Valor Econômico
Reindustrializar não significa repor o que
foi perdido da velha indústria, mas reinserir a industrialização como âncora da
retomada do desenvolvimento
Qual política industrial o Brasil deve
adotar para superar a estagnação das últimas décadas? Recorro à teoria e ao
caso brasileiro. O desenvolvimento exitoso ocorre por meio da industrialização.
Não há país desenvolvido que tenha prescindido de setor industrial
diversificado. O setor manufatureiro opera como motor do desenvolvimento,
porque é locus principal da acumulação de capital, da geração e difusão de
progresso tecnológico e, devido ao efeito cumulativo deste último sobre a
intensidade de capital e o conhecimento, proporciona maiores economias de
escala e sustenta avanço da produtividade.
As tecnologias radicais em curso (robótica, inteligência artificial etc) sinalizam total integração da manufatura com o setor de serviços, mas é equivocado pressupor que a indústria deixará de comandar o crescimento econômico, já que parte expressiva dos serviços high-tech está associada ao processo fabril.
Desde 2000, a desindustrialização prematura
tem sido objeto de debate acadêmico, porque a queda acentuada do valor
adicionado manufatureiro no PIB, antes de o país alcançar elevada renda per
capita, faz com que a economia perca tração estrutural para sustentar o
desenvolvimento econômico e deflagre longo processo de estagnação. O Brasil
experimentou a mais acelerada desindustrialização prematura no mundo
capitalista. Entre 1980 e 2020, a participação do valor adicionado no PIB
recuou de 21,1% para 11,9%. Embora os países exitosos não registrem
desindustrialização nos segmentos intensivos em conhecimento, no Brasil a
desindustrialização prematura atinge não apenas subsetores de média (automobilística)
e alta (máquinas & equipamentos e química), mas também de baixa tecnologia
(têxteis, vestuário, metalurgia básica e alimentos & bebidas).
Faz sentido, então, incluir a
reindustrialização como missão prioritária da política industrial brasileira
nesta década. Entretanto, reindustrializar não significa repor o que foi
perdido da velha indústria, mas reinserir a industrialização como âncora da retomada
do desenvolvimento brasileiro. Em trabalho recente, Paulo Morceiro e eu1
propusemos uma política industrial que integrasse objetivos econômicos, sociais
e ambientais, focada nas seguintes missões prioritárias: i) reindustrializar,
promover inovações e se engajar na economia digital; ii) ampliar e/ou
modernizar a infraestrutura; iii) fomentar empregos formais; iv) reduzir a
desigualdade social e regional; e v) substituir tecnologias de alta por baixa
emissão de CO2.
A transição para tecnologias verdes deve
ser a base principal para a alavancagem tecnológica, mas todas as missões se
entrelaçam: a incorporação de tecnologias limpas, por exemplo, requererá
inovações, mas também ampliará oportunidades para promover a reindustrialização
em subsetores de maior sofisticação tecnológica, fomentar empregos formais e
reduzir a desigualdade social e regional.
A política industrial que propomos é
ambiciosa e se assemelha a um plano nacional de desenvolvimento. A principal
restrição à sua efetiva adoção não é de ordem financeira, mas política. Depende
da articulação do governo com a sociedade, representada pelo Congresso
Nacional. Começo pela missão de ampliar e modernizar a infraestrutura, que se
entrelaça com todas as demais. Sem um sistema eficiente de ferrovias, rodovias
e outros modais de transporte, será impossível atrair empresas dispostas a
industrializar regiões atrasadas ou fomentar inovações nas áreas que abarcam
subsetores intensivos em ciência e conhecimento. Investimentos em
infraestrutura física, social e digital exercem expressivos efeitos
multiplicadores de produção, renda e emprego em outros setores, além de
transbordamentos tecnológicos para a economia, através das atividades de
pesquisa e desenvolvimento.
O governo deve fazer escolhas estratégicas,
priorizando segmentos em que o Brasil tenha maior potencial de alcançar
vantagens comparativas dinâmicas. Os candidatos óbvios são:
Energia eólica e solar, em virtude da
abundância exuberante dos recursos naturais básicos e dos vínculos para frente
(geração de renda e demanda) e para trás (demanda de componentes) com outros
setores;
Complexo industrial da saúde, que,
alavancado pela demanda do SUS, tem enorme potencial de viabilizar escalas
competitivas e fomentar a produção de equipamentos médico-hospitalares e
produtos farmacêuticos;
Reindustrialização da indústria química,
especialmente fertilizantes e pesticidas, já que a expressiva demanda de
insumos por parte do agronegócio não justifica os déficits comerciais
existentes atualmente;
Nichos da indústria aeroespacial, que, em
face da demanda do Ministério da Defesa, têm capacidade potencial de produção e
desenvolvimento tecnológico de aviões e parte dos equipamentos e componentes;
Industrialização no Norte e Nordeste, com
foco nos setores intensivos em trabalho, como vestuário, calçados e alimentos
processados;
Serviços da indústria de informação e
comunicação, notadamente softwares.
No período da substituição de importações
(1950-1990), os estímulos combinavam barreiras à importação e subsídios
diversos. Nossa proposta, porém, privilegia quatro instrumentos: i) compras
governamentais; ii) conteúdo local; iii) créditos dos bancos de
desenvolvimento, inclusive subsídios, em alguns casos; e iv) promoção de
exportações de manufaturados. Além disso, o governo deve promover uma reforma
das alíquotas de importação no Brasil. Não se recomenda qualquer liberalização
comercial radical, mas a reestruturação do sistema de tarifas aduaneiras de
acordo com o princípio da escalada tarifária: alíquotas de importação menores
(e, se for o caso, zero) para bens de capital e bens intermediários e alíquotas
maiores para bens finais. Nos segmentos prioritários, as alíquotas devem ser
maiores, mas no nível estritamente necessário para equalizar preços domésticos
a internacionais, conferindo proteção temporária às empresas brasileiras para
que consigam percorrer a curva de aprendizado tecnológico.
O risco de fracasso da política industrial será minimizado se o governo brasileiro não repetir erros pregressos. Dois requisitos são essenciais para o sucesso das missões propostas: i) governança e cooperação entre instituições públicas e privadas, quer na ampliação dos canais de informação, quer na cobrança de resultados efetivos por parte das instituições públicas de fomento; e ii) harmonização da política industrial com as demais políticas públicas, inclusive as encarregadas da política macroeconômica, incluindo o Banco Central do Brasil. Afinal, foram as taxas de juros reais extremamente elevadas e a sobrevalorização do real brasileiro os principais fatores explicativos do fracasso das políticas industriais adotadas entre 2004 e 2014. Assim, o sucesso da política industrial proposta depende, fundamentalmente, das políticas macroeconômicas (monetária, fiscal e cambial) que vigorarão nos próximos anos.
*André Nassif é professor do
Departamento de Economia da Universidade Federal Fluminense (UFF) e autor de
“Desenvolvimento e Estagnação: o Debate entre Desenvolvimentistas e Liberais
Neoclássicos”, Editora Contracorrente, 2023.
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