Não cabe a ninguém tentar reescrever história do impeachment
O Globo
Ao questionar legalidade da deposição de
Dilma, PT põe em xeque suas próprias credenciais democráticas
O presidente Luiz Inácio Lula da
Silva afirmou em visita a Luanda, em Angola, que a Justiça Federal
absolvera Dilma
Rousseff da acusação que levara a seu impeachment em 2016 —
popularizada pela expressão “pedaladas fiscais”. Por isso,
disse Lula, o Brasil devia desculpas a Dilma, “cassada de forma leviana”. Imediatamente
parlamentares petistas começaram a se mobilizar para aprovar no Congresso uma
resolução restabelecendo o mandato de Dilma.
A iniciativa não tem cabimento. O Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1) apenas arquivou uma ação por improbidade administrativa contra ela e integrantes de seu governo sem julgar o mérito, referendando decisão da primeira instância. O motivo para o arquivamento, diz a decisão, é que Dilma, pelo cargo que ocupava, deveria responder por crime de responsabilidade, não por ação de improbidade. Foi justamente por crime de responsabilidade que foi julgada no Senado. Um novo julgamento na esfera administrativa equivaleria, segundo os juízes, a reabrir uma questão jurídica sobre a qual o Senado já se pronunciara ao condená-la.
Ainda que Dilma estivesse respondendo a
processo criminal pelas pedaladas e fosse absolvida, isso em nada mudaria o
veredito do Senado. O ex-presidente Fernando Collor foi, depois do impeachment,
absolvido na esfera penal pelo Supremo. E não houve efeito nenhum na decisão do
Congresso sobre seu mandato. Isso porque os processos de impeachment têm
natureza política. O objetivo da deposição do governante não é puni-lo, mas tão
somente proteger o Estado da má gestão. Como se trata de decisão com componente
político, não cabe — nem jamais caberá — recurso sobre um impeachment. Nas
conhecidas palavras do jurista Paulo Brossard na clássica monografia sobre o
tema: “As decisões do Senado são incontrastáveis, irrecorríveis, irrevisíveis,
irrevogáveis, definitivas”.
Chamar de golpe o que aconteceu em 2016,
como fazem os petistas, despreza a legitimidade das instituições que
referendaram o impeachment de Dilma. Primeiro, do próprio Supremo Tribunal
Federal (STF), que estabeleceu o rito do processo seguido no Parlamento, onde
foi comandado pelo então presidente do STF, Ricardo Lewandowski. O rito seguiu
estritamente o que diz a Constituição. Ao falar em irregularidade, Lula dá a
impressão de que Lewandowski teria chancelado uma trama golpista, algo
impensável.
Em seguida, do Tribunal de Contas da União,
cujo trabalho de análise das contas públicas embasou as acusações contra Dilma,
de crimes fiscais previstos na Lei do Impeachment. Por fim, do próprio
Parlamento. O impeachment foi aprovado por um grupo heterogêneo de 367 dos 513
deputados (representando, apenas na votação nominal, 74,4% dos 57,4 milhões de
votos para a Câmara) e por 61 dos 81 senadores (representando 74,9% entre os
155,1 milhões de votos ao Senado). Desrespeitar a vontade de parcela tão
expressiva do Congresso equivale a desrespeitar o voto popular.
Lula e os petistas têm o direito de
acreditar que as pedaladas não eram motivo para o afastamento de Dilma, mas
isso é irrelevante. A instituição encarregada democraticamente de tomar a
decisão pensou o contrário. A insistência do PT em tentar confundir a opinião
pública chamando o impeachment de golpe só contribui para pôr em xeque seu
próprio compromisso com as regras da democracia.
Reforma ministerial peca por ignorar perfil
técnico de candidatos aos cargos
O Globo
Novo Ministério da Pequena e Média Empresa
resulta de circunstância política, e não de necessidade real
O presidente
Luiz Inácio Lula da Silva acaba de anunciar a criação de mais uma pasta, o
Ministério da Pequena e Média Empresa, a 38ª de seu governo. A
justificativa é ajudar os “empreendedores individuais”, as cooperativas, uma
“gente que precisa de crédito e oportunidade”. Num país como o Brasil, isso
justificaria criar uma secretaria no Ministério da Fazenda, com os mesmos
objetivos e atribuições. Mas a intenção é abrir mais uma vaga de ministro
para Lula entregar
a aliados no Congresso.
Falta a Lula uma base sólida no Legislativo
que lhe permita executar com tranquilidade seu programa de governo. Para tornar
a tarefa mais difícil, o Parlamento está inclinado ideologicamente à direita,
enquanto o Executivo tenta implementar um programa de esquerda. É
compreensível, na democracia representativa e no presidencialismo de coalizão,
que esse governo sem ampla bancada própria negocie para conseguir aprovar seus
projetos no Congresso. Mas o preço disso não pode ser a qualidade da
administração pública.
Tem sido recorrente no governo Lula o
expediente de oferecer ministérios a futuros aliados — neste momento,
parlamentares de Progressistas, Republicanos e União Brasil — sem a menor
preocupação com a qualificação para o cargo. O Brasil é um país com enorme
potencial turístico subaproveitado, mas esse assunto nem foi tratado na
turbulenta sucessão do Ministério do Turismo, com a troca de Daniela Carneiro
por Celso Sabino, do União.
O Progressistas indicou o deputado André
Fufuca (MA) para um ministério, que poderia ser Ciência e Tecnologia, Portos e
Aeroportos ou mesmo outro, como o recém-criado da Pequena e Média Empresa. Isso
depois de aceitar que nem Saúde nem Desenvolvimento Social (pasta do Bolsa
Família) seriam cedidos por Lula. É como se ocupar um ministério não exigisse
nenhuma competência técnica, nenhuma experiência nem familiaridade com o
assunto.
É verdade que nem toda negociação política
resulta em ministros ineficientes cujo cargo se justifica apenas pelos votos
que somam na aprovação de projetos no Congresso. Mas infelizmente é o que
costuma acontecer com frequência. Seria pouco realista acreditar num ministério
formado apenas por notáveis reconhecidos em suas respectivas áreas de atuação.
Mas a criação de mais um ministério para abrigar aliados apenas reforça o
pessimismo. O melhor seria o governo adotar critérios transparentes para a
reforma ministerial que, além de óbvias questões éticas, contemplassem o
conhecimento técnico do aspirante a ministro. Ou a administração pública
brasileira continuará à deriva, à mercê da sorte de encontrar um gestor
competente em meio ao jogo de interesses.
Já há hesitação no governo em zerar o
déficit em 2024
Valor Econômico
A desistência antes mesmo da estreia das
novas regras fiscais as desmoralizaria, criando péssimas expectativas sobre o
desempenho das contas públicas
Aumentar os gastos públicos é um dos
objetivos centrais do governo Lula. Antes de seu início, houve um acerto com os
partidos do Centrão para ampliar despesas em R$ 165,7 bilhões no orçamento de
2023. O orçamento de 2024, que será conhecido logo, estimam os analistas,
poderá permitir que as despesas cresçam perto do limite máximo de 2,5% além da
inflação, algo como R$ 180 bilhões. Há permissão no PLDO para que a inflação
cheia do ano seja incluída em 2024 - expediente cuja inclusão no novo marco
fiscal foi derrubado na votação final da Câmara, que manteve o período de
apurado de julho do ano anterior a junho do ano corrente. Há ainda a
possibilidade de que, na terceira avaliação bimestral de receitas e despesas de
2024, o governo reestime a arrecadação prevista - e os gastos.
As despesas estão crescendo, a arrecadação,
não, e as dúvidas sobre o cumprimento da meta de resultado primário - zero em
2024 -, que os analistas privados acham que não ocorrerá, invadiram também o
Planalto.
As despesas primárias para 2023 foram
estimadas, na terceira avaliação bimestral, em R$ 2,054 trilhões. O IPCA, pela
regra (12 meses encerrados em junho), foi de 3,12%, enquanto que no ano cheio
deverá fechar em 4,9% (boletim Focus). Se isto se confirmar, as receitas
líquidas, estimadas em R$ 1,9 trilhão, aumentarão aproximadamente R$ 32
bilhões, elevando consigo as despesas (limite de 70% da variação da arrecadação
líquida). O crescimento nominal das receitas líquidas de 5,4% no período de
apuração (cálculo do Barclay’s) permite elevação de gastos de 2,2% além da
inflação no orçamento de 2024. Se a inflação de 2023 for de 4,9%, os gastos
poderão crescer R$ 151 bilhões. Tudo somado, as despesas cresceriam cerca de R$
183 bilhões.
Para zerar o déficit, as receitas
precisarão avançar mais que esses R$ 183 bilhões, e, ainda, cobrir o déficit
esperado de 2023, de pelo menos R$ 100 bilhões. Todos os esforços do ministro
Fernando Haddad para elevar as receitas provavelmente não atingirão o alvo,
mesmo com a possibilidade de resultado negativo de 0,25% do PIB admitida pela
banda fiscal do novo regime. Estima-se que para isso seria necessário um
contingenciamento de despesas não obrigatórias superior a R$ 56 bilhões, uma
enormidade. Mas há no Planalto disposição contrária, de evitar constrangimentos
nos gastos e aceitar na largada déficits primários. O orçamento do ano que vem
dará a medida do empenho que o governo pretende realizar.
Alguns atos do presidente Lula são
ilustrativos da visão de mundo do governo petista. Lula quer uma “reparação” à
ex-presidente Dilma Rousseff, porque, segundo ele, as “pedaladas fiscais” que
deram origem ao crime de responsabilidade pelo qual ela sofreu impeachment não
existiram. A base para esse disparate é o arquivamento de uma ação contra Dilma
pelo TRF de Brasília, no qual os juízes argumentaram que não caberia puni-la
pela Lei de Improbidade porque ela já fora punida pelo impeachment. A exigência
de reparação feita por Lula despreza decisão do Congresso referendada pelo
Supremo Tribunal Federal que, por interpretação em espírito contrário à
Constituição, não retirou os direitos políticos da ex-presidente.
As palavras de Lula sugerem que ele passou
a borracha nas maquiagens contábeis que amorteceram um déficit crescente e
descontrolado que, somado à inapetência da então presidente em lidar com o jogo
da política, levou o Congresso a formar maioria para apeá-la do poder. Tanto o
ex-ministro Guido Mantega, agora cotado para o conselho da Vale, quanto o
secretário do Tesouro, Arno Augustin, foram impedidos por 8 anos de exercer
cargos na administração pública. Arno foi ao Congresso um dia desses discutir,
a convite, a reforma tributária e se julgou também inocentado pelo tribunal.
A interpretação do presidente Lula dá a
entender que a gastança do governo Dilma e os subterfúgios usados para
atenuá-la são instrumentos legítimos de administração das contas públicas. Ele
rejeita com isso que o desarranjo fiscal foi uma das principais causas da maior
recessão da história republicana, cujos custos ainda estão sendo pagos pela
sociedade. Lula inocenta Dilma e também as pedaladas, o que não é exatamente um
guia moral capaz de impedir que o mesmo expediente seja novamente utilizado no
futuro. Há, porém, restrições a essa volta ao passado, tanto da maioria
fisiológica do Congresso quanto dos compromissos assumidos pelo próprio
governo.
O ministro Fernando Haddad luta para poder
cumprir a promessa de zerar o déficit. Um esforço sério cria expectativas
positivas, mesmo que o objetivo seja difícil de alcançar e o resultado acabe
sendo desfavorável. A desistência antes mesmo da estreia das novas regras
fiscais, como sugerem a Lula, as desmoralizaria, criando péssimas expectativas
sobre o desempenho das contas públicas. O novo teto de gastos, criado pelo PT,
desabaria até mesmo antes do anterior, criticado por Lula, que pelo menos durou
seis anos. A leniência daria também a impressão de que o governo petista não
sabia das consequências de sua criação, ou, pior, que nunca pensou em levá-la a
sério.
38 ministérios
Folha de S. Paulo
Lula ressuscita pasta irrelevante para
satisfazer os apetites do PT e do centrão
Para surpresa de ninguém, Luiz Inácio Lula
da Silva (PT) anunciou nesta terça-feira (29) a criação de
mais um ministério, a ser dedicado às pequenas e médias empresas. A
pasta, a 38ª na atual Esplanada brasiliense, recicla uma semelhante lançada em
2013, a 39ª da correligionária Dilma Rousseff.
A medida atende às necessidades de uma
reforma ministerial destinada a ampliar a base de apoio ao governo
petista, em negociação
com os partidos do chamado centrão há pelo menos dois meses.
O aumento do número de postos de primeiro
escalão é uma tradição desde o restabelecimento da democracia. Mesmo
mandatários de retórica antipolítica como Fernando Collor e Jair Bolsonaro
(PL), que iniciaram suas gestões com a bandeira do corte de pastas, tiveram de
providenciar recuos.
O objetivo, em todos os casos, foi a
formação de coalizões de múltiplas siglas, uma exigência peculiar do
presidencialismo brasileiro e seu quadro partidário fragmentado em demasia. No
exemplo de agora, a decisão de criar um novo ministério antes de completados
oito meses de mandato é sintoma da fragilidade do governo.
Dado que Lula foi eleito por margem
minúscula de votos, e a federação PT/PC do B/PV conta com não mais de 81 das
513 cadeiras da Câmaras dos Deputados, o Palácio do Planalto é pragmático ao
trazer novas forças ao gabinete.
A tarefa seria mais simples e menos custosa
se não houvesse exorbitantes 11 ministros petistas instalados no governo
—número que carece de maior sentido político e administrativo, atendendo apenas
ao objetivo de manter o PT pacificado. Não há de ser por acaso que as
administrações da legenda são recordistas em número de pastas.
Também o ministério das empresas de menor
porte tende a ser tão irrelevante hoje como há dez anos, uma vez que a melhor
contribuição que o governo federal poderia dar aos empreendedores seria reduzir
seu déficit orçamentário e consumir uma parcela menor do crédito disponível no
país.
Lula tem o mérito de reconhecer a
legitimidade das forças representadas no Congresso e a maturidade de preferir o
entendimento ao confronto. Permanece nebulosa, porém, a agenda pretendida com a
ampliação de suas alianças.
A todo momento o mandatário parece oscilar
entre o passadismo da mitologia petista, que mantém a coesão da militância, e o
caminho ao centro democrático, que facilita a governabilidade.
A experiência indica que as coalizões mais
eficientes são formadas em torno de diretrizes acordadas de governo, em vez da
mera distribuição de cargos e verbas. Sem isso será sempre mais difícil
satisfazer os apetites do PT e do centrão.
Talentos perdidos
Folha de S. Paulo
Efeitos da pandemia vão além da saúde e
atingem o futuro dos alunos brasileiros
Estudo do Banco Mundial lançado em
fevereiro aponta que governos precisam implementar políticas públicas para
mitigar os efeitos negativos da pandemia na população mais jovem.
Isso porque a crise sanitária afetou o
Índice de Capital Humano (ICH), que estima a produtividade futura de uma
criança, considerando o que ela alcançaria com boa educação e assistência
médica.
Em entrevista publicada pela Folha neste
mês, o
economista-chefe para Desenvolvimento Humano do órgão, Norbert Schady,
disse que "choques como a pandemia podem desviar indivíduos de seu curso,
reduzindo os níveis de acumulação de capital humano".
Ou seja, com o fechamento de escolas e a
precarização da aprendizagem, aumentam os riscos de alunos dos ensinos
fundamental e médio terem menores níveis de escolaridade e renda quando
adultos.
Quanto mais jovem a criança, maior o impacto.
No Brasil, a perda calculada de aprendizado de estudantes do 5º ano foi
equivalente ao triplo ou mais da verificada entre os dos 9º e 12º anos —na
comparação com grupos anteriores nessas mesmas faixas que não foram expostos à
pandemia.
Ademais, o problema é mais grave em países
e nos estratos sociais mais pobres. Em Bangladesh, constatou-se que as perdas
no desenvolvimento cognitivo, linguístico e motor foram muito maiores em
crianças cujas mães não tinham o ensino primário completo.
Outro estudo do Banco Mundial, específico
sobre o Brasil, mostra que nosso ICH
caiu de 0,6 em 2019 para 0,54 em 2021 —mesmo índice de 2009.
Com isso, em vez de o brasileiro nascido em 2019 alcançar 60% do seu potencial
aos 18 anos, ele alcançará 54%.
O Brasil foi um dos países que amargaram
maior déficit de ensino presencial. Entre março de 2020 e março de 2022, uma
criança em idade escolar perdeu na média global 37 semanas desse tipo de
ensino. Na Europa e Ásia central, foram 14 semanas; aqui, 60.
O processo de aquisição de capital humano é
cumulativo: o que ocorre na infância gera impactos na fase adulta e nas futuras
gerações.
Quanto menor o ICH, menos conhecimento,
inovação, produtividade e renda. É preciso que o Brasil saia desse ciclo
vicioso com planos de recuperação e aceleração do aprendizado nos níveis
federal, estadual e municipal. Não se pode continuar a embotar talentos em seu
nascedouro.
Guarda municipal não é polícia
O Estado de S. Paulo
Ao ampliar escopo das guardas, STF ignora
Constituição e faz populismo barato
O Supremo Tribunal Federal (STF) cometeu
grave erro ao incluir as guardas municipais no Sistema de Segurança Pública,
equiparando-as, na prática, às polícias, como a Polícia Federal, a Polícia
Rodoviária Federal, a Polícia Ferroviária Federal, as Polícias Civis e as
Polícias Militares. A decisão foi proferida na Arguição de Descumprimento de
Preceito Fundamental (ADPF) 995, interposta pela Associação Nacional dos
Guardas Municipais (ANGM). Empatado em cinco a cinco, o julgamento estava
suspenso desde junho, aguardando a recomposição do colegiado do STF. No dia 25
de agosto, o ministro Cristiano Zanin proferiu o voto de desempate pelo
provimento da ação.
A Constituição de 1988 não ignorou as
guardas municipais. Estabeleceu que “os municípios poderão constituir guardas
municipais destinadas à proteção de seus bens, serviços e instalações, conforme
dispuser a lei”. E, coerente com a natureza e a função desses órgãos
municipais, o legislador constituinte não os mencionou no art. 144, entre os
integrantes do Sistema de Segurança Pública.
No entanto, em vez de respeitar a escolha
da Constituição, o STF preferiu fazer sua própria escolha. À revelia do que o
texto constitucional dispõe, a Corte ignorou as enormes diferenças, dos bens
jurídicos sob sua proteção ao treinamento recebido, entre as polícias e uma
guarda de natureza patrimonial.
Além de equivocada institucionalmente, a
decisão do Supremo é perigosa. A partir de agora, é quase certo que as cerca de
mil guardas municipais existentes no País, além de outras que possam ser
criadas, exercerão pressão sobre prefeitos e câmaras municipais para receber
novas atribuições e quiçá armas de fogo, que são de uso exclusivo das forças
policiais. No limite, poderá haver no Brasil nada menos que 5.568 “polícias
municipais” – armadas, sem o devido treinamento para atividades voltadas à
segurança pública e, principalmente, sem estarem sujeitas ao mesmo regime
jurídico das polícias, civis ou militares, estaduais ou federais. Uma
temeridade.
Até a conclusão do julgamento da ADPF 995,
prevalecia o entendimento do Superior Tribunal de Justiça (STJ) no sentido de
que aos guardas municipais não cabe exercer atividades típicas de policiais,
tais como patrulhamento ostensivo, revistas pessoais e apreensões. Não se
discute que os agentes municipais, à luz do artigo 301 do Código de Processo
Penal, não só podem, como devem prender indivíduos que se encontram em
flagrante delito. Mas o que a ANGM queria – e conseguiu – era algo que vai
muito além: trata-se de uma descabida e arriscada equiparação entre guardas
municipais e polícias.
Ao dizer que as guardas municipais integram
o Sistema de Segurança Pública, na prática o STF reconhece que elas têm o mesmo
status jurídico dos demais integrantes do sistema, o que não faz o menor
sentido. As polícias estão submetidas a rigoroso controle externo e
independente, enquanto as guardas municipais respondem, em geral, apenas aos
prefeitos e às suas próprias corregedorias internas.
Talvez alguém possa pensar que a decisão do
STF, ampliando o escopo constitucional das guardas municipais, contribui para a
segurança das cidades. Trata-se de grave engano. É preciso treinar e melhorar
as polícias, e não apenas dizer que outros agentes públicos, não treinados e
sem contar com o devido controle, podem atuar como policiais.
Além disso, ao ampliar além do que
estabelece a Constituição, o Supremo interferiu na distribuição de competências
entre os entes federativos. Não existe polícia municipal. Segurança pública é
competência dos Estados. Aos municípios cabe apenas instituir guarda de
natureza patrimonial.
Em vez de dar provimento à ADPF 995, o STF
deveria ter rejeitado liminarmente a ação. Afinal, tal como prevê a
Constituição, associação privada não tem legitimidade para propor esse tipo de
ação. No entanto, o Supremo preferiu fazer populismo barato, lidando de forma
não técnica com um tema sério, que tem muitas implicações sociais, políticas e
institucionais. Perde o País.
Negacionismo não tem cor ideológica
O Estado de S. Paulo
Em vez de admitir os problemas e propor
soluções efetivas, políticos de variadas correntes têm optado por negar a
realidade. É atitude irresponsável, que contraria o interesse público
A polícia da Bahia desbancou a do Rio de
Janeiro como a mais letal do País. De acordo com o Fórum Brasileiro de
Segurança Pública (FBSP), em 2022 foram registradas 1.464 mortes por
intervenção policial na Bahia. No mesmo período, no Rio, historicamente o
Estado onde os policiais – militares ou civis – mais matavam no exercício da
função até o fim do ano passado, houve 1.330 óbitos. A julgar pelo ritmo das
operações letais da polícia baiana em 2023 – 36 pessoas morreram só entre o fim
de julho e o início de agosto –, tudo indica que a disputa pela liderança nesse
ranking funesto seguirá acirrada neste ano.
Tão ou mais preocupante que a escalada da
letalidade policial na Bahia, mas não só lá, é a recalcitrância de algumas
autoridades para lidar com dados da realidade factual quando estes as
contrariam. Há poucos dias, por exemplo, o ministro da Casa Civil, Rui Costa
(PT), deu um exemplo concreto de comportamento negacionista, que em nada se
coaduna com o interesse público na medida em que bloqueia, de saída, a
formulação de políticas públicas com base em evidências.
Questionado sobre o aumento expressivo das
mortes por intervenção policial no Estado que governou por dois mandatos
(2015-2022), Rui Costa disse à Globo News não reconhecer os dados compilados
pelo FBSP, lançando dúvidas sobre a acurácia do Anuário Brasileiro de Segurança
Pública em termos pueris. “Estamos comparando melancia com abacaxi”, disse o
ministro e ex-governador baiano, sugerindo haver erro na padronização dos
indicadores de violência dos Estados pelo FBSP – respeitada entidade civil que
presta serviços relevantes ao País na área de segurança pública.
O negacionismo nunca foi bom conselheiro de
gestores públicos. Por óbvio, nenhum indivíduo ou organização que investiga a
realidade está imune a erros, mas, no caso concreto e em muitos outros, não é
disso que se trata. Na esfera pública, observa-se com frequência a simples
negação da realidade, como saída conveniente diante de fatos incômodos, que não
correspondem aos interesses de quem está no poder.
Negar as evidências é sempre um mau
caminho, com resultados danosos para a sociedade. A razão é elementar: atuando
assim, o agente público decide a partir de base factual equivocada. Além de não
resolver os problemas que afligem os cidadãos, o negacionismo não raro os
agrava.
A postura de Rui Costa, infensa à realidade
factual que lhe desagrada, não é isolada nem está circunscrita a um espectro
político-ideológico. Ainda na seara da segurança pública, o governador Tarcísio
de Freitas tem negado as evidências a respeito do número de mortos pela polícia
no curso da Operação Escudo, deflagrada na Baixada Santista após o assassinato
de um policial da Rota no Guarujá. Segundo o governador, todas as mortes até
agora decorreram de uma “reação” da polícia à violência perpetrada pelos
criminosos, ignorando, assim, os indícios de tortura e execuções sumárias.
A educação também é uma área da
administração pública que sofre sobremaneira com o negacionismo de agentes
públicos. É certeira a análise do pesquisador Mozart Ramos, destacada
recentemente nesta página, de que “o Brasil tem uma cultura muito grande do achismo”
na formulação de políticas públicas para a educação.
Outro conjunto de casos escandalosos foram
os posicionamentos e condutas do então presidente Jair Bolsonaro na pandemia,
flagrantemente contrários à realidade factual e à produção científica. Em um
sem-número de situações, Jair Bolsonaro sinalizou que, quando os fatos não se
alinhavam às suas crenças e objetivos pessoais, azar dos fatos.
Negar as evidências mina a capacidade do
Estado de atender às necessidades da sociedade de maneira responsável e eficaz.
Na democracia, a discordância não só é bem-vinda, como necessária para o
aprimoramento do debate público, mas rejeitar os fatos porque eles nos
desagradam é inviabilizar o próprio debate. Em vez de negar os problemas, o
caminho é precisamente olhar corajosamente para eles. Só assim será possível
formular soluções efetivas.
Tributar bem exige mais do que slogans
O Estado de S. Paulo
Para melhorar a progressividade dos
tributos, não basta pressão sobre o Congresso. Governo tem de trabalhar
O governo Lula editou uma medida provisória
para taxar fundos exclusivos e enviou um projeto de lei para tributar
investimentos no exterior, conhecidos como offshore. As propostas são parte do
plano do Executivo de recuperar receitas, corrigir distorções do sistema
tributário e reduzir o rombo das contas públicas. Se aprovadas, juntas, elas
podem render R$ 20 bilhões aos cofres da União no ano que vem.
Os dois casos expressam o desafio que os
governos têm para colocar em prática medidas contra as quais ninguém, em tese,
faria alguma oposição. Os fundos exclusivos se destinam a uma parcela da
população conhecida como “super-ricos”. São veículos de investimento com poucos
cotistas, volume de ativos superior a R$ 10 milhões e costumeiramente adotados
para preservar patrimônio na transmissão a herdeiros. Offshores, por sua vez,
são empresas sediadas no exterior, quase sempre paraísos fiscais, criadas por
pessoas com residência fiscal no Brasil.
Diferentemente dos fundos abertos, os
fundos exclusivos somente são tributados no momento do resgate do dinheiro e
estão livres do “come-cotas”, sistema em que há incidência periódica de
impostos sobre o rendimento. Da mesma forma, os fundos offshores se beneficiam
de uma tributação bem mais favorável que a aplicada no País. Muitas vezes, nada
pagam.
À primeira vista, as duas medidas do
governo contribuem para uma maior progressividade do sistema tributário, com
uma cobrança de impostos maior sobre a parcela da sociedade com melhor poder
aquisitivo – o que sempre é desejável, especialmente em um país com enormes
desigualdades sociais como o Brasil.
Por isso, devem ser debatidas seriamente,
sem açodamento, evitando que tenham o mesmo destino de iniciativas similares no
passado: o arquivamento pelo Legislativo.
Não é de hoje que o Executivo tenta taxar
fundos exclusivos. O governo Temer editou uma medida provisória e enviou um
projeto de lei sobre o tema: a primeira caducou e o segundo não avançou no
Congresso. No governo Bolsonaro, proposta semelhante foi aprovada na Câmara,
mas empacou no Senado.
No caso dos fundos offshore, a experiência
negativa é ainda mais recente. A tributação dos investimentos no exterior foi
parte de uma medida provisória editada há quatro meses para compensar a
atualização da tabela do Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF). Como sói
acontecer, as perdas – o reajuste da tabela do IRPF – se materializaram, mas as
receitas ficaram para as calendas.
Não basta o governo Lula levantar uma bandeira contra os “super-ricos”. É preciso cobrar-lhes efetivamente tributos. Para isso, é imprescindível enfrentar o tema com seriedade, tema este que vai muito além do necessário cumprimento das metas fiscais de 2023 e 2024. Noutras ocasiões, o Congresso deu recados claros de que não aceita ser pressionado na apreciação de assuntos de interesse do Palácio do Planalto. Convém entender esses sinais e trabalhar lado a lado com o Legislativo. Caso contrário, uma legislação tributária menos injusta será uma utopia.
Tanto lá quanto cá...
Correio Braziliense
Mais sujo do que pau de galinheiro no
terreno da Justiça, o republicano corre risco real de prisão por tentar
subverter a democracia, fraudar as eleições de 2020 e tentar se perpetuar no
poder por meio da ilegalidade
Negacionismo, aversão à imprensa, retórica
explosiva, doutrinação ideológica, descompromisso com a liturgia do cargo,
fomento ao discurso de ódio e à supremacia branca, apego às fake news, adoração
pelas armas, misoginia, formação de uma horda de seguidores com viés
messiânico, incitação a uma fobia pelo comunismo ou esquerdofobia, desprezo
pela Justiça e pela Constituição, comportamento desagregador.
Donald Trump representa tudo isso. Mais
sujo do que pau de galinheiro no terreno da Justiça, o republicano corre risco
real de prisão por tentar subverter a democracia, fraudar as eleições de 2020 e
tentar se perpetuar no poder por meio da ilegalidade. Na quinta-feira passada,
a mugshot (foto de detento) revelou a própria imagem de Trump: sobrancelhas
arqueadas, semblante sisudo, expressão insolente e desafiadora. Talvez, no
fundo, um estratagema para disfarçar o medo e a vergonha. Nunca antes um
ex-presidente dos EUA foi exposto como se fosse um presidiário.
O ano que vem será complicado para Trump,
ainda sedento pelo poder. Como se não bastassem as cenas de vandalismo
produzidas pela horda de seguidores, em 6 de janeiro de 2021, ao invadirem o
Capitólio, depredarem gabinetes, destruírem o patrimônio público... Um ano
depois, seguidores da extrema direita brasileira repetiram o ato no Congresso
Nacional e o estenderam ao Palácio do Planalto e ao Supremo Tribunal Federal.
Trumpistas e bolsonaristas venderam, aos
quatro cantos do planeta, a imagem de que os EUA e o Brasil se assemelham a
repúblicas de bananas. Em 2024, Trump será levado ao banco dos réus e submetido
ao júri por pelo menos duas vezes. Isso em meio à campanha para assegurar a
indicação de seu nome como candidato do Partido Republicano à Casa Branca. Se
eleito em novembro de 2024 e condenado pela Justiça, provocará uma crise
constitucional sem precedentes.
O magnata que se aventurou como presidente
cercou-se de gente tão avessa à democracia como ele próprio. Dezoito
ex-assessores e ex-advogados também serão julgados por embarcarem na sanha
golpista. Por fanatismo, ingenuidade, mau-caratismo ou ganância burra, lançaram
suas biografias no lixo. Pagaram caro pela adoração a um executivo imerso em
escândalos.
A política, sobretudo a posição de chefe de
Estado, deve ser permeada pelo respeito absoluto às instituições, pela
limitação bem constituída de poderes, pelo rígido e estrito cumprimento aos
preceitos constitucionais, pela garantia da liberdade de expressão — isso não
inclui disparar fake news para enganar o cidadão e beneficiar o engravatado que
teme perder as benesses de seu gabinete climatizado e seus asseclas de plantão.
A democracia se impõe com tudo o que se antagoniza ao que foi colocado no
início deste texto. Quem tenta corrompê-la deve pagar caro por isso.
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