Correio Braziliense
O nacional-desenvolvimentismo e a tradição
anti-imperialista da esquerda brasileira influenciam a política externa. Isso
provoca o realinhamento de forças que priorizam a questão democrática
Artigo de Lourdes Sola e Eduardo Viola,
professores do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo
(USP), publicado, ontem, no Estado de S. Paulo, sobre as mudanças na política
mundial e o posicionamento do governo Lula, merece profunda reflexão. Destaca
que houve uma mudança na geopolítica mundial que exige um reposicionamento
cuidadoso do Brasil. Isso parece não ter sido devidamente avaliado pelo presidente
Luiz Inácio Lula da Silva, cuja diplomacia é presidencial e comandada pelo
ex-chanceler Celso Amorim, embora o Itamaraty tenha massa crítica para fazê-lo
com mais competência.
“A invasão russa da Ucrânia consolidou um forte componente de guerra fria entre as democracias do ‘Ocidente coletivo’ (que inclui Japão, Coreia do Sul, Taiwan, Austrália e Nova Zelândia) e o bloco autocrático (com China, Rússia, Irã e Coreia do Norte). Esse confronto delineia-se desde 2015, mas o traço que define a guerra fria é mais recente: cada bloco vê o outro como ameaça existencial. Está em pleno curso o desacoplamento entre ambos no referente à alta tecnologia e, particularmente, à tecnologia de uso dual (civil e militar)”, avaliam Sola e Viola.
A lógica da guerra fria é a paridade
estratégico-militar. Há um evidente desequilíbrio nesse aspecto entre países
que integram a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) e o eixo China,
Rússia, Irã e Coreia. O ponto de inflexão da construção de um mundo multipolar,
que parecia ser irreversível com a emergência da China como potencia econômica,
foi a invasão da Ucrânia pela Rússia. O conflito se tornou uma “guerra de
procuração” entre a Otan e o governo de Putin. Além de reativar o complexo
militar industrial dos Estados Unidos e outros países do Ocidente, a guerra em
plena Europa provocará a expansão da capacidade militar chinesa, que já vinha
ocorrendo, com a militarização definitiva dos mares asiáticos.
No livro Sobre a China, Henry Kissinger
lembra-nos que a disputa pelo controle do comércio no Atlântico entre uma
potência continental, a Alemanha, e uma potência marítima, a Inglaterra, no
século passado, provocou duas guerras mundiais. Neste século, o eixo do
comercio mundial se deslocou para o Pacífico, a potência continental é a China,
e a marítima, os Estados Unidos. O temor de Kissinger era que isso provocasse
uma nova guerra fria e, consequentemente, aumentasse o risco de uma catástrofe
nuclear. É o que acontece agora.
Guerra e paz
A propósito, Sola e Viola destacam diferenças
cruciais em relação à guerra fria do pós-Segunda Guerra Mundial: há alta
interdependência econômica entre os dois blocos, embora menor entre Ocidente e
Rússia desde a invasão; a China é uma superpotência econômica, ao contrário da
antiga União Soviética; os desafios globais como mudança climática, pandemias e
regulação da inteligência artificial exigem muita cooperação internacional. O
neorrealismo diplomático assentado nos interesse geopolíticos permanentes,
derivados da geografia, da história e da identidade cultural, foi posto em
segundo plano: “Os interesses dos Estados variam segundo os regimes políticos e
os governos, e segundo as transformações da economia política mundial”.
Sola e Viola criticam, com razão, a
prioridade dada por Lula à mediação da paz entre a Rússia e a Ucrânia: “o
Brasil não tem excedente de poder para mediar numa região que conhece pouco e
com a qual tem vínculos limitados”. Teria muito mais protagonismo nas políticas
climática e de transição energética. “Justamente aquelas que são decisivas para
equacionar alguns dos desafios globais de ordem existencial mencionados. Para
tanto, há que reduzir drasticamente o desmatamento, evitar as tentações do
nacionalismo petroleiro e investir nas oportunidades abertas para exercer protagonismo
ambiental — a presidência do G20 e a COP30.”
Embora desejemos um mundo multipolar e a
paz, a guerra na Ucrânia fragiliza a opção pelo Sul Austral. Os países do Brics
(Brasil, Rússia,Índia, China e África do Sul), realmente, têm interesses
econômicos convergentes, porém não ficarão neutros: Rússia e China são aliados
militares; a Índia integra o bloco militar do Japão e da Austrália com os
Estados Unidos. A tradição da África do Sul é de alinhamento com os Estados
Unidos e a Inglaterra.
O nacional-desenvolvimentismo e a tradição
anti-imperialista da esquerda brasileira, subliminarmente, influenciam a
política externa do governo. Isso já é perceptível e provoca o realinhamento de
forças sociais e políticas que priorizam a questão democrática na relação com o
governo. Opuseram-se ao governo Bolsonaro; agora, pelas mesmas razões, se
distanciam de Lula, o que debilita seu governo. O Brasil é um país do Ocidente.
Um comentário:
Se oriente rapaz...
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