Valor Econômico
Com direito a recursos estimados em até R$
50 milhões, nenhum parlamentar deixará de votar como quiser em troca de tostões
do governo
No século 19 e começo do século 20, o
bigode atestava a força da palavra de um homem. Um aperto de mãos selava
acordos, mas naquela época, os pactuários arrancavam, literalmente, um fio do
bigode para simbolizar a palavra empenhada. Era o pacto “no fio do bigode”.
A prática era comum nos tempos do
coronelismo nos sertões de Minas Gerais, como João Guimarães Rosa (1908-1967)
retratou em sua literatura. Por exemplo, ao introduzir o respeitado Joca
Ramiro, pai de Diadorim, e líder de jagunços visto como um cumpridor de
acordos:
“Joca Ramiro tinha poder sobre eles. Joca
Ramiro era quem dispunha. Bastava vozear curto e mandar”, descreveu Rosa. “Ou
fazer aquele bom sorriso, debaixo dos bigodes, e falar, como falava constante,
com um modo manso muito proveitoso: - Meus filhos...”
Em outra passagem do clássico Grande sertão: veredas (1956), o major Amaral prendeu o Andalécio, e cortou seus grandes bigodes. Na batalha, garrucha engatilhada, o jagunço reagiu: “Sai pra fora, cão! Vem ver! Bigode de homem não se corta!”
O bom observador da cena política reconhece
o tique do presidente Luiz Inácio Lula da Silva de pentear os bigodes com o
indicador e o polegar quando está prestando atenção em algo, ou refletindo
sobre algum dilema. Políticos experientes afirmam que Lula tem defeitos, como
qualquer um, mas na política, é identificado como cumpridor de acordos.
Foi por isso que ao voltar de Londres, Lula
chamou ministros palacianos e a cúpula petista para discutir a insatisfação da
base aliada, e reafirmar que é preciso honrar acordos. Sobretudo entre homens
de bigodes.
“O governo faz um acordo com a Câmara ou o
Senado sobre a aprovação de uma medida e tem que cumprir", declarou Lula à
imprensa no sábado, em Londres. “O que estão se queixando os deputados? De que
o governo tarda a atender as reivindicações. Não pode prometer e não fazer”,
reforçou.
Na semana passada, por 295 votos a favor e
136 contrários, a Câmara derrubou trechos de dois decretos do governo que
alteraram o novo marco legal do saneamento. A base também não reuniu votos
suficientes para aprovar o projeto de lei das Fake News, obrigando o presidente
Arthur Lira (PP-AL) a adiar a apreciação da matéria. A proposta não tem o
carimbo governista, mas também é de interesse do Planalto.
O recado foi absorvido. Em reação, o
governo abriu nesta segunda-feira o cadastro de novas emendas junto a quatro
ministérios (Agricultura, Saúde, Cidades e Desenvolvimento Regional), e junto à
Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco (Codevasf), feudo do
Centrão.
Deputados e senadores estão irritados
porque o governo prometeu pagar no começo do ano, em média, R$ 13 milhões em
emendas de restos a pagar aos deputados de primeiro mandato, e R$ 8 milhões aos
reeleitos, segundo uma fonte credenciada do Congresso. Essa promessa não se
realizou.
Em paralelo, o Ministério da Saúde editou
portaria com critérios para a destinação de cerca de R$ 3 bilhões para o setor.
Emendas para a saúde têm transferência automática para as prefeituras.
Há reclamação também de que as nomeações
para cargos estariam sendo travadas pela Casa Civil. Governistas rebatem que
existe a burocracia natural da máquina pública. Além disso, algumas indicações
morrem nos escaninhos da Casa Civil, porque o apadrinhado tem, por exemplo,
condenações judiciais transitadas em julgado.
Em outra frente, Lula alertou os ministros
de que a base aliada também deu o fio do bigode, ou seja, a palavra de ser leal
ao governo. Por isso, pediu que seus ministros cobrem fidelidade dos
correligionários.
Ontem o ministro das Relações
Institucionais, Alexandre Padilha, disse em entrevista que não é “marinheiro de
primeira viagem” no cargo de articulador político do governo. O problema,
segundo alguns líderes, é que Padilha encarou outro perfil de Congresso quando
exerceu a mesma função no segundo mandato de Lula.
“Hoje você tem 2/3 do Congresso de
centro-direita, tem um ambiente de radicalização que nunca foi visto no país”,
argumentou à coluna Felipe Carreras (PSB), líder do maior bloco da Câmara, que
reúne nove partidos (inclusive o PP de Arthur Lira) e 173 deputados.
“A área política do governo tem que
trabalhar redobrada, com muito mais sensibilidade. Se já foi difícil em outros
tempos, agora é muito mais”, completou. Ele lembrou que Lula herdou um
Congresso que vinha no “piloto automático” das emendas RP-9, ou seja, as
emendas de relator, cuja distribuição era controlada pelos presidentes da
Câmara e do Senado.
Outra diferença, segundo Carreras, é que
nos primeiros mandatos de Lula, deputados e senadores gastavam solas de sapato
indo ao Planalto para pressionar pela liberação das emendas individuais,
estimadas em R$ 12 milhões. Com as mudanças dos últimos anos, um parlamentar
tem direito, atualmente, a recursos estimados em até R$ 50 milhões. Isso
somadas as emendas individuais de R$ 30 milhões, mais emendas de bancadas, que
se tornaram impositivas, que podem chegar a R$ 20 milhões, dependendo do Estado
de origem do parlamentar. Ou seja, ninguém votará como não quiser em troca de
tostões do governo.
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