STF deve ir a fundo na investigação da trama golpista
O Globo
Mas é preciso que tenha cautela para não
cometer excessos, restringindo liberdades de quem não violou a lei
Os detalhes da conspiração que culminou no
vandalismo golpista do 8 de Janeiro em Brasília vêm sendo paulatinamente
desmascarados. O show macabro contra a democracia foi captado minuto a minuto
por câmeras de TV e de segurança. Dias antes, militares e figuras vinculadas ao
ex-presidente Jair
Bolsonaro conspiravam para mantê-lo no poder, ainda que fosse
necessário dar um golpe de Estado à moda antiga, com Exército nas ruas,
violação de direitos e prerrogativas constitucionais.
Novas mensagens e arquivos encontrados pela
Polícia Federal (PF) no celular do tenente-coronel Mauro Cid,
fiel ajudante de ordens de Bolsonaro, mostram a extensão e a audácia da trama
golpista. Com o sugestivo título “Forças Armadas como poder moderador”, um dos
documentos, esmiuçado em relatório da PF revelado pela revista Veja,
traça um plano
minucioso para a quebra da ordem democrática.
Pelo roteiro, embasado na tese estapafúrdia de fraude eleitoral, Bolsonaro enviaria aos comandantes das Forças Armadas ofício identificando atos do Judiciário que julgava inconstitucionais. Os militares, em desafio à Constituição, nomeariam um interventor para afastar do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) os ministros Alexandre de Moraes, Cármen Lúcia e Ricardo Lewandowski e investigá-los. Seriam convocados a substituí-los os ministros Nunes Marques, André Mendonça e Dias Toffoli, para impedir a posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e, em tese, marcar nova eleição (promessa jamais cumprida por golpistas).
O plano se une a outras evidências que
aproximaram a trama de Bolsonaro, como a minuta de decreto de Estado de Defesa,
encontrada com o ex-ministro da Justiça Anderson Torres, além de outras mensagens
e áudios do celular de Cid. Nas novas mensagens, um dos maiores apoiadores do
golpe é o coronel Jean Lawand Junior, ex-subchefe do Estado-Maior do Exército.
Os diálogos relatam encontros com outros militares suspeitos de aderir à
conspiração. Pelo que se depreende das conversas, Bolsonaro só não deu início
ao golpe por não acreditar que o Alto-Comando do Exército participaria.
Inconformado, Lawand Junior escreveu: “Se a cúpula do EB não está com ele, de
divisão para baixo está”.
Felizmente, o Alto-Comando resistiu à
pressão e não embarcou na aventura. Merecem aplauso e admiração os generais que
se mantiveram fiéis à Constituição num governo que criou terreno fértil para a
veia autoritária. Ao mesmo tempo, assim como os arruaceiros do 8 de Janeiro, os
militares e civis que tramavam o golpe devem ser todos investigados, julgados e
punidos com o rigor da lei. Quem alimentou a conspiração por ação ou conivência
deve ser investigado, independentemente de patente ou currículo, a começar pelo
próprio ex-presidente.
A estratégia mais eficaz para evitar que a
democracia brasileira volte a correr riscos é punir quem trabalhou para
aniquilá-la. É preciso, contudo, que o Supremo Tribunal Federal (STF),
instância a que cabem o comando das investigações e o julgamento, saiba manter
o foco no que importa: punir a trama golpista e a violência. Cercear a
liberdade de expressão daqueles que apenas têm opiniões absurdas ou extremas,
mas não praticaram atos violentos, não se envolveram no ataque coordenado às
instituições nem violaram a lei, equivale a sacrificar a mesma democracia que
se quer defender.
Governos têm de combater subsídios aos
principais emissores de gases
O Globo
Incentivos a combustíveis fósseis somam
quase US$ 600 bilhões — e no Brasil situação piorou com Lula
Os subsídios para combustíveis fósseis,
agricultura e pesca somam US$ 1,2 trilhão por ano, quantia equivalente ao
tamanho da economia mexicana, revelou o estudo “Desenvolvimento Detox: a
reorientação de subsídios prejudiciais ao meio ambiente”, divulgado nesta
semana pelo Banco Mundial. O impacto total supera US$ 7 trilhões, cerca de 8%
do PIB mundial, se computados os custos dos efeitos negativos desses subsídios,
como mortes e doenças provocadas pela poluição, emissões de CO2 ou destruição
de florestas.
Pelos cálculos do Banco Mundial, os
subsídios diretos ao setor agrícola chegam a US$ 635 bilhões anuais. Países
ricos gastam mais que os pobres não apenas em termos absolutos, mas também como
proporção da produção agrícola. Entre os que mais gastam estão União Europeia,
Estados Unidos e Japão.
Os reflexos nefastos dessa fartura de
dinheiro público costumam ser imediatos na natureza. Seis de cada dez dólares
aplicados como subsídio na produção agrícola provocam consequências
prejudiciais ao meio ambiente. Embora a conexão entre o dinheiro e destruição
de florestas mude dependendo da região e do produto, 2,2 milhões de hectares
são perdidos por ano. A ajuda governamental a produtores também eleva o uso de
fertilizantes, comprometendo rios e fontes de água.
O setor de energia é um caso à parte. Somente
em 2021, os subsídios para baixar artificialmente o preço de petróleo, gás e
carvão somaram US$ 577 bilhões em todo o mundo, de acordo com estimativa do
Fundo Monetário Internacional (FMI). Aproximadamente 75% do total destinado ao
setor de energia é capturado por produtores e consumidores de combustíveis
fósseis. Contra o que muitos podem pensar, o segmento de renováveis fica com as
sobras.
Infelizmente, no Brasil a situação tem
piorado, como demonstram as mudanças do governo na política interna da
Petrobras para baixar os preços de diesel e gasolina nos postos e o incentivo à
compra de carros “populares”. Em escala global, os subsídios a combustíveis
fósseis têm os piores efeitos, ao elevar a poluição e os problemas de saúde
decorrentes. A alta concentração de partículas no ar é uma das principais
causas de 7 milhões de mortes prematuras a cada 12 meses. Os custos anuais dos
efeitos nocivos — que os economistas chamam de externalidades negativas — são
estimados em US$ 5,4 trilhões.
O próprio Banco Mundial reconhece que remover os subsídios de quem coopera com o aquecimento global é uma tarefa hercúlea, tantos são os grupos de interesse beneficiados. Para ter chance de sucesso, a mudança precisará atacar em várias frentes. Esclarecer a opinião pública, mitigar choques com proteção social e planejar períodos de transição é imprescindível. Mas, sem os governos tomarem a decisão política de comprar essa briga, tudo ficará como antes.
Cárcere medieval
Folha de S. Paulo
Investigação no Ceará revela dinâmica de
tortura contra presos em cinco estados
Parece não haver limites para o desrespeito
aos direitos humanos no sistema penitenciário brasileiro.
Em setembro de 2022, autoridades cearenses
constataram que 72 presos haviam sido espancados por agentes de segurança no
presídio de Itaitinga, em Fortaleza. Ainda mais grave, em parte dos
casos, a fratura dos
dedos das mãos foi utilizada como um método de tortura, revelando
uma rotina de violência contra condenados que estão sob custódia do poder
público.
A prática, chamada de
"procedimento" pelos agentes, é recorrente nas prisões do estado,
conforme a Folha noticiou. O preso é colocado no chão, com os dedos
cruzados em cima da cabeça enquanto funcionários batem com um cassetete nas
mãos. Lesões graves como quebra de ossos podem ocorrer, dependendo do impacto.
O crime não é exclusivo do Ceará. Segundo
peritos do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, a técnica já
foi documentada em ao menos outros quatro estados —Rio Grande do Norte,
Roraima, Amazonas e Pará.
Todos eles têm em comum a presença da Força
Tarefa de Intervenção Penitenciária, espécie de Força Nacional para resolução
de rebeliões e reestabelecimento de disciplina em presídios.
Importante notar, também, como essa forma
de tortura migrou de um estado para outro. De acordo com as investigações, um
mesmo secretário de Estado teria estimulado o "procedimento" no Rio
Grande do Norte e no Ceará.
Levantamento feito pelo jornal O Globo com
dados de 2017 a 2022 mostrou que o Ceará é o estado com o maior número de casos
de policiais réus por tortura (37 entre 194 no país) —à frente dos mais
populosos Rio de Janeiro e São Paulo.
É urgente fortalecer as visitas em
presídios por órgãos independentes como o Mecanismo Nacional, o Conselho
Nacional de Justiça (CNJ) e o Ministério Público. Tampouco devem-se considerar
como banais acusações de maus tratos contra pessoas sob custódia e, portanto,
sob responsabilidade do Estado.
Punir criminosos que cometem tortura e
estabelecer mecanismos de prevenção é vital para que atos medievais não sejam
considerados procedimentos corriqueiros no sistema penitenciário.
Cumpre, ademais, reduzir a superlotação dos
presídios, que hoje fornece mão de obra para facções criminosas. Rever a
legislação sobre drogas, que hoje leva ao encarceramento de milhares
de pequenos usuários, e dar ênfase a penas alternativas para criminosos menos
perigosos são providências a serem tomadas a longo prazo.
Respiro global
Folha de S. Paulo
Estabilidade dos juros nos EUA mostra
quadro favorável à economia brasileira
As últimas semanas foram positivas para a
economia mundial. Evidências de robustez da atividade nos Estados Unidos e na
Europa, além da redução de riscos inflacionários, sugerem que os bancos
centrais podem ser pacientes, mesmo que ainda não deem por encerrado o ciclo de
alta de juros.
É o caso do Fed, a autoridade monetária
americana, que decidiu por
manter estável, entre 5% e 5,25% ao ano, o custo do dinheiro no
maior centro financeiro mundial. Nas projeções da instituição, haverá
desaceleração da economia até o próximo ano, mas sem recessão e com aumento do
desemprego menor do que o antes esperado.
Não deixa de ser um sinal de alento que a
economia esteja até aqui conseguindo absorver o necessário aperto da política
monetária sem uma contração iminente, algo que era considerado improvável por
boa parte dos analistas.
O Fed ainda projeta que a inflação deva
permanecer acima de sua meta anual de 2% até 2025, embora num processo de
convergência a partir do patamar atual de 4,4% nos 12 meses até abril.
Mesmo assim, os riscos de descontrole da
inflação diminuíram diante da reversão dos choques da pandemia nas cadeias
produtivas, da queda dos preços das matérias-primas e da clara desaceleração
dos salários —o elemento mais importante para determinar a inflação a longo
prazo.
Dada essa combinação, o comedimento do Fed
faz sentido. Entretanto houve a indicação de que até duas novas altas de 0,25
ponto percentual poderão ocorrer no segundo semestre, a depender do andamento
da alta dos preços.
Já é possível antever que o ciclo de subida
de juros no mundo desenvolvido está próximo do fim, o que traz um alento para a
economia global, como se observa pelo aumento de fluxo de capitais rumo a
países emergentes.
Há riscos, por certo, em especial de novos
conflitos geopolíticos que mais uma vez elevem os preços de matérias-primas,
sobretudo energia. Outra fonte de incertezas é a China, cuja retomada
continua a decepcionar.
As projeções para o crescimento do gigante
asiático ainda estão em torno de 6% neste ano, mas os dados recentes sugerem um
viés de baixa. Nas últimas semanas houve cortes nos juros, e novos estímulos
devem ser adotados.
Para o Brasil, tal ambiente externo não é negativo. A combinação de juros estáveis, embora altos, nos EUA, queda do dólar e redução da inflação local abre um espaço para cortes de juros. Se houver novo impulso na China, melhor ainda.
Grau de investimentos, só com reformas
O Estado de S. Paulo
Governo tem oportunidade de provar que
merece a confiança que nele foi depositada, mas recuperar o grau de
investimento exigirá um pragmatismo que tem faltado a Lula neste mandato
A agência de classificação de risco S&P
Global Ratings revisou a perspectiva da nota de crédito do Brasil de estável
para positiva na última quarta-feira. Embora a nota tenha sido mantida, a
mudança de perspectiva sinaliza que a agência poderá alterar o rating do País
em até dois anos. Como não poderia deixar de ser, o anúncio foi muito celebrado
por integrantes do Executivo. Porém, diferentemente do que eles interpretaram,
o comunicado parece muito mais um voto de confiança no governo Lula do que um
aval à política econômica que vem sendo adotada até agora.
Em nota, a S&P destacou a existência de
sinais de mais estabilidade nas políticas fiscal e monetária, mas ponderou que
o déficit fiscal ainda está elevado e que a proposta de arcabouço – a que o
governo erroneamente atribuiu o anúncio da agência – não será capaz de
estabilizar ou reduzir a dívida pública. Sobre o arcabouço, a S&P afirmou
que a melhora fiscal será modesta se depender apenas de medidas para elevar a
arrecadação tributária sem mexer na rígida estrutura de gastos públicos.
Em um aceno político, o ministro da
Fazenda, Fernando Haddad, dividiu o mérito da suposta conquista com o
Legislativo e o Judiciário, que lhe deram vitórias importantes nas últimas
semanas na área fiscal. Não resistiu, no entanto, a fazer coro com o presidente
Lula e convocou o Banco Central (BC) a baixar os juros. “Está faltando o BC se
somar a esse esforço, mas eu quero crer que nós estejamos prestes a ver isso
acontecer”, disse Haddad.
Chega a ser irônico que o ministro tenha
aproveitado o momento para pressionar o BC a baixar a taxa básica de juros.
Afinal, talvez o recado mais explícito do comunicado da S&P tenha sido
precisamente na direção oposta. “Esperamos que a independência do Banco Central
para buscar sua meta de inflação continue, apesar de algumas pressões
políticas”, disse o comunicado.
Sobre as ações de governo, a S&P
alertou que a melhora na nota de classificação dependerá necessariamente de
políticas que reduzam a vulnerabilidade das finanças públicas – ou seja, da
aprovação de reformas adicionais na área administrativa e tributária. Ressaltou
ainda que uma estrutura de políticas inadequada poderá resultar na deterioração
fiscal adicional, endividamento acima do esperado e redução dos fluxos de
investimento internacionais.
Para além da autonomia do BC, a agência
elogiou políticas aprovadas no passado recente, como as reformas trabalhista e
previdenciária, e avaliou que sua reversão parece bastante improvável no
Congresso. Sem mencionar a instabilidade permanente que caracterizou o mandato
de Jair Bolsonaro, a S&P destacou a resiliência do arranjo institucional do
País – que impede a tramitação célere das reformas estruturais, mas garante o
equilíbrio e a independência entre os Poderes Executivo, Legislativo e
Judiciário. “O Brasil é uma democracia com amplos pesos e contrapesos,
incluindo um Judiciário ativo.”
A efetiva reconquista do grau de
investimento, no entanto, ainda é um feito que a maioria dos economistas
enxerga com bastante ceticismo. Ele foi dado pela primeira vez pela mesma
S&P em 2008, mas retirado pela agência em 2015, uma semana após o governo
Dilma enviar ao Congresso um Orçamento com um até então inédito déficit de R$
30,5 bilhões. Não foi apenas a projeção de um rombo que convenceu a agência a
rebaixar o País, mas a certeza de que essa trajetória de deterioração fiscal
não seria revertida tão cedo – o que a passagem dos anos confirmou.
O governo, agora, tem uma oportunidade de
provar que merece o crédito que nele foi depositado. É verdade que o selo já
teve mais relevância no passado, mas ele ainda serve como referência para
muitos gestores de fundos sediados no exterior enviarem investimentos ao
Brasil, sobretudo na área de infraestrutura, que é tão deficiente no País.
Recuperar o grau de investimento exigirá o abandono de políticas fracassadas e
já testadas no passado, um pragmatismo que tem faltado ao presidente Lula nestes
primeiros meses de mandato.
Não se defende a democracia com censura
O Estado de S. Paulo
Ao bloquear as redes de um cidadão que
duvidou da lisura das eleições, Alexandre de Moraes atua supostamente em defesa
da democracia. Ora, não há democracia sem liberdades individuais
No dia 13 de junho, o ministro Alexandre de
Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), atuou uma vez mais supostamente em
defesa da democracia. Informado pela assessoria do Tribunal Superior Eleitoral
(TSE) sobre um vídeo do podcaster Monark com “notícias falsas sobre a
integridade das instituições eleitorais”, o relator do Inquérito 4.923
determinou de ofício o bloqueio, sob pena de multa diária de R$ 100 mil, de
todas as contas do entrevistador nas redes sociais.
No texto da decisão, nota-se a convicção do
sr. Alexandre de Moraes de que, com os bloqueios de perfis nas redes sociais,
ele está prestando um serviço ao País, tornando o regime democrático brasileiro
mais seguro. É preciso dizer: a decisão é um desserviço ao País. O STF tem o
dever de proteger a democracia tal como está prevista na Constituição.
Democracia não é uma ideia vaga a justificar as idiossincrasias de um juiz.
O relator do Inquérito 4.923, que ainda
continua em sigilo, afirma que, a depender das circunstâncias, seria possível
“o afastamento excepcional de garantias individuais”, já que elas “não podem
ser utilizadas como um verdadeiro escudo protetivo para a prática de atividades
ilícitas”. Para o sr. Alexandre de Moraes, este é o fundamento do bloqueio dos
perfis: atividades ilícitas não podem prosperar no Estado Democrático de
Direito e, tendo o ministro tomado conhecimento de atividades desse teor, ele
tem o dever de adotar medidas excepcionais, inclusive afastando garantias individuais,
como meio de interromper a prática dos ilícitos.
Na aplicação do raciocínio ao caso, existem
dois grandes problemas.
Em primeiro lugar está a própria
compreensão do que seriam “atividades ilícitas”. Em nenhum momento, o sr.
Alexandre de Moraes explica o motivo pelo qual considera ilícitas as falas de
Monark. A ilicitude não é uma ideia abstrata. É a violação, concreta e
específica, de uma norma jurídica.
Dizer, como fez Monark, que o TSE tentou
manipular as eleições por meio da censura ou que Alexandre de Moraes prendeu
pessoas sem base legal pode ser uma grande estupidez, mas não é, por si só, uma
atividade ilegal. No limite, essas falas poderiam ser compreendidas como parte
de um esquema criminoso para derrubar o regime democrático. No entanto, não
cabe presumir esse tipo de contexto. Ele precisa ser muito bem demonstrado.
Caso contrário, as garantias constitucionais nada valem. Como se sabe, é
justamente nesse tipo de presunção que regimes autoritários se baseiam para
perseguir e prender opositores.
O segundo problema refere-se ao próprio
argumento. A suposta prática de uma atividade criminosa não autoriza uma ação
estatal absolutista, indiferente às regras de competência, aos procedimentos, à
proporcionalidade e às garantias individuais. No entanto, tem sido frequente –
e não apenas da parte do sr. Alexandre de Moraes – ignorar essas exigências
constitucionais sob o pretexto de proteção do bem maior, condição de todos os
outros, que é a democracia.
Se o argumento fosse válido, não precisaria
haver regras processuais em relação a muitos crimes, como, por exemplo, os
crimes contra a vida. O bem protegido por eles é de tal ordem que deveria
autorizar o Estado a ter poderes irrestritos. No entanto, e à parte das
opiniões que cada um pode legitimamente ter sobre a gravidade das
circunstâncias vividas no País, não foi essa a opção feita pela Constituição de
1988, ao configurar e estruturar o regime democrático. O motivo dessa escolha é
simples. O argumento segundo o qual, na proteção de um bem muito importante,
não deveria haver limitações para a atuação estatal foi o que o regime militar
sempre utilizou em suas violações dos direitos humanos e das garantias
fundamentais. A Constituição instaurou uma lógica muito diferente, que é a do
Estado Democrático de Direito.
No novo regime, as palavras, especialmente
as da lei, importam. Não são manipuláveis. Não podem ser distorcidas. Quando a
Constituição proíbe a censura, não é mera sugestão, a depender das
circunstâncias. É norma que obriga a todos, sempre.
A ‘brincadeira’ de Lula
O Estado de S. Paulo
Quem dera fosse mesmo apenas piada a ideia
do presidente de prorrogar o programa do carro popular
Em uma reunião com sua equipe de ministros
que teria durado mais de nove horas, o presidente Lula da Silva disse que o
governo precisa se preparar para prorrogar o programa de descontos para a
compra de carros, caminhões e ônibus, que, na avaliação dele, tem sido um
“sucesso”. A declaração, segundo o Estadão, teria interrompido o ministro da
Fazenda, Fernando Haddad, que fazia um balanço sobre os primeiros resultados do
plano.
O tal “sucesso”, segundo Lula, está baseado
no fato de que o valor reservado para o plano tem se esvaído mais rapidamente
do que se esperava. Em uma semana, 25% do R$ 1,5 bilhão reservado para o
programa já teria sido consumido, e a continuar neste ritmo ele teria de ser
encerrado em um mês. A declaração de Lula levou o ministro da Casa Civil, Rui
Costa, a se apressar para explicar que o presidente teria dito a frase em tom
de brincadeira – muito embora ninguém na reunião tenha entendido que se tratava
de uma piada.
O histórico dos governos petistas recomenda
levar muito a sério o que Lula diz, sobretudo em se tratando do setor que o
projetou como liderança política no fim da década de 1970. Brincando podese
dizer de tudo, até mesmo a verdade, como bem definiu Freud, mas não é preciso
ir tão longe para desconfiar das reais intenções do governo a respeito da
prorrogação do plano.
O mesmo Rui Costa que contextualizou a
declaração de Lula para desfazer expectativas também considera que o programa
tem sido um “sucesso”. “Com o pequeno estímulo que o governo deu, o resultado
já foi expressivo”, afirmou o ministro. Seria prudente, no entanto, que o
governo aguardasse mais tempo antes de fazer uma avaliação concreta sobre o
programa.
Sob quais parâmetros o sucesso do programa
deveria ser avaliado? Do ponto de vista ambiental, incentivar a compra de
veículos de passeio em detrimento do transporte coletivo é um contrassenso, e a
inclusão de caminhões e ônibus não passou de um verniz para dar alguma pegada
verde ao programa. Enquanto política industrial, as inúmeras tentativas de
estimular a indústria automotiva com base em subsídios, exigências de conteúdo
local e proteção comercial fracassaram de forma retumbante. Por que
funcionariam agora?
Os limites impostos pelo Ministério da
Fazenda, como o teto para a renúncia tributária associada ao plano e a
antecipação da reoneração do diesel para cobrir o rombo a ser criado pela
medida, foram paliativos a reduzir os danos de uma política pública que até
agora não disse a que veio, mas que mesmo assim caminha a passos largos para
ser renovada.
Mas o pior é que a renovação do programa tem tudo para desfazer o clima favorável à tramitação da reforma tributária pelo Congresso, prejudicando o que talvez seja a melhor oportunidade de aprová-la em 30 anos de debate público. E tudo isso para atender a um setor que sobrevive de ajuda estatal e agradar aos consumidores de maior poder aquisitivo que já comprariam os veículos mesmo sem desconto. É essa a medida de sucesso de Lula?
Excesso de privilégios
Correio Braziliense
Projeto de lei reduz autonomia e
criminaliza instituição financeira que negar crédito à "pessoa
politicamente exposta." Proposta favorece familiares, e é vista como via
livre para os laranjas
Não será fácil garantir mais um privilégio
aos parlamentares. A tendência do Senado Federal é avaliar com calma e cautela
o projeto lei que reduz a autonomia legal e criminaliza a instituição
financeira que "negar a celebração ou a manutenção de contrato de abertura
de conta corrente, concessão de crédito ou de outro serviço, a qualquer pessoa
física ou jurídica, regularmente inscrita na Receita Federal do Brasil",
devido à condição de "pessoa politicamente exposta". Além dos
políticos com mandatos, o benefício também se estende aos familiares, aos que
exerceram cargos relevantes no país ou no exterior, os que são investigados ou
respondem a processo sem trânsito em julgado.
O PL foi aprovado, de forma relâmpago, por
252 votos a favor e 163 contra. A vitória foi dada pelos deputados do Centrão e
do PT. Em sentido contrário, por entenderem que o tema é impertinente, votaram
os representantes do PSol, do PCdoB e os bolsonaristas.
A reação dos senadores sinaliza que, na
Câmara Alta, a tramitação seguirá todos os ritos de análise de um projeto,
antes de chegar à votação pelo plenário. O presidente do Senado, Rodrigo
Pacheco, avisou que não haverá açodamento no exame do PL. O vice-presidente da
Casa, senador Veneziano Vital do Rêgo (MDB-PB), avaliou o texto como
"péssimo", garantiu que ele "não vai para a frente":
O projeto de autoria de Dani Cunha
(União-RJ), filha do ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha, é, na avaliação de
alguns analistas, uma via, sem obstáculos, ao tráfego de "laranjas",
figuras que tentam dar legalidade aos recursos desviados dos cofres públicos.
Não foram — nem têm sido incomum — políticos usarem assessores e familiares
para dar destino a grandes quantias subtraídas de programas e projetos
desenvolvidos pelo poder público, em todas as instâncias. Não faltam escândalos
nas crônicas policiais, envolvendo personalidades do universo político, em
todos os níveis — municipal, estadual e federal. No Judiciário, sobram
processos sobre casos de corrupção envolvendo parlamentares.
Mesmo com os rigores da lei, há sempre uma
brecha que facilita a prática da corrupção. Os episódios reforçam a descrença
da maioria da sociedade em relação às casas legislativas e, principalmente,
quanto ao Congresso Nacional. Não à toa, atitudes inadequadas reforçam a ideia
de que a política é algo nocivo à sociedade. Quando, na verdade, ela é
essencial ao país e à manutenção do regime democrático.
Diante de um Brasil com graves e profundos
problemas sociais e econômicos, os benefícios desfrutados pelos parlamentares,
os tornam uma casta assim como os servidores públicos, os militares e os
trabalhadores do setor privado, e os que vivem aos deus-dará. Cada parlamentar
tem um salário mensal de R$ 41.650. Agregam-se a esse valor, verba de gabinete,
auxílio-moradia, Previdência social especial, foro privilegiado, plano de
saúde, carro funcional, passagens aéreas. No total, um deputado ou um senador
custa mais de R$ 2,5 milhões por ano para o contribuinte.
O PL que cria a figura da pessoa
politicamente exposta é mais uma regalia. O que a sociedade espera de deputados
e senadores é, no mínimo, ações que dignifiquem o Poder Legislativo e a criação
de leis e de políticas que resultem em bem-estar aos que lhe confiaram um voto
de confiança. Quem conquista um cargo político está sempre exposto e deve
prestar contas dos seus atos à sociedade com transparência e sem a blindagem
para privilégios.
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