A inconsistência intrínseca ao novo arcabouço fiscal
O Globo
Vínculos constitucionais e despesas
contratadas inviabilizam arrecadação necessária para cumprir metas
Tem sido incessante a busca do ministro da
Fazenda, Fernando Haddad, por mais receitas de impostos. Para o governo,
trata-se de condição essencial para dar credibilidade ao novo arcabouço fiscal.
Haddad tem falado em aumentar a arrecadação em R$ 150 bilhões neste ano. Nesta
semana, o governo celebrou uma reviravolta na jurisprudência do Superior
Tribunal de Justiça que promete aumentar o imposto de pessoas jurídicas em R$
90 bilhões (o Supremo ainda pode reverter a decisão). Haddad tem repetido que
pretende rever incentivos e subsídios estimados em R$ 600 bilhões e falou até
em divulgar a lista de beneficiários “CNPJ por CNPJ”.
Há, é verdade, muito trabalho a fazer, ou melhor, muitos nós a desfazer para desatar o cipoal de isenções fiscais, que vai do IPVA de barcos e aviões à Zona Franca, da indústria química aos médicos. O total do que é tecnicamente conhecido como “gastos tributários” somou no ano passado R$ 456 bilhões, ou 4,9% do PIB. É um volume gigantesco, algo como dez vezes o que os parlamentares gastaram entre 2020 e 2022 com o orçamento secreto.
As dificuldades políticas e jurídicas de
reduzir a maioria dos subsídios são conhecidas até pelo carpete do Salão Verde
do Congresso. Nem todos se dão conta, porém, das dificuldades aritméticas,
descritas em detalhes num estudo de cinco economistas do Insper (Marcos Lisboa,
Marcos Mendes, Marília Taveira, Cristiano de Souza e Rogério Costanzi). Na
análise do quinteto, é praticamente impossível o arcabouço fiscal cumprir as
metas de resultado primário prometidas por Haddad.
O estudo, intitulado “O algoritmo do
gasto”, faz toda sorte de simulação para o comportamento das contas públicas
mediante o novo arcabouço. Em nenhum dos seis cenários o governo entrega o que
prometeu: contas públicas equilibradas no ano que vem e superávit a partir de
2024. O aspecto mais insidioso do arcabouço, exposto com clareza meridiana, é
simples: com o fim do teto de gastos, diversas despesas voltarão a subir
respeitando o vínculo constitucional com a receita, em particular nas rubricas
saúde e educação. Além disso, o aumento de 9% no salário dos servidores fará
crescer o gasto permanente, assim como o prometido aumento real do salário
mínimo realimentará despesas previdenciárias e assistenciais. Por fim, o piso
salarial da enfermagem e gastos criados pelas PECs da Transição e dos Precatórios
estabelecem um patamar inicial elevado.
Não importa por onde se olhe, as metas de
resultado primário são uma quimera. Em quatro dos cenários, a despesa da União
aumenta para 20,1% do PIB até 2027 (a estimativa para 2023 é 18,1%), ou mais R$
211 bilhões. Para tornar compatíveis todas as promessas, a arrecadação teria de
subir a 20,8% do PIB, R$ 288 bilhões (85% do Imposto de Renda que ficou em
poder da União em 2022).
Em nenhum cenário houve estabilização da
dívida até o fim da década — ela iria de 73% do PIB em 2023 a algo entre 87% e
92%. “Nossa principal conclusão é que o conjunto da obra definido pelo
arcabouço e pelas intenções de expansão da despesa obrigatória sinalizadas pelo
governo é inconsistente com o que foi inicialmente anunciado como meta de
superávit primário”, afirma o estudo. No Congresso, o governo terá oportunidade
de apresentar seus números e seus cenários para provar a consistência do
arcabouço, algo que até agora não fez a contento.
Anistia preventiva aprovada pela Câmara do
Rio é disparate urbanístico
O Globo
Dispositivo conhecido como ‘mais valerá’
permite legalizar construções ilegais que ainda nem foram feitas
Não satisfeita em aprovar a regularização
de puxadinhos construídos em desacordo com a legislação urbanística, por meio
do pagamento da taxa conhecida por “mais valia”, a Câmara de Vereadores do Rio
autorizou também a legalização de acréscimos irregulares que ainda serão
construídos no futuro, uma aberração alcunhada “mais valerá”. De autoria do
Poder Executivo, o Projeto de Lei Complementar 88/2022, aprovado na última
quinta-feira, estabelece condições especiais para licenciamento de obras
ilegais, mediante pagamento de contrapartida. É a legalização da ilegalidade
que ainda nem foi cometida.
A Prefeitura alega que o objetivo é
permitir legalizar os imóveis em que não se justifica demolir os acréscimos
ilegais. Compreende-se que, em muitos casos, é mais justo para o morador pagar
pela obra feita sem autorização e regularizar a situação do imóvel junto ao
município, também beneficiado pelo pagamento da contrapartida. O problema é
definir o que é passível de regularização sem prejuízo ao ambiente, à circulação
e às condições urbanas.
O projeto permite também pagar
contrapartidas para que hotéis construídos com incentivos para a Copa do Mundo
de 2014 e a Olimpíada de 2016 — alguns até hoje inacabados — sejam
transformados em edifícios residenciais ou noutros empreendimentos. A oferta de
quartos cresceu de 29 mil em 2009 para 50 mil em 2016. Como o fluxo de turistas
não acompanhou o aumento, vários estabelecimentos fecharam. Hoje há 47 mil
vagas.
De todos os problemas, o maior é a
permissão para legalizar obras que ainda não foram feitas. Trata-se de um
incentivo evidente à construção de olho na ilegalidade. É um contrassenso a
Prefeitura estabelecer uma legislação que leva em conta densidade demográfica,
fluxo de tráfego, meio ambiente, infraestrutura e outros fatores para depois
jogar tudo no lixo. Para que existe lei? Para criar a dificuldade e depois
vender a facilidade? E como fica o planejamento urbano com essa bagunça? O que
a Prefeitura faz é transferir sua responsabilidade de ordenamento da cidade ao
morador. Não tem como funcionar. Em nenhum lugar se tem notícia desse tipo de
anistia preventiva.
Um dos efeitos mais nocivos do projeto é
oficializar e estimular a cultura da ilegalidade. A Prefeitura se torna
cúmplice de práticas nefastas. Claro que a situação não é exclusiva do Rio, mas
a capital fluminense é pródiga em construções irregulares, não apenas favelas
nas áreas pobres. Em vez de a Prefeitura incentivar o respeito à lei, é a
primeira a abrir caminho para o vale-tudo. Pagou, legalizou.
Embora o projeto seja de interesse do Executivo, o prefeito Eduardo Paes tem a obrigação de vetar esse disparate urbanístico, especialmente num momento em que se discute um novo Plano Diretor. É certo que a Prefeitura arrecadará mais, mas esses recursos são finitos, e os puxadinhos legalizados ficarão para sempre na paisagem do Rio. A desordem não pode ser fonte de lucro. E será difícil convencer o cidadão de que deve respeitar a lei ao construir, já que, mais cedo ou mais tarde, tudo se acerta.
Lei desmoralizada
Folha de S. Paulo
Anistia para partidos tira sentido de
legislação que o próprio Congresso aprovou
Armand Jean du Plessis (1585-1642), mais
conhecido como cardeal de Richelieu, ministro de Luís 13 e arquiteto do
absolutismo francês, certa vez afirmou que criar uma lei e não mandar
executá-la significava o mesmo que autorizar a coisa que se queria proibir.
Richelieu não conhecia o Congresso
brasileiro. Nosso Parlamento não apenas aprova normas sem se preocupar com sua
execução como ele próprio, quando seus interesses estão em jogo, se encarrega
de aprovar regra subsequente que esvazia inteiramente a anterior.
É bem esse o sentido da proposta de
emenda constitucional 9/2023, com apoios da direita à esquerda.
O texto traz três dispositivos. No
primeiro, ele anistia as legendas que não destinaram os valores previstos em
lei para campanhas de mulheres e negros; no segundo, proíbe a
Justiça Eleitoral de aplicar qualquer penalidade às siglas por irregularidades
em prestações de contas; e, no terceiro, autoriza partidos a
receberem doações de empresas para quitar dívidas contraídas até agosto de
2015.
Louve-se a objetividade dos parlamentares.
No primeiro mecanismo, contrariam a lei de cotas de financiamento de
candidaturas; no segundo, disparam contra o sistema de freios e contrapesos,
pelo qual um Poder fiscaliza e modula o outro; no terceiro, debilitam o veto às
doações empresariais, decisão do Supremo Tribunal Federal depois transformada
em lei.
Pode-se discutir a oportunidade de cada uma
dessas medidas. As cotas de financiamento, por exemplo, são polêmicas. Aqueles
mais identificados com as questões identitárias as consideram muito tímidas
—gostariam de ver instaurada uma cota mínima de parlamentares mulheres e
negros.
Já os liberais mais radicais julgam que
mesmo essa intervenção sobre as campanhas já é excessiva. Para eles, não é
necessária nenhuma regra de alocação de recursos que limite as decisões
partidárias.
Mas, se o Parlamento está convencido de que
as regras das cotas de financiamento (ou quaisquer outras) não são as mais
adequadas, deve propor uma discussão sobre o mérito, que pode ou não resultar
em alteração.
O que não tem cabimento é promover uma
tratorada constitucional que tire a eficácia daquilo que o próprio Legislativo
já decidira.
Ao fazê-lo, os congressistas não apenas
autorizam o que se queria proibir, para retomar o tropo de Richelieu, como
ainda contribuem para erodir a própria ideia de que as leis devem ser
respeitadas —o que tende a produzir efeitos daninhos sobre a
institucionalidade.
Cidadãos do mundo
Folha de S. Paulo
Facilitar migrações ajuda a desenvolver a
economia, além de ser imperativo ético
Protestos contra mudanças previdenciárias,
como os vistos recentemente na França, mostram como o envelhecimento da
população mundial é tema que não recebe a atenção que sua gravidade exige.
Atualmente, segundo a Organização das
Nações Unidas, as pessoas com mais de 65 anos representam 9,6% dos 8 bilhões de
habitantes do planeta. Em 2050, serão 16,5% de 9,7 bilhões.
Reformas que tentam adaptar as leis de
seguridade social são formas de lidar com o problema. Outra é o acolhimento de
populações de diferentes países. Estudo do Banco Mundial divulgado na terça
(25) ressalta a importância
da migração no combate ao envelhecimento e na produção de riquezas.
"Migrantes trazem habilidades,
dinamismo e recursos para fortalecer suas economias de destino", disse
David Malpass, presidente do órgão. Já as comunidades dos países de origem se
beneficiam pelo envio de recursos de seus conterrâneos que trabalham no
exterior.
Dados apontam que 2,3% da população mundial
(184 milhões) é de imigrantes —o índice deve ser bem maior, dados os casos
ilegais.
Em 2022, 966 mil
pessoas requereram estadia definitiva em países da Europa, num
aumento de 50% em relação ao ano anterior e um recorde desde 2015.
Ao mesmo tempo, o velho continente é mais
refratário aos fluxos migratórios. Na Itália, a premiê Giorgia Meloni foi
eleita com discurso duro contra a migração e, em 2022, seu governo tentou
impedir a entrada de mil refugiados náufragos na região do Mediterrâneo.
Já Portugal é bom exemplo contrário. O governo
criou um programa de autorização de residência automática para cidadãos de
países de língua portuguesa. Em uma
semana, 74,7 mil de 85,7 mil pedidos foram validados.
Mas até os EUA, cuja economia deve muito
aos estrangeiros, tem endurecido sua política contra migração desde Donald
Trump.
Conservadores se apegam a um possível
"roubo" de postos de trabalho e a um nacionalismo datado que teme
influências exóticas.
Contudo boa parte dos imigrantes realiza
tarefas pelas quais a maioria da população do país de acolhimento não tem
interesse —nos piores exemplos da clandestinidade, até em condições aviltantes.
A xenofobia ignora o fato inexorável de que
grandes civilizações foram construídas a partir da mistura de culturas
diversas.
Muitos, ademais, estão fugindo de condições de vida desumanas, como guerra, fome ou perseguição política. Abrigá-los, portanto, é também um imperativo ético.
Bolsonarismo, risco para o agronegócio
O Estado de S. Paulo
‘Desconvite’
a ministro da Agricultura para a solenidade de abertura da Agrishow, na próxima
segunda-feira, quebra tradição e não condiz com a importância do setor agrícola
O agronegócio puxa o crescimento da
economia brasileira e exporta alimentos para o mundo inteiro. Setor pujante,
deve estar no centro das preocupações de qualquer governo, com políticas
adequadas de crédito e fomento agrícola, além de investimentos em pesquisa para
aumentar a produtividade no campo − algo, aliás, que já é feito exitosamente há
décadas. Se o Brasil quer mesmo deixar o subdesenvolvimento para trás, precisa
dobrar a aposta no que dá certo. Sem perder de vista, porém, que o caminho de
sucesso trilhado até aqui pelo agronegócio foi construído a muitas mãos, com
atores-chave remando no mesmo rumo. A começar pelo governo federal, esteja quem
estiver na Presidência da República.
É surpreendente, então, que a edição deste
ano da maior feira de tecnologia agrícola do Brasil, a Agrishow, esteja prestes
a produzir uma cena que não deveria interessar a ninguém: a ausência de
representantes do governo federal na cerimônia de abertura do evento, no dia
1.º de maio, em Ribeirão Preto (SP). Detalhe: não por iniciativa do governo, já
que o ministro da Agricultura, Carlos Fávaro, era presença confirmada − assim
como também estava prevista a ida do vice-presidente e ministro da Indústria,
Comércio e Serviços, Geraldo Alckmin. A decisão, conforme informou o Valor,
partiu da organização do evento, que achou por bem “desconvidar” o ministro,
uma vez que o ex-presidente Jair Bolsonaro deverá comparecer à solenidade do
dia 1.º.
Ora, saias-justas fazem parte do dia a dia
da política, e é preciso saber lidar com elas. Nada que os encarregados do
cerimonial não possam resolver na hora de definir assentos ou por onde cada
convidado vai entrar e sair. A abertura de uma feira do porte da Agrishow não
precisa ter ares de confraternização − e o compromisso das autoridades ali
reunidas, antes de mais nada, deve ser com o avanço de um setor vibrante da
economia nacional e, portanto, com o desenvolvimento do País.
Mas o bolsonarismo não consegue conversar
com quem não segue sua cartilha. Em vez disso, queima pontes e encara
adversários como inimigos. Uma triste lição que ficou evidente nos últimos
quatro anos, com efeitos deletérios nas mais diversas áreas.
Resta lamentar que tal atitude possa
seduzir representantes do agronegócio, a ponto de macular a abertura da
Agrishow − cuja perspectiva, felizmente, é bater recordes de vendas e atrair
milhares de visitantes. Vale lembrar que o evento tem patrocínio do Banco do
Brasil e, como informou o Estadão, o ministro Fávaro deveria anunciar mais de
R$ 1 bilhão em recursos suplementares para a equalização de crédito para o
Plano Safra 2022/23.
Divergências políticas, por óbvio, são o
oxigênio da democracia, e é natural que produtores rurais, assim como os demais
eleitores, se identifiquem com partidos e governantes que melhor representem
seus interesses. Em poucos meses de governo Lula, o Movimento dos Sem Terra
(MST) voltou a afrontar a lei e a invadir propriedades, o que deve ser
repudiado e combatido por todas as autoridades do País – como, aliás, fez o
próprio ministro Fávaro, uma das vozes que prontamente condenaram as recentes
invasões de terra pelos baderneiros do MST.
Note-se que até mesmo para divergir cabe
dialogar, e exemplo disso é o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas −
com quem Jair Bolsonaro deverá ir à Agrishow. Apadrinhado por Bolsonaro nas
últimas eleições, o governador tem buscado agir republicanamente desde que
tomou posse. Sua relação com o governo federal pautase, acima de tudo, pelos
interesses do Estado e da população. Corretamente, ele foi a Brasília para a
reunião de governadores com o presidente Lula da Silva após a tentativa de
golpe no 8 de Janeiro. Também somou esforços com o presidente após a tragédia
provocada pela chuva no litoral norte paulista. É com esse espírito que se
governa e faz política.
O “desconvite” ao ministro da Agricultura,
lamentavelmente, caminha em outra direção. Fiel retrato dos estragos que o
bolsonarismo é capaz de provocar, será a quebra de uma tradição, que não
reflete a modernidade e a pujança do agronegócio brasileiro.
Choque de culturas em SP
O Estado de S. Paulo
Pressão contra secretária de Cultura mostra
que moderação de Tarcísio não interessa ao bolsonarismo
Aliados do ex-presidente Jair Bolsonaro
querem derrubar a secretária de Cultura e Economia Criativa do Estado de São
Paulo, Marília Marton. Esse fato deveria estar em destaque no currículo da sra.
Marton, como um atestado de sua competência. Afinal, se a secretária está sendo
atacada pelo bolsonarismo, é porque deve estar cumprindo bem sua função.
Para atingir seu desiderato destrutivo, os
bolsonaristas usam qualquer pretexto, sem qualquer consideração por questões
técnicas, administrativas ou morais. Os notórios deputados Eduardo Bolsonaro,
expoente da prole do ex-presidente, e Mario Frias, representando o que de pior
o governo de Bolsonaro produziu na área da Cultura, atacaram a secretária
Marton depois que a TV Cultura, emissora pública paulista, veiculou em seu
canal no YouTube um documentário a respeito do papel da extrema direita nos
ataques golpistas do 8 de Janeiro.
Mário Frias, por exemplo, escreveu no
Twitter que a secretária estava permitindo que “a extrema esquerda continue
utilizando a máquina pública cultural paulista para manter sua agenda”. Já
Eduardo Bolsonaro declarou que o episódio caracterizava “discurso ideológico e
uso da máquina estatal em favor da política”.
Alguém precisa dizer a Eduardo Bolsonaro e
a Mario Frias que a secretária de Cultura não tem ingerência sobre a
programação da TV Cultura, administrada pela Fundação Padre Anchieta. Também
não se vai perder tempo aqui destacando a falta de coerência do discurso desses
bolsonaristas, tão zelosos ao defender a liberdade de expressão para proferir
suas barbaridades contra a democracia brasileira e, ao mesmo tempo, tão
críticos à veiculação de um documentário de cujo conteúdo discordam. Afinal,
bons liberticidas são aqueles para os quais só a patota bolsonarista é digna de
ter direitos.
O que importa, aqui, é notar o contraste
entre as expectativas do bolsonarismo a respeito da gestão de Tarcísio de
Freitas em São Paulo e a realidade do trabalho do governador. Não é segredo
para ninguém que os sabujos de Bolsonaro esperavam que Tarcísio, por ter sido
eleito graças a seu padrinho, fizesse de São Paulo uma cidadela do
bolsonarismo.
Mas Tarcísio tem se destacado pela
moderação. Não teve problemas em apertar a mão de Lula da Silva nem de
trabalhar em parceria com o presidente para ajudar os atingidos pelas chuvas no
litoral paulista logo no início de seu mandato. Ademais, escolheu um
secretariado majoritariamente técnico, sem fazer muitas concessões ao
bolsonarismo.
A secretária de Cultura é um bom exemplo
dessa opção do governador pela gestão em vez do extremismo. Logo que assumiu,
Marília Marton declarou, em entrevista ao Estadão, que “a cultura não tem e nem
deve ter ideologia”. Que contraste com o que se viu no governo Bolsonaro, que
chegou a ter um secretário de Cultura capaz de repetir ipsis litteris um
discurso nazista para dizer que “a arte brasileira da próxima década será
heroica e será nacional”.
Roga-se ao governador Tarcísio que resista ao extremismo e não permita que a cultura do ódio bolsonarista destrua a cultura do empreendedorismo e da criatividade paulista.
Em defesa da liberdade acadêmica
O Estado de S. Paulo
Criado em Harvard, o Conselho de Liberdade
Acadêmica é importante iniciativa em defesa da liberdade de expressão. Nos dias
de hoje, há quem queira sufocar a diversidade
Historicamente, as universidades sempre
foram espaços de liberdade. Em razão de sua finalidade de pesquisa, ensino e
diálogo, o ambiente acadêmico precisa ser profundamente livre, onde professores
e alunos se sintam genuinamente estimulados a apresentar suas descobertas, seus
pontos de vista, suas impressões e também suas dúvidas. A produção de
conhecimento sério envolve essa abertura a novas perspectivas e hipóteses, num
cenário de confiança e de respeito à pluralidade.
No entanto, a liberdade acadêmica, que
deveria ser conatural a todas as atividades e projetos de toda instituição
universitária, sofre nos tempos atuais especial resistência e oposição. De
forma sintomática, mais de 70 docentes da Universidade Harvard viram a
necessidade de criar o Conselho de Liberdade Acadêmica de Harvard, que se
dedicará a acompanhar e a promover a diversidade intelectual e as liberdades de
pesquisa e de expressão.
Em artigo publicado no jornal Boston Globe,
os professores Steven Pinker e Bertha Madras expuseram os motivos para a
criação da nova entidade. “Há muitas razões para pensar que a repressão à
liberdade acadêmica é sistêmica e precisa ser combatida ativamente”, afirmam.
Para eles, a repressão às diferenças de opinião observada nas universidades, de
forma similar às inquisições e expurgos de séculos atrás, é um dos motivos para
a queda da confiança no ensino superior americano. Como exemplo, relatam a
viralização de vídeos com professores sendo perseguidos, xingados, debochados
e, às vezes, até mesmo agredidos.
Citado no artigo, estudo da Foundation for
Individual Rights and Expression (Fire) nas universidades americanas relata,
entre 2014 e 2022, 877 tentativas de punir acadêmicos por expressões cujo uso,
em tese, estaria protegido constitucionalmente. Dessas tentativas, 60%
resultaram em sanções efetivas, com 114 casos de censura e 156 demissões. “Mais
do que durante o macartismo”, dizem Pinker e Madras.
Isso, no entanto, é apenas a ponta do
iceberg. “Para cada docente punido, muitos outros se autocensuram, cientes de
que poderão ser os próximos”, constatam os autores. O mesmo ocorre com os
alunos, que não se sentem confortáveis em expor suas ideias. Em Harvard, mais
da metade dos discentes tem receio de opinar sobre temas controvertidos em sala
de aula.
No artigo, os dois professores lembram um
aspecto fundamental sobre o tema: “A liberdade acadêmica não é apenas uma
questão de direitos individuais de professores e alunos”. Ela está inserida na
própria “missão de uma universidade, que é buscar e compartilhar a verdade”.
Há uma vinculação direta entre a liberdade
de expressão e a busca pela verdade. Afinal, ninguém é infalível ou onisciente.
Todos precisam ser expostos ao contraditório. Da mesma forma, não há ideias ou
hipóteses infalíveis. Todas elas têm de ser debatidas e confrontadas. “A única
maneira pela qual nossa espécie conseguiu aprender e progredir foi por meio de
um processo de conjectura e refutação: algumas pessoas lançam ideias, outras
investigam se são sólidas e, no longo prazo, as melhores ideias prevalecem”,
afirmam Pinker e Madras. Por isso, suprimir o debate, mesmo em temas
aparentemente consensuais, pode ser extremamente prejudicial para a sociedade.
Como é evidente, essas tensões não estão
presentes apenas no ambiente universitário americano. A liberdade de expressão
é ameaçada diariamente por discursos com pretensão de hegemonia, por suposta
superioridade moral ou intelectual. São tempos realmente estranhos, em que a
sociedade parece refém de extremos. Há os que, sob pretexto de liberdade de
expressão, querem impunidade total para seus crimes. E há os que, sob pretexto
de ideais civilizatórios, desejam calar quem pensa de forma diferente,
reprimindo ou mesmo criminalizando a diversidade intelectual.
É preciso preservar a liberdade acima de
modismos, respeitando e fomentando a pluralidade de ideias. Sem liberdade
acadêmica, impede-se não apenas a produção de conhecimento. A própria dignidade
humana é sufocada.
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