Governo não deve esquecer reforma administrativa
O Globo
Máquina pública cara e ineficiente exige
que Executivo, Legislativo e Judiciário encarem o desafio
Executivo e Legislativo fazem bem em tentar
aprovar ainda neste ano a reforma tributária. Fariam melhor se não esquecessem
a reforma
administrativa. Sua discussão e aprovação proporcionaria ao Brasil
avanços imensos numa prioridade sempre adiada, nem por isso menos urgente: a
gestão eficiente do Estado.
A máquina pública brasileira não é inchada por ter funcionários em excesso, mas por padecer de distorções inaceitáveis e custar caro demais. Como mostrou a primeira de uma série de reportagens do GLOBO sobre o tema, os funcionários públicos correspondem a 5,6% da população brasileira, abaixo da média da OCDE (9,5%). As despesas com funcionalismo no Brasil, porém, equivalem a 13% do PIB, mais do que em países conhecidos pela máquina perdulária, como Portugal ou França.
Até a Frente Parlamentar Mista em Defesa do
Serviço Público, porta-voz dos sindicados de servidores, reconhece que a
remuneração federal supera o padrão internacional. As distorções são tão
gritantes que a elite abonada do funcionalismo — formada por categorias como
juízes, procuradores ou militares — convive com falta mão de obra para prestar
serviços básicos de saúde ou educação. A consequência mais óbvia da
precariedade na gestão é a qualidade sofrível do serviço público.
No Brasil, segundo estudo do BID e da OCDE,
apenas 33% se dizem satisfeitos com o sistema de saúde, número que na América
Latina supera apenas Haiti e Venezuela (no México são 58% e na Argentina 55%).
Em satisfação com a escola, o Brasil, com 51%, também só está à frente de Haiti
e Venezuela. Não é só percepção. Nossos jovens vão mal em testes internacionais
de leitura, matemática e ciências.
Dois fatores pioram os serviços públicos. O
primeiro é a péssima gestão de desempenho, quando existe. Avanços na carreira
dependem de certificados e tempo de serviço, sem levar em conta competência e
performance. “Avaliações costumam ser subjetivas”, diz Renata Vilhena,
presidente do conselho do instituto República.org. Faltam critérios
mensuráveis. O segundo fator são as carreiras fragmentadas. Na esfera federal
há mais de 300 tabelas salariais. Servidores com competências e atribuições
similares têm incentivos e remunerações distintos, pois certas áreas são mais
influentes. O engessamento impede funcionários de mudar de setor para suprir
necessidades.
A PEC 32/2020, hoje no Senado, prevê
melhorias e incentiva estados e municípios a fazer suas próprias reformas
administrativas. Um dos trechos define normas gerais para gestão de pessoal,
concursos públicos e contratação de temporários. Há também a proibição de
regalias, como promoções automáticas ou férias acima de 30 dias (comuns no
Judiciário e no Ministério Público). Outros avanços dizem respeito a
desligamento por desempenho insuficiente e simplificação da demissão no estágio
probatório. Entre os problemas da PEC está o escopo estreito. As regras, se
aprovadas, só valerão para os novos concursados. Judiciário e Ministério
Público, onde estão as maiores distorções, estão de fora.
Para mudar, não é preciso esperar a PEC.
Entre outras medidas, a regulação do desligamento por desempenho ou o fim dos
supersalários dependem de projetos de lei que já deveriam ter sido aprovados.
Governos são lembrados pelas mudanças que promovem. Nenhuma seria tão profunda
no Brasil quanto a reforma administrativa.
O STF e as drogas
Folha de S. Paulo
Corte encaminha discreto avanço; ao
Congresso cabe abrir frentes mais inovadoras
Um cidadão adulto deveria ter autonomia
sobre o que consome, ainda que possa lhe causar mal. Em nome da proteção à
saúde pública, o governo tem legitimidade para informar, taxar, restringir a
propaganda e reduzir os locais em que o item danoso pode ser utilizado.
Tem sido assim com o tabaco e o álcool,
substâncias lícitas. A orientação deveria valer para outras drogas, e a
instância propícia para fazê-la avançar é o Poder Legislativo.
O Judiciário tem alcance limitado nesse
debate, como atesta o julgamento em curso no Supremo Tribunal Federal da ação
que argumenta ser inconstitucional artigo sobre porte de drogas da lei que
regula o tema.
A corte, tudo indica, caminha para
determinar uma discreta liberalização.
Já acompanhado por 4 dos 5 colegas que
também votaram, o relator, ministro Gilmar Mendes, propugnara inicialmente pela
derrubada do artigo que pune com sanções leves a aquisição, o armazenamento e o
transporte de quaisquer drogas ilícitas para uso pessoal.
No correr do julgamento, Mendes ajustou seu
entendimento para abranger apenas a maconha, harmonizando-se com o que outros
ministros defenderam. Apenas o
ministro recém-chegado Cristiano Zanin destoou da tendência geral,
para desgosto dos apoiadores do governo à esquerda.
Em conjunto, corre a discussão para
determinar a quantidade limite da erva que distingue porte, a ser
descriminalizado, de tráfico.
A lei é omissa nesse ponto, e a arbitragem,
deixada a cargo de policiais e delegados, tem ajudado a encher as
penitenciárias brasileiras com pessoas dos segmentos vulneráveis da população.
A vingar o consenso inicial no STF, o
cidadão flagrado portando para seu consumo uma quantidade de maconha que na
maior hipótese não ultrapassará 100 gramas não incorrerá em crime. Será
notificado para entrevistar-se com um juiz da vara cível, que ordenará medidas
administrativas.
Nota-se que o Supremo não produzirá nenhum
choque na realidade das drogas no Brasil, embora não deixe de ser problemático
que seu entendimento da legislação venha a diferenciar tipos de drogas e
quantidades.
De todo modo, no máximo será ajustado o
enfoque da lei para que ela não se abata
desproporcionalmente sobre quem consome uma substância bastante conhecida.
Deve caber ao Congresso Nacional, sem
dúvida, abrir as frentes mais inovadoras nesse terreno.
O país está maduro para debater
liberalizações e legalizações de drogas, em linha com o que ocorre em outras
nações democráticas do mundo —até porque a experiência acumulada com a
repressão e o encarceramento tem sido frustrante.
Projetos nesse sentido podem ser derrotados
em plenário, mas deveriam ter a chance de chegar até lá, precedidos de franco
debate.
Mínimo impensado
Folha de S. Paulo
Regra para reajustes do piso salarial
desconsidera Orçamento e política social
A reforma previdenciária aprovada em 2019
logrou estabilizar os desembolsos com benefícios do Instituto Nacional do
Seguro Social (INSS), a maior despesa do governo federal. Para o resultado
contribuiu a interrupção da política de valorização do salário mínimo —agora
retomada de modo um tanto impensado.
Nas duas primeiras décadas deste século, os
gastos do INSS saltaram de 5,5% para 8,5% do Produto Interno Bruto, devido às
transformações demográficas do país e a reajustes expressivos do mínimo, que
serve como piso para as aposentadorias e pensões por morte.
Após uma reforma politicamente árdua, que
estabeleceu idades mínimas e novos parâmetros para o cálculo dos benefícios, o
dispêndio se manteve em 8% do PIB nos últimos dois anos, o que permitiu a
redução do déficit das contas públicas com menor sacrifício de prioridades como
educação e saúde.
Os ganhos desse ajuste, no entanto,
tornaram-se mais incertos. O governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) propôs e o
Congresso Nacional acaba de aprovar a volta da
política de valorização do salário mínimo que vigorou entre 2007 e 2019 —vale
dizer, de aumentos acima da inflação correspondentes à variação anterior do
PIB.
A regra tem o mérito de respeitar alguma
previsibilidade fiscal, dado que a arrecadação do governo também tende a
acompanhar o crescimento da economia. Entretanto engessará ainda mais o
Orçamento federal, com ganhos duvidosos para a política social.
O piso salarial não tem mais a mesma
relevância de décadas atrás para o combate à pobreza —as famílias mais carentes
são atendidas pelo Bolsa Família, cujos
pagamentos recentemente se multiplicaram de 0,4% para 1,6% do PIB.
No próximo ano, o reajuste do mínimo, com
ganho real de 2,9%, terá custo estimado de R$ 18,1 bilhões para o Tesouro, aí
incluídos Previdência, seguro-desemprego, abono salarial e benefícios
assistenciais. O cumprimento da meta de eliminar o déficit federal ficará ainda
mais difícil.
Haveria alternativas a considerar, como desvincular as aposentadorias e o piso salarial. Optou-se por um mecanismo que já se mostrava inócuo ao final da experiência anterior, porque o colapso fiscal derrubara a expansão do PIB.
Preservação como motor do desenvolvimento
O Estado de S. Paulo
Escolhas entre ganhos ambientais e perdas
sociais, e vice-versa, são inevitáveis. Mas valor dessas escolhas deve ser
medido pela sua capacidade de avançar rumo a um crescimento verde
A Revolução Industrial promoveu um ciclo de
prosperidade sem precedentes. Em 200 anos, a população cresceu de 1 bilhão para
8 bilhões; a proporção de crianças que morrem antes dos 5 anos caiu de mais de
40% para menos de 4%; a expectativa de vida subiu de 30 para 70 anos; o
contingente de pessoas na extrema pobreza caiu de 90% para 9%. Mas tudo isso
foi conquistado à custa do meio ambiente.
Nas últimas gerações, a consciência dessa
fatura só fez crescer. Para muitos na geração que desponta, tornou-se
insuportável. “Estamos no começo de uma extinção em massa, e tudo sobre o que
vocês conseguem falar é dinheiro e contos de fada sobre crescimento econômico
eterno. Como ousam!”, disse a jovem Greta Thunberg à Cúpula Climática da ONU em
2019. Como ela, muitos advogam que só o decrescimento econômico evitará a
catástrofe.
Menos de um ano depois, essa estratégia
foi, inesperada e involuntariamente, tentada. A pandemia obliterou a produção e
o comércio globais. Segundo o Banco Mundial, 70 milhões de pessoas caíram na
extrema pobreza e até 7 milhões de crianças podem ter tido seu desenvolvimento
físico e cognitivo severamente lesado pela desnutrição. Os 6% de redução de
emissões de CO2 foram sem precedentes, mas longe do necessário. Para atingir as
metas do Acordo de Paris até 2030 por essa via, seria necessário o equivalente
a uma pandemia por ano, precipitando um colapso social inaudito. Outra
possibilidade seria substituir ao máximo fontes de energia fósseis por verdes.
Mas isso custaria dezenas de trilhões de dólares, depauperando todos os outros
investimentos, em educação, saúde, seguridade, etc.
A verdade é que, hoje, o máximo crescimento
é incompatível com a máxima preservação. Mas esse conflito não é absoluto, nem
inerente, nem estático. A pedra filosofal que o dissolveria é o chamado
“crescimento verde”: a desvinculação entre o crescimento e a degradação de
recursos e impactos climáticos. Algum progresso foi feito. Estima-se que nos
últimos 100 anos a quantidade de material utilizado para uma unidade de
crescimento econômico em países desenvolvidos decresceu cerca de 2/3. Em termos
absolutos, a degradação e as emissões continuaram a crescer, porque a população
cresceu e cada país produziu mais bens. Mas, em termos relativos, o dado mostra
que o crescimento não precisa intensificar a exploração.
Se um pleno crescimento verde não é
possível no atual estado da tecnologia, não significa que seja uma miragem. O
avanço na sua direção já foi feito, mas num ritmo insuficiente. É preciso
aumentá-lo. Mas isso implica escolhas, por exemplo, entre o quanto se gastará
tentando reduzir extremos climáticos e o quanto se gastará tentando minimizar
os seus impactos (por exemplo, com melhor infraestrutura e moradia); ou o
quanto se gastará no presente subsidiando energias renováveis disponíveis, mas
caras, e o quanto se gastará em pesquisa para barateálas no futuro.
Esse quadro dramático vem em mente ante o
anúncio do Ministério da Fazenda de um Plano de Transformação Ecológica.
Segundo o responsável pelo plano, Rafael Dubeux, ele tem três objetivos:
aumentar a produtividade da economia incorporando inovação e tecnologia;
produzir crescimento a partir de uma nova relação com o ambiente; e fazer com
que esse crescimento seja equitativamente distribuído a todos.
Só com os detalhes do plano será possível
estimar as incontornáveis relações de perdas e ganhos sociais e ambientais, e
em que medida ele será eficaz para reduzir esses conflitos ao longo do tempo.
Mas a promessa revela o fato positivo de que, em princípio, o Ministério da
Fazenda não está equacionando o problema com base em um antagonismo
inconciliável entre preservação ambiental e progresso social. A meta da
“sustentabilidade” parece um truísmo, e deveria ser, mas, a julgar pela
agressividade antiambiental do governo anterior em nome do crescimento ou, ao
contrário, pela agressividade antieconômica de ativistas como Greta Thunberg em
nome da preservação – e os militantes de ambos os lados são legião –, não é.
O difícil problema da manipulação religiosa
O Estado de S. Paulo
Liberdade religiosa é um enorme bem para a
sociedade. Mas não se pode ignorar que, no Brasil, vem crescendo a manipulação
religiosa, com nefastas consequências sociais e políticas
O levantamento segundo o qual 17 templos
são abertos por dia em média no País traz à tona um tema difícil de ser
tratado, mas nem por isso menos real ou menos daninho: a manipulação religiosa,
isto é, o uso da religião para fins políticos ou financeiros e a utilização da
vulnerabilidade social e econômica para dominação social e política. É uma
modalidade de coronelismo, profundamente perversa, que subjuga parcelas
crescentes da população à condição de subcidadania.
O tema exige muito cuidado. A liberdade
religiosa é um enorme bem para a sociedade, parte essencial dos direitos
fundamentais. Sem liberdade religiosa, não há cidadania. Além disso, grandes
conquistas civilizatórias foram motivadas por ideais religiosos, como o
movimento abolicionista no século 19.
O Estado laico não tem uma religião
oficial. Ele é absolutamente incompetente para fazer qualquer afirmação em
matéria teológica. Consequentemente, ele também não vê as religiões – nenhuma
delas – como inimigas. Ao contrário, reconhecendo a profunda atuação social e
humanitária de tantos credos, o poder público trabalha em parceria com muitas
igrejas em várias áreas, como saúde e educação. Mais do que uma relação de
oposição ou de conflito, o Estado Democrático de Direito – mantendo-se
rigorosamente isento nas questões especificamente religiosas – vislumbra nas
igrejas uma realidade humana e social que merece ser preservada e respeitada.
Esse é o espírito consagrado na
Constituição de 1988, que reconheceu e protegeu a liberdade religiosa. Vendo
nas diversas manifestações religiosas um importante bem social, o legislador
constituinte estabeleceu a imunidade tributária das igrejas. “É vedado à União,
aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios instituir impostos sobre
templos de qualquer culto”, diz o art. 150, VI, b. Ver no fenômeno religioso,
seja qual for sua matriz espiritual ou filosófica, uma oposição ao Estado
Democrático de Direito é manifestamente inconstitucional: é reconhecer que não
se entendeu nada sobre a liberdade própria de uma democracia. O Estado
contemporâneo não vem dizer como os cidadãos devem viver – em que devem
acreditar ou como devem amar –, e sim assegurar o espaço de liberdade para que
cada um, respeitando a lei e os direitos dos outros, viva como bem entender.
As religiões fazem parte do passado, do
presente e do futuro do País, de modo que integram nosso patrimônio histórico,
arquitetônico, social e cultural, mas todo esse panorama formidável não esconde
o fato de que, sob aparência de fenômeno religioso, há muita gente
aproveitando-se da condição de vulnerabilidade de outros cidadãos para fins
políticos e financeiros. No Brasil, fundar uma igreja virou, muitas vezes, um
lucrativo negócio. A imunidade tributária, cujo objetivo é assegurar a
liberdade religiosa da população, transformou-se em ocasião de enriquecimento.
Não é nenhum exagero: ao longo das últimas décadas, lideranças religiosas
acumularam milhões.
No ano passado, criticou-se, neste espaço,
“o uso abusivo do estatuto especial das igrejas para fazer proselitismo
eleitoral” (ver o editorial Púlpito não é palanque eleitoral, do dia
13/8/2022). Além de constituir uma manipulação de liberdades fundamentais, a
prática é vedada pela legislação eleitoral. O problema já foi tratado no
Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Segundo o ministro Edson Fachin, do Supremo
Tribunal Federal (STF), algum limite às atividades eclesiásticas é “medida
necessária à proteção da liberdade de voto e da própria legitimidade do
processo eleitoral, dada a ascendência incorporada pelos expoentes das igrejas
em setores específicos da comunidade”.
O País não pode fingir que o problema da
manipulação religiosa não existe, sob pena de permitir a exploração de cidadãos
por seus iguais. Não é fácil estabelecer critérios para a distinção entre o que
é religião e o que é instrumentalização da religião. Mas não cabe abdicar dessa
tarefa. Só será possível defender efetivamente a liberdade religiosa se,
enquanto sociedade, soubermos o que não é liberdade religiosa.
Putin consolida seu poder
O Estado de S. Paulo
Mas dizima as perspectivas de a Rússia ser
considerada confiável na comunidade internacional
Se é possível que surjam outras explicações
para a colisão do avião que matou o mercenário russo Yevgeny Prigozhin e outras
dez pessoas, o palpite de 10 em 10 analistas de política internacional é de que
foi uma execução orquestrada por Vladimir Putin. “Não tenho certeza do que
aconteceu, mas não estou surpreso”, resumiu o presidente americano, Joe Biden.
“Não há muita coisa que aconteça na Rússia sem que Putin esteja por trás.”
De fato, a morte de Prigozhin foi chocante,
mas não surpreendente. Na verdade, não foi surpreendente porque foi chocante. O
choque é cada vez mais o recurso de Putin para impor um simulacro de ordem no
caos que ele fabricou. Uma execução pública – tremendamente pública – está em
linha com seus métodos. Assim como uma retaliação teatralizada.
Prigozhin morreu exatamente dois meses após
mobilizar seus mercenários do Grupo Wagner num motim abortado por um acordo
nebuloso com Putin. Horas antes, o general Sergei Surovikin, um associado de
Prigozhin suspeito de auxiliar a rebelião, foi formalmente dispensado. No mesmo
dia em que a Ucrânia celebrava seu Dia da Independência, Putin participava de
uma homenagem a uma vitória de tropas soviéticas sobre invasores alemães na 2.ª
Guerra.
Assim como a rebelião de Prigozhin foi,
para efeitos públicos, a maior ameaça ao regime de Putin em 20 anos, sua morte
dramática foi provavelmente calculada para mostrar aos russos, especialmente a
potenciais conspiradores, que Putin usará métodos sempre mais brutais para
perseguir sua obsessão por reconstruir um império russo. Aqueles no Ocidente
que creem que Putin pode ser dissuadido por apaziguamento ou constrangimento
deveriam tomar nota dessa lição.
Com a aniquilação de Prighozin, quaisquer
expectativas de uma desestabilização a curto prazo do regime se tornaram pó.
Nos últimos dois meses, Putin suprimiu diligentemente todas as margens de
risco. As brigadas do Grupo Wagner foram removidas do front ucraniano. O
Kremlin manobrou para assumir o comando dos mercenários na África. O curso da
guerra mudará pouco. Os efeitos das sanções ocidentais se fazem sentir na
desvalorização do rublo, mas não o suficiente para desacelerar a mobilização de
recursos que têm freado a contraofensiva ucraniana. O plano de Putin ainda é
perpetuar uma guerra longa para exaurir os recursos ucranianos e desgastar o
engajamento ocidental. Em casa, mesmo que esteja arruinando as perspectivas
econômicas de uma geração, sua autoridade é incontestável.
Mas, para o mundo, a legitimidade de Putin, e junto com ela a de toda a Rússia, está sendo pulverizada. No palco mundial, a autoridade do país se sustenta sobre o terror. A Rússia é hoje um Estado mafioso, com o qual, pela força das circunstâncias – ou, no caso, pela força de suas ogivas –, se pode até negociar, mas no qual não se pode jamais confiar. A ascensão e queda – literal – de Prighozin, ele mesmo resultado desse regime delinquente, é o símbolo emblemático de um Estado em que a força da lei foi esmagada pela lei da força.
A força da cultura
Correio Braziliense
Depois de quatro anos de destruição, já é possível ver os resultados da retomada de políticas que incentivam a produção artística
A reconstrução do setor cultural brasileiro
é alvissareira. Depois de quatro anos de destruição, já é possível ver os
resultados da retomada de políticas que incentivam a produção artística. O
Brasil, com toda a sua diversidade e a sua riqueza cultural, não pode permitir,
novamente, que posições ideológicas cerceiem as manifestações que fazem do país
uma referência no mundo. A cultura é fundamental para o desenvolvimento e a
identidade de uma nação. Não pode se render aos que temem a arte como expressão
de opinião e de criatividade.
O primeiro grande passo para esse movimento
foi a recriação do Ministério da Cultura. Reduzir a pasta a uma mera secretaria
do Ministério do Turismo, como ocorreu na administração passada, foi um
retrocesso. O resultado de tamanho descaso foi a paralisia de instituições
fundamentais para a disseminação do conhecimento e a preservação do patrimônio
histórico e da identidade nacional. Serão necessários anos de trabalho para
recuperar o tempo perdido e a descontinuidade de ações estratégicas.
A estupenda Biblioteca Nacional estava
praticamente fechada. A Fundação Palmares foi completamente depredada. O
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) deixou de tocar
projetos vitais para recuperar acervos e manter viva a história do país. Essas
instituições, felizmente, como tantas outras, foram colocadas novamente de pé.
Mas, como bem ressalta a ministra da Cultura, Margareth Menezes, ainda há muito
por ser feito. O setor está longe da recuperação total.
É importante ressaltar que, além de
atitudes deliberadas para minar o segmento cultural, com perseguições
implacáveis aos artistas, houve, nos últimos anos, uma pandemia. No período de
enfrentamento ao novo coronavírus, a produção de artes quase parou. O pouco que
se fez foi graças à tecnologia, que permitiu, por exemplo, as lives que deram
um ânimo importantíssimo à população. No ano passado, já com o pico da crise
sanitária superado, mas ainda sob um ambiente hostil, o setor cultural
respondeu por 3,11% do Produto Interno Bruto (PIB). Milhares de empregos foram
resgatados e renda, distribuída.
Não há dúvidas de que, com o devido apoio,
a cultura brasileira será peça estratégica para ajudar na retomada da economia.
Teatro, cinema, shows musicais, televisão, streamings, festas populares, enfim,
todos os tipos de manifestações artísticas têm um enorme potencial para
absorver mão de obra e gerar riqueza. É fundamental, porém, que as políticas em
vigor promovam uma ampla desconcentração de projetos. Não pode mais Rio de
Janeiro e São Paulo concentrarem o grosso das verbas de incentivos, enquanto as
regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste ficam com o que sobrar.
Um dos instrumentos mais poderosos para
essa desconcentração é a Lei Roaunet, que permite às empresas que patrocinam
projetos culturais abater parte das despesas no Imposto de Renda. Essa legislação
foi amplamente atacada por inimigos da cultura, mas é uma ferramenta
espetacular para garantir que a população tenha acesso a espetáculos que, sem
apoio, dificilmente, sairiam no papel. As companhias precisam olhar mais para o
Brasil diverso ao alocarem os patrocínios.
Para medir como há interesse por cultura em
todos os cantos do país, basta ver o resultado da Lei Paulo Gustavo, que
destinará R$ 3,8 bilhões a projetos na área. Noventa e oito por cento dos
municípios brasileiros se inscreveram para receber os recursos e levar arte aos
cidadãos. Esse é o caminho para a inclusão. Todos os brasileiros, dos cantos
mais remotos do país às periferias empobrecidas, têm o direito do acesso à
cultura, que transforma vidas, resgata a autoestima, ecoa o sentimento de uma
sociedade plural e preserva a identidade nacional.
Pobre do país em que as manifestações culturais são vítimas da censura, do preconceito, da visão distorcida de governos autoritários. O Brasil flertou com o atraso, mas a resistência dos artistas e de todos aqueles comprometidos com a arte venceu. Os ventos que agora sopram são de liberdade, respeito, tolerância, diversidade e criatividade, como deve ser sempre.
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