O Globo
O texto cria obrigações, mas não apresenta
um órgão responsável por fazer cumpri-las
O deputado Orlando Silva, relator do Projeto de Lei (PL) que regula as redes sociais, apresentou na noite de quinta-feira seu relatório com uma lacuna que expressa um impasse crítico enfrentado pela iniciativa. O texto cria obrigações para as redes sociais, mas não apresenta um órgão responsável por acompanhar e fazer cumpri-las. O motivo é que campanhas conduzidas pela oposição e pelas plataformas despertaram o medo em muitos deputados, e o governo não conseguiu apoio para criar o órgão de fiscalização independente que esse modelo de regulação exige.
Hoje, a moderação de conteúdo nas mídias
sociais — a remoção ou redução de alcance de uma postagem — é fruto de
autorregulação. As empresas que operam as redes sociais é que estabelecem seus
termos de uso, determinando que os usuários não podem publicar conteúdos como
imagens com nudez ou frases racistas. São elas também que fazem cumprir essas
regras — nem sempre muito bem, porque a moderação bem feita é custosa de
implementar.
O PL que o governo encaminhou reproduz o
modelo europeu de regulação das mídias sociais. Nessa abordagem, as empresas
seguem fazendo a moderação, mas precisam incluir entre os conteúdos moderados
postagens que violam sete leis sobre temas bastante consensuais na sociedade
brasileira: racismo, violência contra a mulher, terrorismo, golpe de Estado,
crimes contra a infância, indução à mutilação e ao suicídio e infração
sanitária.
A cada seis meses, as empresas precisarão
se submeter a uma auditoria independente e enviar um relatório detalhado de
transparência. Um órgão regulador avalia esses esforços de moderação e, se
houver problemas, pode propor sanções gradativas que vão de advertência a
pesadas multas. O órgão não discute postagens específicas e não pode propor
novas regras, apenas avalia o cumprimento dos parâmetros legais.
Essa abordagem é a forma democrática de
regular as redes sociais, já que, de um lado, não deixa empresas arbitrar o
debate público de acordo com parâmetros privados e, de outro, faz isso sem
deixar que o Estado interfira diretamente no debate, como acontece em países
autoritários. É o caminho escolhido por Alemanha, França e Dinamarca.
A adoção do modelo europeu de regulação foi
a maneira escolhida por técnicos do governo para responder rapidamente à
incapacidade das empresas de moderar conteúdos golpistas antes do 8 de Janeiro
e imagens de massacres que motivaram a onda de atentados a escolas. A ideia era
que um modelo mais ortodoxo, adotado por países democráticos, não pudesse
facilmente ser questionado pelos bolsonaristas.
O governo também avaliou que uma tramitação
rápida impediria que as empresas adiassem indefinidamente a aprovação de novas
regras. Elas se opõem vigorosamente à regulação por dois motivos: porque
exigirá investimentos para se adequar às regras e porque o PL também determina
pagamento aos veículos de imprensa — nesse caso, copiando outro modelo
democrático, o australiano.
O governo errou, no entanto, na avaliação.
A regulação das redes sociais é um assunto complexo e politicamente sensível, e
o debate não estava maduro. Embora o PL esteja tramitando há mais de dois anos,
essa nova abordagem foi introduzida apenas em março. Além disso, o PT desperta
desconfianças em muitos setores, que têm medo de que qualquer regulação de
meios de comunicação por um governo petista possa significar uma forma
dissimulada de controle ou censura.
Uma aliança tácita foi formada entre as
empresas de tecnologia e os bolsonaristas. Uma legião de lobistas bem
financiados invadiu os gabinetes da Câmara difundindo o medo. Disseram que esse
modelo criaria um Estado totalitário e que conteúdos bíblicos seriam
censurados. Uma campanha com o mesmo conteúdo ganhou as redes. As alegações
eram ridículas, mas assustaram muitos deputados.
Diante dessa grande pressão e temendo que a
proposta não fosse aprovada, o relator retirou do texto qualquer menção à
agência reguladora, criando uma incongruência: as empresas seguem tendo
obrigações, mas não é dito quem receberá os relatórios e quem imporá as
sanções.
Agora, não se sabe se o texto será votado
com essa lacuna, se a agência reguladora será reintroduzida ou se essas
atribuições serão dirigidas a um órgão já existente, como a Anatel,
a agência que regula telecomunicações. Há muita preocupação com a Anatel,
porque é uma agência que sofre bastante ingerência política do Congresso e não
tem vocação para regular um tema que envolve direitos humanos (a ênfase da
Anatel é a regulação econômica). O impasse está colocado.
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