Sei que o tema líder de bilheteria entre os que gozam da reputação de politizados é Bolsonaro e seus podres poderes pretéritos. Nada contra essa PPP. Tudo joia! Mas teimo em falar da PPP dos palpáveis poderes políticos atuais, como fiz nos três artigos mais recentes (10.07, de 29.07 e 06.08). O Legislativo e o Executivo (nessa ordem de relevância quanto a atuais poderes de fixar pautas governamentais) tal como, a meu ver, eles estão sendo exercidos. O jogo corre solto enquanto se respira, em ambientes onde, em tese, “tudo é política”, um agosto que é um pós-outubro sem fim. O congelamento da agenda do país no tom da disputa do ano passado virou programa político. Não há, por ora, programa alternativo a este. (Quase) tudo e todos parecem aderir, exceto a solitária realidade, obstinada adversária das vontades.
Admito que a teimosia se escora numa impressão: a de que o país está sendo tratado como público-alvo de contos de carochinha. Usando essa imagem não quero ser injusto com a de folclóricas senhoras contadoras de fábulas que não incorrem no vício da mentira, mas na virtude da simpatia. Conhecedoras da psicologia infantil, seriam artistas da bondosa arte terapêutica de ministrar (ops!) leveza através da fantasia. Na política, contudo, essa arte benévola, agindo sobre as pessoas sem a mediação realista de agentes responsáveis pela vida em comunidade, não raramente provoca efeitos colaterais perversos. A dissimulação continuada do mundo real, agindo sobre cada indivíduo eleitor, vira uma mentira política, com o auxílio eficaz da propaganda e o público-alvo das bondades termina como vítima de autoengano. A responsabilidade por essa contravenção de uma intenção simpática não é das carochinhas, tampouco de mentes infantis, ou infantilizadas, cuja imaginação as fábulas políticas reforçam. Ela é de políticos adultos que permanecem silenciosos na sala, tirando partido da fantasia para fins estratégicos privados ou para praticarem a autoindulgência como discurso público. Uma abstenção da elite política que, quando se lambuza na tentação do populismo para dissimular sua condição de elite, aliena o seu mister.
Os ganhos políticos e eleitorais dessa
atitude são, no entanto, duvidosos. Fora da bolha que a política controla, a
realidade da miséria social e moral vinga-se do desprezo com que é tratada. Produz,
não uma massa de vítimas de autoengano, mas um arquipélago de seres
desenganados e aparentemente desprovidos de autoidentidade socialmente visível,
como pessoas, ou como indivíduos genéricos. Seu comportamento político é
imprevisível. Se puder ser adivinhado por alguma magia, não haverá notícia simpática
à democracia. Essa impressão pode não ter força de verdade, mas assenta no que se
pode ver a olho nu nas cidades brasileiras. As mesmas cidades onde convivem cidadãos
e onde eleitores irão às urnas daqui a um ano, em eleições vistas como
importantes pelos olhos racionais de atores e analistas da política. O que a
experiência urbana tem a dizer para tornar razoável - e não fabulosa - a razão
política, ainda mais quando outras razões atuam e atuarão organizadas nos mesmos
territórios?
Um interlocutor amigo compartilhou hoje
comigo um vídeo documentando uma cena “urbana” (aqui muitas aspas) que, pedindo
licença pelo lugar comum, ele chamou de "puro suco de Brasil". Na
manhã da última quarta-feira, no bairro de São Caetano, em Salvador, um
caminhão de carga tombou e esmagou um homem, Anderson Conceição, que morreu de
imediato, na via pública. Ato contínuo uma grande aglomeração de pessoas
precipitou-se, com disposição de saque, em direção à carga entornada. Dando
tiros para o ar, a polícia conseguiu, a princípio, armar um cordão de
isolamento. Contido o primeiro impulso, a população ficou aguardando, no
cenário da morte onde o corpo da vítima permanecia, a liberação das mercadorias,
até que o realismo da empresa dona dos produtos estragados e os apelos de
porta-vozes dos aglomerados obtiveram o aval policial para a coleta popular do
espólio. O aval soou não como sino anunciador de uma ação coletiva pacífica, mas
como campainha de ringue ou uma trombeta em antigos campos de guerra. A
disposição de saque deixou de ser ataque coletivo à carga para ter aparência de
luta interna, de todos contra todos. Cenas laterais não carecem de descrição.
Na contramão das fábulas e das boas
intenções das carochinhas, o que há para hoje em muitas partes do nosso tecido
social é essa miséria moral e material, pão dormido de cada dia, que o diabo
amassa e entrega. Um desafio diário à potência persuasiva de quem segue
difundindo contos de carochinha, como se por milagre eles pudessem criar
brilhos infantis em olhos de almas humanas adulteradas pela história contínua de
vidas reais. Que razão estratégica pode
se interpor à crueza dessa experiência?
Ainda que se consiga identificar veneno e serpente,
não há como desfritar seus ovos nem fazer com que retornem ao ninho. Inútil
argumentar contra quem está convicto de que o infortúnio decorre de ação voluntária
do “mercado”. A divergência é lateral, sobre o grau maior ou menor de condicionamento
sistêmico ou de coincidência entre intenções e resultados. Mesmo quem não vê
nos distintos fenômenos da desigualdade, da exploração, da exclusão, da pobreza
e da miséria social, marcas de vontades políticas enraizadas em interesses
econômicos determinados, pode admitir (crescentemente admite) que a instituição
chamada mercado possui dinâmica indutora, senão promotora, daqueles fenômenos.
Esse reconhecimento civiliza o “mercado” em
grau bastante para entender-se, positivamente, no plano da política, com o
governo de um presidente recém-eleito que acenou em palanque para uma
prioridade ao social. Trata-se de pura constatação de um fato, a pretensão de
explicação sociológica aqui é zero. Do mesmo modo que é zero a de explicar a
razão desse presidente - apesar de manter intacta a retórica da campanha e
eleger o presidente do BC como o agente de todas as maldades do mercado - ter
nomeado um homem de diálogo para o ministério da Fazenda e deixado prosperar um
ensaio de política fiscal fortemente adaptado às preferências de um congresso alinhado
com as razões “do mercado”.
É apenas intuitivo pensar que o acordo,
além de um mandamento das urnas legitimadoras de ambos os polos de poder, tenha
algo não claramente demonstrado de imperativo sistêmico. Isso de tal sorte que
a experiência de uma sociabilidade com crescentes traços de barbárie sugere à
razão política uma imunização passiva, o princípio do soro antiofídico. Se o
estado das “coisas como elas são” produz iniquidades sociais, o que aconteceria
se a política pudesse – como fábulas de carochinha sugerem – usar razões suas
para neutralizar ou orientar a força do mercado e derrotar os seus agentes
políticos que, supostamente, querem manter as iniquidades intactas? Na hipótese
de que tais coisas pudessem ser modificadas e deixassem de ser como são, qual
seria o seu novo modo de ser?
Todos os elementos disponíveis para análise
indicam que a esquerda que controla o Poder Executivo não sabe, pois o modo-de-ser
das coisas que propala como projeto é o antigo modo que vigorou até 2015. O
Brasil inteiro sabe, pelas experiências traumáticas vividas desde então, como
reagiram, àquele modo-de-ser, a sociedade emersa, o público de contos de
carochinha e os seres humanos desenganados. Nada, absolutamente nada, autoriza
pensar que a reação do país combalido que sobreviveu ao trauma seria mais
simpática diante do vácuo. O que hoje é iniquidade teria tudo para tornar-se puro
crime.
Para a razão prudencial, antiofídica, que
precisa socorrer a esquerda, a missão da política não é voltar a imaginar contrapontos
ao mercado, mas ferramentas que aliancem instituições de estado e de mercado.
Há espaço para acordos em torno de objetivos claros e soluções negociadas de
políticas públicas que aumentem o nível de confiança da cética sociedade
emersa, faça o público tradicional dos contos de carochinha transitar,
gradualmente, da crença ingênua para uma solidariedade também mais críticas e
os arquipélagos de desenganados sustentarem elos, hoje bastante tênues, com a
sociedade nacional.
Nenhuma dessas reflexões prudenciais está
ausente das palavras públicas do ministro da Fazenda e do núcleo principal da
área econômica do governo. Mesmo nas falas do presidente a ambiguidade notável
é entre pragmatismo econômico e populismo político e não entre conciliação e
ruptura. Ainda que para exercer o populismo político cerque-se de quadros de
mentalidade polarizadora entre elite e povo, não se pode ver em Lula uma
atitude disruptiva. A cada fricção já se espera um recuo na esquina seguinte. O
problema é que nada está ausente, mas nada também é estável. O risco é alto
pela declinante credibilidade e eficácia desse pêndulo, no jogo político
atual. O maior empoderamento do outro
polo - o Legislativo – reduz a paciência e consequentemente, a resignação dos
atores políticos em geral (inclusive na sua cozinha partidária) para com o ioiô
lulista. O mais novo teste de paciência ameaça a trajetória até aqui bem
sucedida do ministro Haddad em sua interlocução com o Congresso e as
instituições do mercado, atores que se mostram bastante articulados quanto à
pauta econômica do país.
Uma inflexão gradual pode ser observada há algumas
semanas, no discurso público de Haddad, mais ou menos a partir da votação do
arcabouço fiscal na Câmara, quando ele passou a acenar com mudança nas regras
do IR, medida passível de ser vetada pela maioria do Congresso. Deixou em
seguida “vazar” uma aparente incontinência verbal contra o acúmulo de poder
pessoal do presidente da Câmara. E agora, alterna com a ministra Simone Tebet
recados ao Congresso na linha de que cortes de despesa podem ser feitos em
áreas importantes se a Câmara não tiver a mesma boa vontade do Senado na
concessão ao Executivo de novas fontes de receita. Parecem querer produzir
pressões de ministros sobre suas bancadas, de corporações e eleitores de pautas
sociais sobre parlamentares suprapartidários.
Acontece que, no novo contexto, atores do
Legislativo têm espaço político e meios mais eficazes não só de arquitetar
chantagens sobre o Executivo como de revidar as que recebe. Os acenos de corte
de despesas sociais como resposta à não aprovação de mais impostos foram
respondidos na Câmara num tom que pode intrigar a área econômica do governo com
a Faria Lima. O argumento, ao que parece amplamente compartilhado no Congresso,
é que um governo que recebeu, antes mesmo da posse, a PEC que desejava, foi
bastante contemplado na reforma tributária e ainda obteve apoio para aprovar
mudanças nas regras do CARF não tem razões para cogitar cortes em despesas
essenciais antes de “cortar na própria carne”. Muito menos transferir o ônus
político para o setor privado por ele não aceitar os impostos. Ainda segundo
essa linha argumentativa, essa “demagogia” feriria o pacto entre Estado e
mercado. E para evitar isso, o óbvio ponto de pauta insinuado no congresso como
solução fortalecedora do pacto – uma reforma administrativa - coloca o
Executivo em polvorosa pela repercussão eleitoral negativa perante parte
importante da base eleitoral do presidente e partidos de esquerda. A depender
do andar da carruagem e caso prossiga a inflexão de Haddad a uma posição mais
dura com o “mercado”, o jeito será distribuir, com o centrão de Lira, posições
no Executivo capazes de moderar esse ânimo reformista inédito em áreas
políticas onde o patrimonialismo sempre foi bússola.
Porém, o que mais chamou a atenção, como
contraste, foi a reação de Arthur Lira à suposta incontinência verbal de Haddad
sobre o seu poder pessoal na Câmara. Acusando o soco, perdeu por algumas horas
a linha institucional em que vinha se aplicando com surpreendente disciplina e
chegou a ameaçar travar a votação do arcabouço fiscal, que retornara do Senado.
Como assim? O arcabouço era uma pauta que interessava mais ao congresso do que
ao presidente. Foi no fundo uma contrapartida em obrigações do governo à PEC da
transição, essa sim um interesse forte do Executivo. Lira reagiu emocionalmente
e isso não deve ter agradado aos novos amigos que andou fazendo no topo do PIB.
Talvez a aproximação da sua sucessão esteja fazendo-o perder a calma. A
síndrome de mandachuva nublou ali o político. Só amadores levariam a sério a
bravata fantasiada de chantagem.
Quanto ao deslizamento de Haddad, merece
ser acompanhado, noves fora Lira. Ainda não dá para saber se é um movimento voluntário,
feito a partir de um cálculo racional de quem tem um projeto eleitoral de
difícil convivência, a longo ou mesmo a médio prazo, com o que por metáfora se
chama de "Faria Lima"; ou se se trata de um enquadramento doméstico
com que teve de passar a lidar. Nessa última hipótese, tanto poderá ser
enquadramento vindo "de cima", ou efeito do ambiente controverso do seu
partido, onde parece crescer o espaço da esquerda (efeito Pochmann?) e criar aspirações
rivais à sua.
Seja como for, a inflexão torna mais tenso
o campo de manobra de Simone Tebet e pode levá-la a reboque para uma inflexão
análoga. Não deve ser coincidência que
ela, nas últimas semanas, esteja sendo mais enfática em demonstrações
ostensivas de fidelidade a Lula, mas não apenas nisso. Também na sintonia com argumentos
que geralmente emanam da esquerda. Se o PT encara, como se diz, o governo como
arena de disputa, Tebet parece estar tentando sair da linha de tiro onde fica
quem se mostra como potencial contraponto. Ela tem insistido em que a linha do
governo é "uma só", o que tangencia uma posição de aceitação de uma
hegemonia. No seu discurso na posse do novo presidente do IBGE, ela bateu essa
dupla continência, ao chefe do governo e à realidade do efeito Pochmann.
Quanto à área política do governo, é
possível que a protelação da reforma ministerial, além de desacordos internos,
reflita também um recolhimento de parte da corda excessiva que foi dada a Arthur
Lira, desde antes da posse de Lula. É o que insinua um comentarista como
Reinaldo Azevedo, hoje muito convergente com narrativas e prioridades de pauta
do governo. Ainda que seja verdade, Lula precisa sinalizar desde já aos
parlamentares qual será seu interlocutor privilegiado na Câmara no pós-Lira.
Desde a negociação da PEC da transição, é
difícil entender bem por que Lula opera sem começar a construir uma
interlocução alternativa na Câmara, não para confrontar Lira, mas para contê-lo,
pela política. Esta coluna vem manifestando esse estranhamento desde janeiro.
Repito aqui a impressão, já antes registrada, de que Lula crê que não apenas pode
superar Lira como, ao fazê-lo, recuperar o poder de agenda que o Executivo
tinha na plena vigência do presidencialismo de coalizão. Mas é difícil o congresso
lhe entregar isso. Nesse ponto específico, o problema de Lula não será só Lira.
O sucessor deste, seja quem for, não será cooperativo com o governo naqueles
antigos termos. Os novos termos já precisam ser negociados, mas não se percebe
nem fumaça disso. Pode estar em curso nos bastidores, terreno estrangeiro para
esta coluna. Já na imprensa, que mantém com os bastidores muitos vasos
comunicantes, revelou-se o contrário: que reunião discreta, fora da agenda,
ocorreu com o próprio Lira.
Esse ponto é relevante, deve ser levado a
sério, sem tom de fofoca. Da mesma maneira que o esboço de uma viagem populista
do presidente da República no trato do drama social do país poderia pôr em
perigo o tecido da nossa democracia, nas ruas e nas urnas, assim o faz também o
viés patrimonialista do campo político imantado por Arthur Lira na Câmara dos
Deputados. Nesse caso, a incerteza democrática reside nas urnas, mas não se
pode subestimar outros efeitos nefastos da hipótese de a elite política abrir novos
flancos para o retorno do protagonismo de uma lógica faxineira.
De certo modo, o país já vive um clima insensato
de Lava-Jato em feitio de revide. Todo o cuidado é pouco com essa
tentação de afogar os temas mais relevantes e urgentes das pautas política,
econômica, social e ambiental do país numa policialização catártica e estéril.
Ainda mais quando já se fixou plenamente na sociedade, tanto a convicção de que
houve uma tentativa de golpe, quanto a de que ela fracassou. É hora de a
política cuidar do país sequelado e entregar o extremismo à polícia e à Justiça.
Se alguma preocupação ou vigilância maior deve haver é para que não se cometa,
com a extrema-direita, golpista, os excessos e as arbitrariedades que
desmoralizaram a Lava-Jato.
Essa a maior razão da recusa dessa coluna em
se ocupar com podres poderes pretéritos. A limitação do poder pessoal é desafio atual e
perene, que não cessou com a derrota e a inelegibilidade de Bolsonaro, nem
cessará com sua punição. Tratar do presente tem, ademais, função preventiva de
futuros mitos.
*Cientista político e professor da UFBa
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