Carta Capital
O morador de rua e o trabalho escravo
retratam a destruição ideológica do conceito de pessoa
O filósofo italiano Roberto Fineschi, no
livro Capitalismo Crepusculare,
lança uma indagação crucial. “Na perspectiva do indivíduo moderno, o que se
pode fazer para ser pessoa?” Fineschi responde: “Tenha uma renda”.
Em meio à leitura das considerações
filosóficas de Fineschi, fui informado que 62 mil paulistanos sobrevivem como
moradores de rua, desprovidos de um emprego ou atividade que lhes proporcione
uma renda monetária.
Não bastassem as dores dos que vivem na rua, o Brasil registra inúmeros casos de trabalho
escravo. Entre tantos, são chocantes os episódios que registram a escravidão de
empregadas domésticas a serviço dos bacanas do pedaço.
Fineschi segue perseguindo as agruras dos homens que não conseguem alcançar a condição de pessoas no capitalismo contemporâneo: “Como se pode obter um rendimento se as condições de emprego não existem? Aqui começa estruturalmente uma dinâmica pela qual muitos indivíduos estão inclinados a ter uma renda de qualquer forma; ilegal não significa simplesmente trabalhar ilegalmente, mas também significa recomendação, ter uma pensão graças ao primo do ministro etc., etc., todas as dinâmicas que permitem que você seja gente tendo uma renda. Mas – e este é o ponto decisivo – ter este rendimento e ser pessoa viola o próprio conceito de pessoa porque não se respeita, mesmo a nível formal, a liberdade e a igualdade das outras pessoas”.
O mesmo sistema que cria a ideologia da
pessoa e da personalidade determina condições materiais sob as quais é
estruturalmente impossível que todos se tornem pessoas. Assim, a conquista da
personalidade e da pessoa não é determinada por suas condições subjetivas,
senão pelas condições sociais e materiais. Na verdade, essas determinações da
vida social cuidam de impedir que os indivíduos possam desenvolver uma
personalidade reconhecida socialmente.
Estamos diante da manifestação escancarada
do processo de abstração real que opera nos subterrâneos das sociedades
capitalistas e deforma suas superfícies. Na verdade, diz um outro filósofo, Roberto
Finelli, a abstração real não se opõe ao mundo do concreto, não o força ou o
obriga como força externa, mas o coloniza por dentro, o assimila às suas leis.
A abstração real é um vetor da realidade nem visível nem tangível: tão
invisível que, em sua construção da realidade, essa força subterrânea só pode
produzir o esvaziamento real do concreto. Isso significa que, simultaneamente,
produz e dissimula realidade.
Na interioridade da realidade, dominada
pela abstração, pelo concreto naturalizado, o ser humano se perde, pois tudo se
traduz em funções econômicas de produção e reprodução do abstrato. Mas essas
funções econômicas do abstrato têm a face do concreto, que, em vez de ser
aniquilado, como uma dialética do negativo gostaria, foi desvitalizado e
esvaziado.
O conceito de abstração real condensa com
propriedade a natureza do processo de constituição da estrutura e dinâmica do
capitalismo. Vamos considerar as cadeias globais de valor. Esse movimento
ocorre na estrita obediência às normas do capitalismo enquanto sistema, cujo
objetivo é a acumulação de riqueza abstrata, monetária. Ou seja, não se trata
de produzir e gerar abundância e conforto material para os indivíduos e suas
vidas, mas de produzir mercadorias concretas, particulares, úteis ou inúteis,
com o propósito de acumular dinheiro. Uma coisa é uma coisa, outra coisa é a
mesma coisa. O problema é que, frequentemente, a mesma coisa não é a mesma para
países, seus trabalhadores e suas empresas.
Não importa onde e o que produzir, mas
distribuir e organizar a produção nos espaços que permitam a maximização dos
resultados monetários ambicionados por grandes empresas e bancos que controlam
os instrumentos de produção e o dinheiro. As condições de vida dos habitantes
dos espaços fracionados, abandonados ou ocupados, são mera consequência, boa ou
má, dos movimentos da abstração real.
Retornamos a Roberto Fineschi: “torna-se
uma prática em massa violar a personalidade para impedi-la de ser uma pessoa. É
uma dinâmica contraditória que culmina na destruição ideológica do conceito de
pessoa ou, pelo menos, de sua universalidade. As consequências dessa práxis
social são fundamentais porque ideologicamente elas se tornam o pano de fundo
do fascismo ou de qualquer ideologia racista.”
É curioso observar como a sociedade na qual
sobrevivemos, ao transformar os indivíduos e suas subjetividades em simples
coágulos monetários, pretenda, ao mesmo tempo, colocar barreiras,
ensinando-lhes as virtudes da moderação, da frugalidade, da solidariedade. Como
podemos falar de honradez, dignidade, autorrespeito, em uma sociedade na qual
todos os critérios de sucesso ou insucesso são determinados pela quantidade de
riqueza monetária que cada um consegue acumular?
*Economista
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