobrir a melhor forma de inserção e lutar pela crescente
institucionalização de uma governança global em questões como o meio ambiente e
o clima, saúde pública – a pandemia realçou isto, desenvolvimento e emprego, comércio
internacional e fluxos financeiros. Diferentemente, os “populistas
autoritários” instrumentalizam os efeitos negativos da globalização, como o
desemprego ou a imigração, com discursos nacionalistas xenófobos e antiglobalização.
Ainda assim, os ingleses hoje sofrem as consequências econômicas e sociais do
BREXIT, cuja a campanha foi liderada pelo populista conservador Boris Johson. A
primeira-ministra italiana de extrema direita não adotou postura se confronto
contra a União Europeia em sua chegada ao poder. E Putin está vendo despencar
sua popularidade na Rússia em função de seu nacionalismo imperialista encarnado
na invasão à Ucrânia.
Os “populistas autoritários” não se
confundem com o totalitarismo nazifascista, da primeira metade do século XX,
embora Mussolini e Hitler tenham chegado ao poder pela via democrática e tenham
corroído as instituições por dentro para preparar a virada ditatorial. Os
tempos são outros. Há traços comuns, mas que não permitem uma terraplanagem
conceitual. Têm em comum o discurso nacionalista xenófobo, o caráter
antidemocrático e o apoio social em sua sustentação. Mas o nazifascismo tinha
uma ideologia mais fechada e acabada, os “populistas autoritários” são mais
pragmáticos. Como camaleões, se travestem de liberais na economia às vezes, em
outras, posam de democratas vociferando contra a “censura” às suas
transgressões nas redes sociais, mas na essência buscam o poder para sufocar as
liberdades democráticas e impor seus projetos e objetivos. As condições
históricas impedem aventuras imperialistas militares e limitam suas ambições. É
evidente que as experiências “populistas autoritárias” de direita e de esquerda
têm diferenças de narrativa e conteúdo. No entanto, ambas as vertentes
perseguem objetivos totalitários e devem merecer a repulsa de todos os
democratas.
A instigante questão que resta é: como em
pleno século XXI, na sociedade do conhecimento, da globalização e da
comunicação digital, líderes populistas visivelmente autoritários e
reacionários conseguem angariar apoio eleitoral e ganhar eleições?
Mais uma vez o fenômeno não se explica pelo
carisma e inteligência política do líder isoladamente. É evidente que é
necessário a existência de um líder com características suficientes para
galvanizar o sentimento social numa dada conjuntura. Mas, a realidade é mais
complexa. Os “populistas autoritários” só conseguem ascender ao poder porque no
tecido social e econômico se acumularam frustações e mudanças que criam o caldo
de cultura que os permitem florescer.
As raízes certamente se encontram nos
traços estruturais do capitalismo pós-moderno e da sociedade contemporânea. A
globalização provoca desemprego no curto prazo. A veloz e assustadora revolução
cientifica e tecnológicas - da era da internet, da robótica, da engenharia
genética, da inteligência artificial – impacta de forma desigual os diversos
segmentos da sociedade, produzindo exclusão e ressentimentos. A sociedade não é
mais uma simples luta entre capitalistas e operários, com uma classe média
pendulando ao meio. A flexibilização do mundo do trabalho e a multiplicidade de
interesses produz uma sociedade fragmentada e diversa.
Os partidos políticos, ferramentas
institucionais centrais no funcionamento da democracia, perdem capacidade de
vocalização. Os políticos são vistos como uma “nova aristocracia” descolada dos
interesses da população, com lógica própria e intestina. Não é à toa que em geral
os “populistas autoritários” são outsiders que mobilizam suas bolhas e
eleitores contra “tudo que aí está”, contra “o sistema político tradicional”.
As massas, relegadas à uma situação de baixo acesso a serviços públicos de
qualidade, nos planos educacional, sanitário, cultural e de existência,
enxergando um Estado hostil e não includente, não se reconhecendo na sociedade
pós-moderna, são facilmente capturadas por líderes carismáticos, que explorando
as frustrações e os ressentimentos acumulados, acenam com projetos
salvacionistas e messiânicos, prometendo mudanças radicais. A situação se
agrava diante das redes sociais e plataformas digitais de comunicação, onde
cada cidadão pode fazer o papel de “partido político individual”, expressar
suas opiniões, criar laços e grupos de identidade e sofrer a ação da
manipulação dos algoritmos.
Fora da democracia, creio, não há salvação.
A democracia é, por sua natureza humana, imperfeita. Mas é o único regime
político que carrega em si mecanismos de freios e contrapesos, de aprendizado e
autocorreção, de permanência de instituições e regras estáveis do jogo
democrático. Qual é a capacidade de correção de rumos na China, na Coréia do
Norte, na Rússia, na Venezuela ou na Nicarágua? Baixa, certamente. Mas o mundo
gira e nenhuma transformação é impossível. As forças democráticas, de todos os
matizes, têm se mostrado resilientes e com capacidade de resposta em países
como os EUA, a França, a Espanha, a Alemanha, o Brasil, Portugal, entre tantos
outros. Mas o fantasma do “populismo autoritário” paira mundo afora a ameaçar a
democracia. Basta, por exemplo, citar o exemplo atual da França, onde o
populismo de extrema-direita e de extrema-esquerda se unem e mobilizam a
população contra a necessária e inevitável reforma da previdência do centrista
Macron. “O preço da liberdade é a eterna vigilância”. O que virá nas próximas
eleições americanas ou francesas? A luta pela democracia deve unir, em escala
global, conservadores, liberais, socialdemocratas, progressistas, socialistas
democráticos contra toda e qualquer forma de autoritarismo. Mas a luta só terá
sucesso se as forças que defendem a democracia reatarem seus laços com a
sociedade e conseguirem erguer respostas concretas para as angústias e sonhos
dos cidadãos comuns.
Para quem quiser se aprofundar no estudo do
fenômeno do “populismo autoritário” neste início do século XXI sugiro a leitura
dos livros “Ruptura – a crise da democracia liberal” de Manuel Castells, “Como
as democracias morrem” de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, “O Ódio à
democracia” de Jacque Rancière, “Os Engenheiros do Caos” de Giuliano Da Empoli
e “Journal of Democracy em português – volume 8, número 2, novembro de 2019”, organizado
por Bernardo Sorj e Sergio Fausto.
*Economista, ex-Deputado Federal (MG)
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