Eu & / Valor Econômico
Quatro policiais armados contra um homem
desarmado. Um supermercado contra um ladrão de doces. Devem existir outros
argumentos e técnicas e regras sociais para defender a propriedade privada
Um ato de violência policial praticada, na
Vila Mariana, em São Paulo, contra um homem preto ocorreu nestes dias por roubo
de duas caixas de bombons num supermercado. Ele foi agarrado por PMs,
derrubado, os pés e as mãos amarrados com cordas, carregado até uma maca e, depois,
colocado numa viatura.
As reações de leitores, em cartas publicadas no jornal que dera a notícia, indicam um outro componente da situação que ali se definiu e seu desdobramento. Não estando a polícia sob risco, os leitores foram unilaterais ao apoiar o ato. O direito de opinião do leitor é legítimo, mas não necessariamente lúcido. É um direito necessário para despertar sentimentos contraditórios que levem à consciência social de que nesse campo a sociedade brasileira está mal servida e atrasada.
Ninguém, em sã consciência, pode aceitar a
brutalidade dessa ação policial. Os leitores não acharam que a ação tenha sido
desproporcional, apesar de filmada. Pois um delito fora cometido contra um
estabelecimento comercial, que se baseia no direito ao lucro, mesmo que a
muitos desvalidos o lucro pareça roubo.
A Revolução Francesa teve início quando
pobres de um quarteirão de Paris entenderam que o preço do pão era amoral. O
comércio do pão como o de outros produtos indispensáveis à sobrevivência,
pensam os pobres, não é regulado pelas mesmas leis econômicas que regulam os
negócios. Mas pela precedência do direito à vida, da ideia de que ter fome não
é justo. Mesmo fome de chocolate.
É essa uma concepção de economia que o
historiador inglês Edward Thompson, num clássico da historiografia, chamou de
“economia moral”. No mundo inteiro, manifestações coletivas em reação à pobreza
e à fome têm sido tratadas como expressões dessa concepção econômica moralmente
alternativa, dada a indefinição jurídica dos “crimes” da pobreza. A do pobre é
outra a perspectiva de compreensão de atos dos desvalidos que, no Brasil,
continuam a ser definidos como crimes. Mesmo com 33 milhões de famintos. O
verdadeiro problema está em outro lugar.
Primeiro, é preciso considerar criticamente
o tamanho, a força e o poder dos envolvidos. Quatro policiais armados contra um
homem desarmado. Um supermercado contra um ladrão de doces. Devem existir
outros argumentos e técnicas e regras sociais para defender a propriedade
privada do roubo de duas caixas de bombons. Como o senso de justiça e a
consciência adequada a tal missão.
Na cultura popular, o doce não é alimento.
É coisa supérflua, sem a qual se sobrevive. Pagar com a liberdade a coisa
roubada foi mau negócio da vítima da prisão. Mas o acrescentamento do supérfluo
bombom à mísera dieta dos pobres é indicativo antropológico de que a fome do
brasileiro está mudando de característica, agregando itens que até outro dia
eram considerados mero luxo. Os pobres têm o direito ao reconhecimento da
diversificação do que é fome.
A história do Brasil é a história da fome,
que gruda no corpo, na alma e na memória. Uma historiografia verdadeiramente
científica e honesta terá que reconhecer a fome como fato histórico que
legitima e explica o que motivou a vítima dessa ocorrência.
As duas caixas de bombons roubadas, por
outro lado, não vão afetar a taxa de lucro do estabelecimento comercial, que é
parte de uma poderosa rede de supermercados. Na verdade, não foi roubo, mas
saque, embora indevido. O saque tem conotação diversa da que a polícia invocou
para justificar a violência exagerada na detenção do suspeito: insubmisso que,
portanto, fugiria.
O que é estranho, dado que os policiais
devem ser preparados para analisar com a cautela possível e equilíbrio,
psicológica e sociologicamente, as situações com que se defrontam. Para definir
no ato o tamanho e a natureza do problema e da reação. Nossos policiais, no
geral, são treinados para combater situações de perigo real e de criminalidade
de grupos organizados e preparados em ato criminoso que justifique a
desproporção do confronto.
É evidente que ninguém tem o direito de
pressupor que a polícia existe para apanhar do preso. Mas sua primeira
instância não deve ser a de bater no detido ou maltratá-lo. Até justa
caracterização em contrário ele é inocente. O preso desse caso conhece a
linguagem de um momento de prisão e avisou, vencido, que estava colaborando.
“Reagia” porque aparentemente sentia dor pela violência física do ato. Assim
interpretou o estranho que filmou a cena.
Apesar dos esforços de instituições
especializadas e de pesquisadores dedicados ao estudo e compreensão da
violência da polícia, estamos longe de um programa de ressocialização dos
policiais para que ajam como agentes da Justiça e não do justiçamento nem como
empregados do cassetete.
*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de “As duas mortes de Francisca Júlia - A Semana de Arte Moderna antes da semana” (Editora Unesp, 2022).
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