O Globo
Mesmo declarado inocente por dois
diferentes júris, Kevin Spacey ainda corre risco
As duas absolvições de Kevin Spacey —
pela Justiça americana, em 2022, e agora pela britânica — poderiam significar
um antes e um depois na guerra identitária. Ao menos na fratricida dilapidação
de biografias e carreiras. Inocentado em mais de uma dezena de acusações de
crimes sexuais, inclusive estupro, a tragédia do ator se soma ao de outros
personagens, como Woody Allen e Johnny Depp,
também abatidos por denúncias jamais comprovadas.
Mesmo declarado inocente por dois diferentes júris, Kevin Spacey ainda corre o risco de seguir o script vivido por seus companheiros de profissão e infortúnio, qual seja, a Justiça terrena absolve, mas o tribunal das redes sociais, e seus lobbies respectivos, martelam uma condenação sumária. Allen, embora nem sequer haja sofrido um processo formal, pela inconsistência das provas, padece ainda em conseguir financiamento para suas obras, além de sofrer o cerceamento na exibição de seus filmes em alguns países. Depp, outro inocentado, continua marcado como alguém que agredia a ex-mulher, apesar de o júri condená-la a indenizá-lo pelas falsas acusações.
A torcida, nos três casos, era de punição
extrema aos artistas. Pode-se falar numa espécie de oximoro — a tal inocência
indesejada; quando, por um desejo sanguinário, mas infelizmente demasiado
humano, se deseja a bancarrota da celebridade, sua total aniquilação. A
condenação deles, aos olhos desta expedição punitiva, seria exemplar e didática
— mesmo os gênios merecem o castigo por seus erros. Como houve aposta no cavalo
errado, o tribunal virtual joga fora a criança junto com a bacia e a água: a
Justiça errou.
A guerra identitária pauta não apenas a
área cultural, numa autofagia dramática que mistura dinheiro e inveja, como
ajudou a eleger dois ex-presidentes. Trump e Bolsonaro — que hoje alternam seus
dias ora em depor na justiça, ora em conversar com seus advogados, ora em
voltar à delegacia — trouxeram ao palco eleitoral o embate de questões de
gênero e raça como ferramenta de clivagem e de incentivo a preconceitos.
Por oportunismo e ignorância, levaram ao
discurso político ingredientes retirados da indigência intelectual e emocional,
ainda não superados pelo lento processo civilizatório. Ao lidarem com
preconceitos de raça e gênero, os dois ex-presidentes mobilizam eleitores por
meio da irracionalidade e do despudor. Em lugar de agregar em torno de
propostas, procuram clivar a sociedade pelos preconceitos. Na História, o ódio
sempre resultou em boas votações; a construção de inimigos é uma velha
estratégia, capaz de esconder a complexidade dos problemas.
Mesmo que Bolsonaro hoje caminhe para o
ostracismo, restando a ele frequentar almoço de batizado, seu legado de atraso
ainda é um — digamos — ativo podre. Haja vista parte do eleitorado acreditar
que o Brasil se encontra à beira de se tornar um país comunista.
À esquerda, o discurso político identitário
também não deixa de mobilizar preconceitos. Permanece como a venda de terreno
na Lua, escudado em boas intenções. O ataque de Jean Wyllys sobre Eduardo Leite integra
o figurino. Bastou o governador gaúcho declarar que manteria as escolas
cívico-militares no Rio Grande do Sul para ser tachado de homofóbico pelo
ex-deputado pelo Rio de Janeiro. Lendo as entrelinhas, Wyllys o chamava de
heterossexual enrustido. Ai, ai.
Em seu estilo robocop de intervenção
política, Wyllys procurou pintar Eduardo Leite como um gay de direita. Até aí
nenhuma novidade. Leite teve a coragem de se declarar homossexual e é
notoriamente um político de centro-direita. Mas, ao juntar as duas definições,
Jean Wyllys quis negar o óbvio — não é todo gay que necessariamente é de
esquerda. Não, meu bem, isso não funciona assim. É mais fácil o vascaíno ter um
segundo time do coração do que a identificação política determinar opção
sexual. O que Jean Wyllys diria sobre J. Edgar Hoover, o ultradireitista
diretor do FBI?
A guerra identitária, ora à esquerda, ora à
direita, é um cobertor bastante curto. Eduardo Leite não se elegeu governador
gaúcho duas vezes por ser gay; ao contrário de Wyllys, cuja bandeira é a
sexualidade. Bolsonaro e Trump perderam suas reeleições — vale lembrar: mesmo
tendo a máquina na mão —, embora mantivessem na mira os ataques de gênero e de
raça — além da misoginia histérica. Também o público se viu derrotado ao não
ter as espetaculares atuações de Kevin Spacey e as deliciosas obras de Woody
Allen a cada nova estação. Choremos por isso.
O ostracismo de Bolsonaro, a derrota do
ultradireitista Vox na Espanha e a absolvição de Spacey talvez indiquem mais
poesia e menos ódio. (Ao menos por algumas horas.)
Nenhum comentário:
Postar um comentário