Folha de S. Paulo
Minorias, transformadas em identidades, são
o bem mais precioso e frágil a ser tutelado e protegido
"A única diferença atual entre
liberais e conservadores é que os liberais vão à missa das cinco e os
conservadores vão à missa das oito", disse o coronel Buendía, personagem
de "Cem Anos de Solidão", de García Márquez. De fato, às vezes a
distinção entre uns e outros, que parece tão pronunciada na autoimagem de cada
grupo, reduz-se ao mero rodízio para fazer a mesma coisa.
Há três anos, um filme roteirizado por Fábio Porchat foi execrado publicamente. O filme se chamava "A Primeira Tentação de Cristo", do grupo Porta dos Fundos, e, segundo o divertido resumo feito pelo Domingo Espetacular, da TV Record, exibia "piadas sem graça" sobre passagens bíblicas e, entre outros horrores, mostrava um Jesus homossexual e Maria e José em um triângulo amoroso com Deus, que, além de tudo, era "retratado como um homem manipulador e mentiroso" —1,7 milhão assinou um abaixo-assinado pedindo que o filme fosse tirado do ar.
O Porta dos Fundos divulgou nota defendendo
as liberdades artística e de expressão. Nem preciso dizer que não houve
progressista que não cerrasse fileiras pela dupla liberdade sob ataque, não
evocasse as críticas nazistas à "arte degenerada" nos seus argumentos
e não defendesse o sagrado direito à profanação em uma sociedade em grande
parte secularizada.
Houve muitos casos como esses durante as
trevas bolsonaristas, tendo se formado grupos de vigilantes digitais para agir
diante das várias profanações e desrespeitos liberais em arte e cultura. Quer
dizer, para os denunciar, por meio de vídeos e posts, para mobilizar boicotes,
linchamentos e assédios e, enfim, para que os mais virtuosos denunciadores
pudessem faturar eleitoralmente em 2016 e 2018.
Tem sido, porém, muito frequente a inversão
dos papéis, com os liberais gritando por censura para defender vulneráveis,
mobilizando-se para boicotes e linchamentos e tentando ganhar com suas
expedições punitivas. Ganhar visibilidade pública, monetização da própria
imagem de defensor intransigente da correção política, quiçá um mandato ou
cargo público.
O mercado mais aquecido hoje é o mercado de
virtudes. Já era assim durante a longa noite do bolsonarismo, em que homens de
bem, smartphones à mão, dedicaram-se a alimentar o sentimento público de
ultraje ante a degeneração moral, artística e intelectual dos progressistas.
Mas a commodity agora é outra, os identitários de esquerda disputam o monopólio
de outras virtudes, outros são os vulneráveis. As minorias, transformadas em
identidades, são agora o bem mais precioso e frágil, a ser tutelado e protegido
de todo e qualquer gatilho, ofensa, contrariedade, hostilidade. Liberdades de
expressão, artística, de cátedra, valores outrora reivindicados, são com
frequência dispensados sumariamente como valhacouto de fascistas.
O novo linchamento de Porchat exemplifica
bem as enormes pressões de um mercado cada vez mais concorrido. Não se pode
acusá-lo de ter cometido um ato racista nem de ter sido o porta-voz de discurso
de ódio. O que ele fez foi reafirmar sua convicção de que, como o filme do
Porta dos Fundos, uma sátira política por meio de profanação, não mereceria
ser banido, talvez o trabalho de Leo
Lins devesse gozar das mesmas prerrogativas das liberdades artística e
de expressão que ele havia reivindicado para si no passado. Afinal, princípios
são princípios e um progressista deveria lutar por eles, não apenas por
interesses. Não? E o que pode dar errado num post em que se diz para não se
confundir juízo de gosto com juízo de valor e em que se convida à reflexão em
lugar da animosidade?
Pois meia hora depois da nota de Porchat,
já nem se falava de Lins, do seu humor grosso e preconceituoso, mas do
"comediante branco" progressista, que se revela "mais perigoso
para o movimento antirracista do que o branco de direita" e que, além
disso, está preso, como é típico dos da sua raça, aos vínculos com o
"pacto narcísico da branquitude" –tudo isso dito expressamente em
vídeos publicados por guerreiros da justiça.
Um identitário de esquerda não pode
cancelar Lins, que capitaliza automaticamente qualquer crítica vinda dos
progressistas. Mas é lucrativo linchar Porchat, posto que nada é mais
compensador para reafirmar os valores do grupo do que sacrificar um ex-aliado,
agora considerado traidor, mesmo que a traição consista em não aderir a uma
expedição punitiva. Nem pode haver maior recompensa para um caçador de
transgressões do que pendurar na sua sala, como troféu, a cabeça de um bicho
grande para mostrá-la às visitas: aquele ali o abati numa quinta, um perigo,
protegi o mundo, sou ou não sou virtuoso?
*Professor titular da UFBA (Universidade Federal da Bahia) e autor de "Crônica de uma Tragédia Anunciada"
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