O Globo
Obra de Beethoven é a extraordinária
história da arte do possível. Ela dá sentido ao caos e extrai beleza da dor
universal
Início de primavera no Hemisfério Norte
sempre dá aquela comichão gostosa — é largar os capotes pesados em casa e sair
à rua leve, livre e renascida. Foi num desses sabadões primaveris de maio de
2012 que moradores de Sabadell, cidade catalã da província de Barcelona,
conheceram uma alegria coletiva transbordante. Ao cair da tarde, um flash
mob com mais de cem músicos da Sinfônica del Vallès e corais regionais
brotou do nada na Plaça Sant Roc, em meio a flaneurs e à criançada, e começou a
tocar a transcendental “Ode à alegria”, de Beethoven. O vídeo daquele
momento mágico de comunicação humana, facilmente acessível no YouTube,
pode servir de teste para o grau de humanidade-raiz que ainda nos habita. Quem
permanecer insensível à cena, incapaz de se desligar do cotidiano que nos
aplasta, é caso perdido. Melhor ir aninhar-se na inteligência artificial.
A “Ode à alegria” é a extraordinária história da arte do possível. Ela dá sentido ao caos e extrai beleza da dor universal. Já por isso é útil relembrá-la vez por outra em tempos turvos, mesquinhos, pequenos e desumanizados como os de hoje.
Beethoven, adolescente na Europa eletrizada
pelo espírito revolucionário do final do século XVIII, fora profundamente
marcado pelo poema “Ode à alegria”, do seu monumental conterrâneo alemão
Friedrich Schiller. A mensagem de liberdade e justiça, felicidade e paz contida
nos versos do poeta nunca mais se desgarraram da mente do músico. Nem quando a
guilhotina substituiu as liberdades, e as guerras napoleônicas soterraram a
paz, nem quando Schiller morreu achando que sua “Ode” era uma obra fracassada.
Beethoven nunca fraquejou. Continuou a ver naqueles versos a necessidade do
possível. Como se sabe, foi durante uma caminhada sem rumo de vários dias, aos
52 anos de idade e já praticamente surdo, que o idolatrado compositor de oito
sinfonias, além de concertos e sonatas, encontrou a centelha para sua obra
magna, a Nona Sinfonia. Ela culminaria com os versos silenciosos de Schiller
cantados por um coral, num grand finale sem paralelo no universo musical. Até
então, compositor algum havia sequer cogitado introduzir a voz humana numa
sinfonia. Ninguém ousara tanto. Nem Bach, nem Mozart, nem Haydn.
Para a ensaísta cultural Maria Popova,
Beethoven conseguiu resolver o imenso tormento de sua vida criativa integrando
fúria e redenção, o silêncio da palavra escrita com o drama da música, e
transformando a escuridão por ele vivenciada em algo incandescente, eterno. Na
estreia em Viena,
em 1824, houve um átimo de silêncio ao final do último acorde da aguardada Nona
— quando algo é sublime demais, calamos. Passado o primeiro impacto, ouviu-se
um júbilo incontido que dura até hoje, passados 200 anos. Popova lembra que
Walt Whitman celebrou a obra como expressão mais profunda da natureza humana e
que a escritora americana e ativista surda Helen Keller descobriu o que é
música quando “ouviu” a “Ode” pressionando as mãos contra uma caixa de som.
Manifestantes chilenas contra a ditadura de Augusto Pinochet também entoaram o
“Himno a la Alegría” como forma de protesto, mostra o documentário “Seguindo as
pegadas da Nona Sinfonia”, de Kerry Candaele. Até mesmo no histórico confronto
de 1989 na Praça da Paz Celestial em Pequim, um dos estudantes aquartelados improvisou
uma transmissão da Nona para abafar os comunicados oficiais que antecederam a
chegada dos tanques às ruas. Quatro anos antes, a “Ode” de Beethoven fora
adotada como hino da União Europeia.
Acolhida como chamamento para descartarmos falsos profetas que alimentam séculos de guerras e milênios de desigualdade, ela mantém a visão idealizada de Schiller de que a raça humana se reencontrará na fraternidade. Infelizmente, basta olhar à nossa volta para constatar que não é bem assim — as distâncias que separam a natureza do ser humano, e humanos entre si, continuam abissais. Não importa. A arte existe para nos transportar ao possível, seja cantarolando “Imagine”, de John Lennon, seja para escancarar alegria com o flash mob de Sabadell. Fica aqui o convite, já que hoje é domingo. Mesmo para quem já assistiu.
Um comentário:
Um lindo e sensível artigo.
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