O Globo
As imagens do general Gonçalves
Dias perambulando como um abobado entre os
invasores do Palácio do Planalto em 8 de janeiro puseram fim à
hesitação de meses no governo sobre a necessidade de uma Comissão Parlamentar
de Inquérito para investigar os fatos daquele dia.
O próprio presidente da República tinha
sido contra, alegando que a CPI poderia criar uma “confusão tremenda”, uma vez
que os atos golpistas já eram investigados pelos órgãos competentes. Nos
bastidores, porém, todo mundo sabia que o que o presidente temia mesmo era
melindrar os militares numa conjuntura já bastante tensa.
Quem conhece a trajetória de Lula não
se surpreendeu. Ele sempre foi partidário da conciliação — a ponto de, nos dois
primeiros mandatos, sufocar o debate no governo sobre a revisão da anistia a
militares que cometeram violações de direitos humanos durante a ditadura, para
não criar conflitos com a caserna.
Na campanha, Lula de novo “costeou o alambrado”, como dizia Leonel Brizola. Prometeu “limpar” o governo, mas ponderou que os militares eram mais responsáveis do que Bolsonaro e disse não ter queixas das Forças Armadas em suas passagens anteriores pelo governo.
Mandou, ainda, aliados procurarem
interlocutores nos quartéis para sondar sobre os riscos de um golpe caso fosse
eleito — e também para garantir que, em caso de vitória, não os perseguiria.
Na transição, o único tema para o qual não
houve diagnóstico foi Defesa e Segurança Nacional. Na escolha do novo
comandante do Exército, Lula também preferiu não pôr a mão em vespeiro,
seguindo a tradição de nomear o general mais antigo.
Isso apesar do alerta de companheiros de
partido e até de ministros do Supremo para o fato de Júlio Cesar de Arruda ser
reconhecido entre os próprios pares como bolsonarista.
O especialista em assuntos militares Octavio
Amorim Neto chama esta primeira etapa de “estratégia de baixo custo”, que ele
entende ter sido lastreada na avaliação de que a mera nomeação de um
conservador como José Múcio para a Defesa bastaria para que o bolsonarismo
fosse perdendo força com o avanço do governo.
O 8 de Janeiro demoliu esse esforço.
O primeiro a cair foi o próprio Arruda, que
se recusou a desfazer a promoção para chefe de um batalhão em Goiás do
ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, um coronel envolvido até a medula em
iniciativas golpistas.
No início de março, Lula transferiu a
Agência Brasileira de Inteligência (Abin) do Gabinete de Segurança
Institucional (GSI)
para a Casa Civil.
Com o flagra de Gonçalves Dias e suas mal
explicadas tentativas de esconder as imagens do público, demitiu também o
general.
Uma ala do governo sustenta, com razão, que
parte da responsabilidade pela crise é do próprio Lula e de suas meias medidas.
Seria a hora, portanto, de aproveitar a oportunidade para forçar a barra e
acelerar a limpa.
O trabalho começou a ser feito ontem, com a
demissão de 28 militares do GSI. Por enquanto, a ordem é colocar mais e mais
civis no gabinete, mas mantê-lo sob o comando de um militar.
A realidade é que tampouco será fácil para
Lula fazer uma guinada brusca. Não há notícia de corporação que reaja bem à
perda de poder, independentemente do uniforme que ostente. Além disso, o
bolsonarismo fez do partido que abriga a extrema direita o maior do Congresso e
elegeu os três principais governadores do país, além de ter deixado como legado
a militarização da política.
Para desmontar esse aparato, é preciso uma
costura com o Parlamento e com a sociedade civil, executada com preparo,
estratégia, paciência e foco — coisas que o governo Lula não vinha demonstrando
mesmo depois do 8 de Janeiro.
Pelo contrário: o presidente parecia
empurrar o problema com a barriga esperando que o STF liquidasse
a fatura, enquanto ele se concentrava nas regras fiscais, na agenda social e na
ofensiva de política externa.
A CPI surge no momento em que nenhuma
dessas pautas anda no ritmo que Lula gostaria, em parte por causa das falhas de
articulação política no Congresso.
Agora, o governo terá de improvisar a toque
de caixa uma estratégia para enfrentar militares que insuflaram o golpismo, ao
mesmo tempo que tenta evitar o estrago político que seu próprio general pode
provocar. E não só.
Antes tarde do que nunca, Lula terá de se
empenhar em construir uma nova relação com os militares, compreendendo que não
adianta reciclar o que já foi feito no passado. Está aí uma área em que, por
mais que o presidente queira, o Brasil não voltou e não voltará a ser o que
era.
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