Valor Econômico
Tema tomará crescente espaço nos foros
internacionais em meio a um mundo cada vez mais fragmentado
Em reunião de ministros dos principais
países comerciantes, na semana passada, em Paris, a portas fechadas, Estados
Unidos e Europa rasgaram a fantasia. Sinalizaram interesse na adaptação de
regras comerciais internacionais para o setor industrial. Na prática, querem
assegurar “policy space”, ou margem de manobra para o Estado fazer política
industrial - algo que se ouvia até agora só de países em desenvolvimento. Os
dois seguem agora passos da China, mas ao mesmo tempo querem enquadrar
subsídios dados por Pequim.
O plano de Washington e Bruxelas é lançar as discussões envolvendo industrialização ou reindustrialização durante a conferência ministerial da Organização Mundial do Comércio (OMC) em fevereiro de 2024, nos Emirados Árabes Unidos. Buscam legalizar medidas unilaterais que turbinem sua capacidade industrial oficialmente para fazer a transição verde e energética. Negociadores falam em ter a conclusão da negociação dois anos depois, na conferência ministerial seguinte da OMC.
Subsídio é comum em todos os setores,
usados por todos os países em todos os estágios de desenvolvimento, tomam
diferentes formas e afetam todas as nações. Entidades públicas nacionais ou
estaduais fornecem subsídios através de ajuda direta, incentivo fiscal,
financiamento com juro mais baixo, energia, terra e outros insumos. Em grande
parte do comércio internacional, cada transação envolve produtos e mercados com
participação de ao menos uma firma subvencionada.
Mas regras da OMC tentam regular essa
situação. Os subsídios específicos são totalmente proibidos se condicionados ao
desempenho exportador ou ao uso de produtos nacionais em vez de importados.
Outros são “acionáveis”, podendo ser contestados diante dos juízes da OMC, se
for possível demonstrar que distorcem o comércio geral ou causam prejuízos à
indústria doméstica de outro país-membro.
Agora política industrial deixou de ser um
termo maldito na cena comercial. E ali toma corpo um movimento para criação do
que no jargão da OMC é chamado de “caixa verde” (subsídios autorizados) para o
setor industrial, focado na transição verde. Significaria facilitar uso de
conteúdo local ou de subsídios sem limites, dependendo das barganhas. Para
alguns países, isso ajudaria a reduzir a dependência ou frear o avanço da China
na indústria de painéis solares e veículos elétricos, por exemplo.
Nos EUA o presidente Joe Biden introduziu a
maior intervenção em política industrial em décadas. O programa Inflation
Reduction Act (IRA) prevê a soma colossal de US$ 370 bilhões de redução de
impostos e outros benefícios para impulsionar produção e compra de
semicondutores, veículos elétricos, baterias, parque eólico, painel solar e
muitos outros.
Face à China e ao “Buy America”, a UE segue
passo similar com plano de US$ 270 bilhões para subsidiar a indústria verde. O
presidente francês, Emmanuel Macron, defende uma “política industrial sólida e
uma política comercial mais protetora” diante do aliado americano e do rival
chinês. Canadá, Coreia do Sul, Japão, Reino Unido, Indonésia e outros países
com recursos entram na corrida para não deixar suas indústrias atrás da
concorrência nos próximos anos.
Com países desenvolvidos imersos em nova
onda de industrialização, com subsídios que podem violar as regras da OMC, um
grupo de 44 países africanos apresentou no fim de maio uma proposta para
“reequilibrar as regras comerciais para promover a industrialização” de nações
em desenvolvimento. Política que a ex-presidente Dilma Rousseff adotou,
incluindo o Inovar-Auto, estaria amplamente coberta pela proposta africana.
EUA e UE aproveitam o movimento africano
para vender sua própria iniciativa por “policy space”. Podem atender a demanda
africana em alguns pontos, mas não muito, visando obter maior apoio para ir
para cima das políticas chinesas.
As conversas são preliminares, mas
critérios para uma futura flexibilização podem excluir economias não de mercado
e empresas estatais ou exigir mais transparência - tudo visando a China. Se o
menu for realmente impalatável para Pequim, os chineses têm como agir. Uma
atualização das regras precisa de consenso. A China sozinha pode bloquear tudo.
De seu lado, a Índia tanto quer margem de
manobra na área industrial quanto quer poder dar subsídio agrícola sem limites
e também obter salvaguarda especial para frear mais facilmente as importações
agrícolas - o que vai contra os interesses de um exportador como o Brasil.
Para o Brasil, será preciso calibrar bem
sua posição nesse novo ambiente. De um lado, é um momento em que o país pode
avançar em política industrial sem ser constrangido, porque a tendência é de
flexibilização de regras internacionais. De outro, pode ser o pior dos mundos,
enfrentando subsídios industriais e velhos e novos subsídios agrícolas. E o
país não tem musculatura para entrar numa guerra global de subsídios.
Para setores do governo Lula, de fato o
país não tem folga do ponto de vista fiscal, mas nem por isso pode deixar de
fazer algo nessa área, por exemplo, para atrair investimentos externos. Na OMC,
o Brasil pode ficar alinhado aos africanos, como na demanda pelo uso de
direitos de propriedade intelectual para transferência de tecnologia visando
combate às alterações climáticas.
Além disso, no movimento na OMC para
legalizar subsídios industriais, o Brasil certamente poderá defender
compensações em outras áreas, como limitar as subvenções agrícolas. Se vai
conseguir algo, é outra coisa.
O que não dá para ignorar é que subsídios
para o meio ambiente podem também criar estragos, se misturados com políticas
protecionistas. Eliminam a competição e frequentemente resultam em preços mais
altos, menor qualidade, menos variedade e menor disponibilidade das próprias tecnologias
ambientais, conforme alguns especialistas.
Abrir a porteira para subsídio industrial
traz risco de quebrar o equilíbrio que existe hoje nas regras da OMC. E é
difícil imaginar uma solução a curto prazo para restabelecer o Órgão de
Apelação da OMC, espécie de corte suprema do comércio internacional, antes de
eventual adaptação de normas para o setor industrial. Ou seja, as disputas
comerciais podem se acumular, sem que os violadores das regras sejam punidos.
Política industrial tomará crescente espaço,
num mundo cada vez mais fragmentado.
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