O Estado de S. Paulo
O fator que favorece o bolsonarismo não é a polarização da política, e sim a imbecilização da discussão política
Se há uma real preocupação com o debate
público e com o regime democrático – se não queremos ficar reféns do
bolsonarismo nos próximos anos –, é preciso urgentemente qualificar a crítica
contra o PT: ir aos fatos, sem ficar repetindo lugares-comuns ou fantasmas que,
apesar de renderem muitos cliques, não têm suporte na realidade e não passam
pelo filtro da racionalidade.
Não é um pedido para amenizar a oposição ao PT, como se a crítica contundente contra o partido do Lula favorecesse o bolsonarismo. Ou como se um ambiente democrático não autorizasse um forte antagonismo com o PT. Nada mais distante da realidade. A divergência faz parte da política. Os extremos e os contrastes são elementos legítimos e, de certa forma, necessários para o debate político. O regime democrático não comporta apenas tons pastéis. O fator que favorece o bolsonarismo não é a polarização da política, e sim a imbecilização da discussão política.
Nesse sentido, o debate público sobre o PT
(e sobre qualquer outro partido) não pode ser definido pela miopia
característica das redes sociais. Por exemplo, Lula não é nem nunca foi de
extrema esquerda. Certamente, suscita medo no eleitor dizer que Lula deseja
acabar com a propriedade privada e a liberdade religiosa, ou que irá implantar
um regime socialista no Brasil. Mas a crítica a partir desse lugar inventado,
sem suporte nos fatos, representa não apenas uma espécie de elogio reverso a
Lula: para criticá-lo, seria preciso recorrer a narrativas distorcidas. Ela faz
parecer que o importante na política é o resultado (opor-se ao adversário), e
não o modo como se atua. A irracionalidade abre caminho para a naturalização da
agressividade.
Um parêntese. A crítica política por birra
e preconceito nada tem de liberal. De acordo com sua autocompreensão, o pensamento
político liberal baseia-se no respeito aos fatos, em argumentos formulados a
partir de evidências. Ele defende uma perspectiva realista da vida,
contrapondo-se à postura idealista: a verdade está nos fatos, na
correspondência aos fatos, e não nas ideias. Por isso, ao reduzir o peso dos
fatos e das evidências, o uso de preconceitos e lugares-comuns no debate
público contradiz o liberalismo. Não faz sentido que, em seus argumentos, um
liberal não seja rigoroso com os dados. Atuando assim, ele desrespeitaria o
ideário que diz defender.
Por sua vez, se há uma real preocupação com
o debate público e com o regime democrático – se não queremos ficar reféns do
bolsonarismo nos próximos anos –, é preciso urgentemente qualificar a crítica
contra a direita. Se todas as causas promovidas pelos conservadores – por
exemplo, a criminalização do aborto e das drogas, as políticas públicas
voltadas à família e a defesa de uma educação pública que respeite os valores
morais dos pais – são qualificadas de bolsonaristas, como expressão da extrema
direita, os próprios críticos dessas bandeiras estarão colocando parcela
significativa da população sob as asas eleitorais de Jair Bolsonaro.
Se os partidos e grupos de esquerda tacham
tudo o que eles têm ojeriza de bolsonarista, na prática oferecem a Jair
Bolsonaro uma enorme vantagem competitiva. A ter em conta alguns discursos,
mais da metade da população seria bolsonarista de carteirinha simplesmente pelo
fato de a maior parte dos brasileiros ter simpatia por alguma bandeira conservadora.
Ora, nem toda causa conservadora ou reacionária é bolsonarista.
Definir os elementos do bolsonarismo é um
vasto campo de estudo e de discussão. O ponto é: chamar de bolsonarista tudo o
que é conservador produz consequências não apenas nas urnas. Faz com que muitas
pessoas, mesmo sem compartilharem os valores centrais do bolsonarismo,
sintam-se identificadas com ele – e isso não por causa de campanhas massivas de
desinformação e de manipulação, mas por força do próprio discurso progressista.
É um tiro no pé.
Também tem seus riscos a tática de recorrer
ao Judiciário como atalho para implementar causas progressistas sem maioria no
Congresso. No curto prazo, ela parece eficaz. Em razão da classe social e da
formação acadêmica de seus integrantes, uma Corte constitucional tem
habitualmente maior afinidade com essas bandeiras do que a média da população.
Mas o uso desse atalho gera consequências. A autoridade da Justiça torna-se
mais contestada, aumentando a demanda de controle sobre ela, e o grupo político
com a bandeira anti-Judiciário ganha relevância e tração eleitoral.
É possível – e muito cômodo – atribuir o
peso do bolsonarismo nas eleições de 2018, 2020 e 2022 a campanhas de
desinformação. É possível – e também cômodo – alimentar sonhos de um centro
democrático com força eleitoral no próximo pleito. No entanto, é mais difícil –
e talvez mais necessário – reparar na ajuda que muitos, consciente ou
inconscientemente, vêm dando a Jair Bolsonaro. Não basta sentir-se distante
desse grupo político que é sinônimo de retrocesso institucional, democrático e
civilizatório. É preciso parar de lançar a mãos cheias a semente de
bolsonaristas.
*Advogado
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