domingo, 27 de agosto de 2023

Muniz Sodré* - Tempo de mortos-vivos

Folha de S. Paul

Qual o potencial de uma militância semimorta, porém, com suposto amplo capital político

tema dos zumbis tem sido recorrente no imaginário atual. Nada da qualidade de um clássico do horror como "A Noite dos Mortos Vivos" (1968), de Georges Romero, nem da comédia "Os Mortos não Morrem" (2019), de Jim Jarmusch, mas de uma profusão de livros, filmes e séries que deixa entrever uma estranheza de época: além do espetáculo, esse enredo espaventoso ajuda a correr voz entre atores da vida pública.

No âmbito partidário, pergunta-se qual o potencial de uma militância semimorta, porém, com suposto amplo capital político. É bem o caso do ex-mandatário: uma interdição a prazo fixo, cujos efeitos ultrapassam o formalismo jurídico do ato, considerando-se o uso da expressão "bolsonarismo" (golpismo, milicianismo) como presença moribunda de algo politicamente significativo.

Vale, assim, retomar a conhecida referência de Gramsci ao interregno social, em que "o velho morre e o novo não pode nascer" ("Cadernos do Cárcere"). O pensador italiano considera "morbosa" essa circunstância, exemplificada na separação entre massas e partidos tradicionais. Entre nós, vem ocorrendo desde o fim da ditadura civil-militar.

Fica implícita uma advertência contra a possibilidade de fenômenos monstruosos. É que o sofrimento material e psíquico dos pobres pode encontrar alguma saída expressiva nos discursos bárbaros da ultradireita. Explica-se: o pensamento progressista oriundo do racionalismo letrado não consegue comunicar-se com as formas moleculares da pobreza. Chovem no molhado os intelectuais eurocentrados que Gramsci denominou de "moscas varejeiras", por apenas sobrevoarem as aspirações das massas.

O interregno é feito de indeterminação entre vida e morte. Isso caracteriza mutações em tecnologia e em condições de existência no novo desenho social. Daí a temática obsessiva dos zumbis no imaginário, intensificada pela percepção coletiva de uma ameaça latente de vírus, fungos e microrganismos à espécie humana. Semimorto, determinado patógeno (Covid-19) é mais letal do que plenamente vivo. Igualmente, no plano político, dá-se o retorno do que se supunha morto em termos civilizatórios, exumado dos túmulos da sociedade civil pelo neobarbarismo ascendente.

Por isso, a "deszumbificação" da sociedade não é figura de linguagem, mas estratégia cultural de uma contraofensiva política.

O inelegível garante que "não está morto politicamente". Tem meia razão, pois, semimorto, logo finalmente mito, zanza como zumbi à cata de ex-votos dos romeiros de expectativas frustradas: na prática, o fluxo exorbitante de Pix dos beatos, sangue de patriotários. Mas, oficialmente, é alimentado por vampiros de fundos públicos, na falta de coisa viva por inteiro, algo penoso de se encontrar fora da febre morbosa do interregno.

*Sociólogo, professor emérito da UFRJ, autor, entre outras obras, de “Pensar Nagô” e “Fascismo da Cor”

 

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