Folha de S. Paul
Qual o potencial de uma militância
semimorta, porém, com suposto amplo capital político
O tema dos
zumbis tem sido recorrente no imaginário atual. Nada da
qualidade de um clássico do horror como "A Noite dos Mortos Vivos"
(1968), de Georges Romero, nem da comédia "Os Mortos não Morrem"
(2019), de Jim Jarmusch, mas de uma profusão de livros, filmes e séries que
deixa entrever uma estranheza de época: além do espetáculo, esse enredo
espaventoso ajuda a correr voz entre atores da vida pública.
No âmbito partidário, pergunta-se qual o potencial de uma militância semimorta, porém, com suposto amplo capital político. É bem o caso do ex-mandatário: uma interdição a prazo fixo, cujos efeitos ultrapassam o formalismo jurídico do ato, considerando-se o uso da expressão "bolsonarismo" (golpismo, milicianismo) como presença moribunda de algo politicamente significativo.
Vale, assim, retomar a conhecida referência
de Gramsci ao interregno social, em que "o velho morre e o novo não pode
nascer" ("Cadernos do Cárcere"). O pensador italiano considera
"morbosa" essa circunstância, exemplificada na separação entre massas
e partidos tradicionais. Entre nós, vem ocorrendo desde o fim da ditadura
civil-militar.
Fica implícita uma advertência contra a
possibilidade de fenômenos monstruosos. É que o sofrimento material e psíquico
dos pobres pode encontrar alguma saída expressiva nos discursos bárbaros da
ultradireita. Explica-se: o pensamento progressista oriundo do racionalismo
letrado não consegue comunicar-se com as formas moleculares da pobreza. Chovem
no molhado os intelectuais eurocentrados que Gramsci denominou de "moscas
varejeiras", por apenas sobrevoarem as aspirações das massas.
O interregno é feito de indeterminação
entre vida e morte. Isso caracteriza mutações em tecnologia e em condições de
existência no novo desenho social. Daí a temática obsessiva dos zumbis no
imaginário, intensificada pela percepção coletiva de uma ameaça latente de
vírus, fungos e microrganismos à espécie humana. Semimorto, determinado
patógeno (Covid-19) é mais letal do que plenamente vivo. Igualmente, no plano
político, dá-se o retorno do que se supunha morto em termos civilizatórios,
exumado dos túmulos da sociedade civil pelo neobarbarismo ascendente.
Por isso, a "deszumbificação" da
sociedade não é figura de linguagem, mas estratégia cultural de uma
contraofensiva política.
O inelegível garante que "não está
morto politicamente". Tem meia razão, pois, semimorto, logo finalmente
mito, zanza como zumbi à cata de ex-votos dos romeiros de expectativas
frustradas: na prática, o fluxo exorbitante de Pix dos beatos, sangue de
patriotários. Mas, oficialmente, é alimentado por vampiros de fundos públicos,
na falta de coisa viva por inteiro, algo penoso de se encontrar fora da febre
morbosa do interregno.
*Sociólogo, professor emérito da UFRJ,
autor, entre outras obras, de “Pensar Nagô” e “Fascismo da Cor”
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