Contestar números da violência não tem cabimento
O Globo
‘Padronização’ aventada pelo ministro Rui
Costa não passa de maquiagem para evitar embaraço a governo do PT
Não faz sentido a ideia de “padronizar” as
estatísticas de violência no
país, aventada pelo ministro da Casa Civil, Rui Costa, em entrevista à
GloboNews. Costa, o ministro da Justiça, Flávio Dino, e o presidente Luiz
Inácio Lula da Silva se reuniram na semana passada no Palácio da Alvorada para
tratar do assunto. A intenção declarada do governo é criar um “marco legal”
para o setor e fixar um “parâmetro único” para os dados.
Não se sabe exatamente o que o governo pretende com a tal padronização. Há um evidente embaraço de Costa com os números da Bahia, estado que governou e está sob gestão do PT desde 2007. O anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), divulgado no mês passado, mostrou que, dos 50 municípios mais violentos do Brasil com mais de 100 mil habitantes, 12 são baianos.
Numa questão especialmente incômoda para
governos estaduais, a Bahia é o estado com a segunda pior taxa de mortes
violentas intencionais entre as 27 unidades da Federação (47,1 por 100 mil
habitantes), atrás somente do Amapá (50,6). Tem também a segunda polícia mais
letal, com 10,4 mortes de civis por 100 mil, depois também do Amapá (16,6). O
anuário mostra piora nos indicadores baianos entre 2021 e 2022. A resposta de
Costa foi negar a realidade: “Não reconheço, me desculpe, nenhum parâmetro,
nenhuma comparação de ONGs que fazem publicações sobre questões de segurança.
Estamos comparando coisas diferentes”.
Ainda que se possa discutir metodologia,
está claro que o problema da violência no Brasil não é a estatística. O Monitor
da Violência, acompanhamento do portal g1, tem corroborado as informações do
FBSP. Os últimos dados apontam queda de 3,4% nas mortes violentas no Brasil em
um ano, com alta no Sudeste, em particular no Rio de Janeiro (onde cresceram
17,3%). Na Bahia de Costa, o ano registra queda de 4,4% nos assassinatos. Por
isso não se entende a artilharia do governo contra os dados do FBSP. A fonte
das informações são as secretarias de Segurança, que registram os crimes. Não
há contabilidade criativa capaz de esconder homicídios.
Há décadas a segurança pública ocupa lugar
de destaque entre os problemas que mais afligem os brasileiros, desafiando
governos de diferentes tendências ideológicas. Tanto os estados quanto o governo
federal têm fracassado em suas políticas de contenção da violência. De acordo
com o FBSP, entre 2011 e 2022, o número de assassinatos no país se manteve
praticamente estável, em torno de 47 mil, com pequenas variações para cima ou
para baixo ao longo da década. Estudos mostram que alívios pontuais estão mais
ligados à trégua entre as quadrilhas do que propriamente ao sucesso de
políticas públicas.
Sabe-se que o combate à violência é tarefa
complexa e dispendiosa. Organizações criminosas controlam vastas extensões do
território nacional, impondo suas leis perversas. No ano passado, a cada hora
cinco brasileiros foram assassinados. O governo federal pode fazer muito, com
os estados, para melhorar esse cenário tenebroso. Querer maquiar números para
que eles não atinjam aliados políticos certamente não é o melhor caminho.
Suspeito de ser maior desmatador ilustra
descalabro sob Bolsonaro
O Globo
Pecuarista é acusado de destruir área
florestal equivalente a 28 campos de futebol por dia durante três meses
O descalabro a que chegou a devastação em
escala industrial da Floresta Amazônica no governo Jair Bolsonaro pode ser
compreendido por meio da história do pecuarista Bruno Heller, suspeito de ser o
maior devastador da Amazônia,
preso no início do mês pela Polícia
Federal. Ele é acusado de ter desmatado 2.710 hectares, o
equivalente à área de 28 campos de futebol por dia, em apenas três meses, entre
15 de março e 17 de junho de 2021, aproveitando o apagão por que passaram os
órgãos de fiscalização Ibama e ICMBio no governo passado.
A certeza da impunidade levou Heller a
mobilizar dinheiro, máquinas e pelos menos 60 homens para alcançar tamanha
“produtividade”, segundo relatório da PF. Calcula-se que apenas para restaurar
a área devastada serão necessários R$ 116 milhões, conta que as autoridades
precisarão encaminhar ao investigado se a Justiça condená-lo. Heller é um
daqueles casos exemplares que têm de ser tratados pela polícia e pela Justiça
com o merecido rigor para desestimular o desmatamento.
Depois de ser preso por guardar numa de
suas fazendas uma espingarda sem registro e 350 gramas de ouro sem certificado
de origem — desmatamento e garimpo são sócios na Amazônia —, Heller foi solto
pela Justiça de Itaituba (PA). Sua prisão temporária foi solicitada, mas
rejeitada pelo juiz federal Maurício José de Mendonça Júnior. O magistrado
argumentou que os mandados de busca expedidos eram suficientes e que não havia
risco de ele destruir provas.
Não se está diante de um desmatador
qualquer. Levantamento feito pelo Ibama a pedido do GLOBO constatou que as
multas aplicadas contra Heller entre 2006 e 2021 somaram R$ 12 milhões. A
maioria por “destruição ou danificação de florestas nativas ou plantadas”. A PF
constatou que Heller procura se livrar de novas autuações inscrevendo no Cadastro
Ambiental Rural (CAR) áreas contíguas às suas em nome de laranjas, alguns
parentes próximos, em geral sem patrimônio.
O desmatamento recorde em três meses
ocorreu na fazenda Serra Verde, registrada em nome de um familiar que,
encontrado pela PF, disse ter comprado a propriedade de Heller, não apresentou
recibo da operação, não sabia o nome de donos de fazendas vizinhas, nem
conseguiu estimar quanto pagara pelo desmatamento aos 60 empregados.
O modelo da devastação é conhecido:
substituir a floresta por pastos, preparados para receber o gado com queimadas
que fogem do controle. E, no desmatamento, reservar as madeiras nobres para
contrabando. A criação tem baixa produtividade, mas, como a terra é grilada e a
madeira é vendida a contrabandistas, o desmatador sai no lucro. Foi dessa forma
que Heller, segundo relatório do Incra, se apossou ao longo de dez anos de 21
mil hectares às margens da BR-163, entre Santarém (PA) e Cuiabá (MT). Cabe ao
Judiciário agir, com a pressa e o rigor que o caso exige.
Momento de decisões incômodas para os Brics
Valor Econômico
Aceitar um Brics ampliado e alinhado à
China criaria arestas com EUA e Europa, dois dos maiores mercados mundiais e
vanguardas na criação de novas tecnologias
O mundo mudou muito desde 2009, quando o
grupo dos Brics - então Brasil, Índia, Rússia e China - se reuniu pela primeira
vez. Ao iniciarem sua 15ª Cúpula em Johanesburgo, na África do Sul (que passou
a integrá-lo em 2011), os cinco países terão o desafio de definir rumos como
nunca fizeram antes. Estados Unidos e a China passaram a travar uma disputa
econômica, militar e geopolítica que abre nova era de rivalidades globais. A
Rússia iniciou uma guerra de conquista na Ucrânia - a primeira em solo europeu
desde a Segunda Guerra Mundial. Três países do bloco, que não fazem parte do Conselho
de Segurança da ONU, estão sob pressão para apoiarem as demandas da China, da
Rússia, de ambas ou nenhuma. Alienar a independência política aliando-se a
Pequim e Moscou, que não respeitam os princípios democráticos, pode lhes trazer
consequências adversas, em troca de ganhos incertos ou inexistentes.
Os Brics foram uma criação midiática que,
no contexto da época - quando o então economista-chefe do Goldman Sachs, Jim
O’Neill, em 2001, criou o acrônimo -, sugeria afinidades econômicas e pouco
mais que isso. Os quatro países que formaram o bloco cresciam muito,
especialmente a China, e tinham o potencial para atingir em não muito tempo
poderio semelhante ao do G-6 (os sete países mais ricos menos o Canadá). Além
disso, neles residiam mais da metade dos habitantes do planeta.
As promessas de sucesso no futuro não se
concretizaram, exceto para China e Índia. O’Neill, o criador, está hoje
decepcionado com a criatura. “Os Brics nunca realizaram nada desde que
começaram a se reunir”, disse, e, fora “um simbolismo superficial, em termos de
conteúdo, foi decepcionante” (entrevista ao Valor, 3 de agosto).
A união dos Brics teve, porém, sucesso relativo ao ampliar o poder de influência diplomática dos países emergentes, então disperso, para que os países ricos reconhecessem, de forma incompleta, que deveriam ceder espaços a esses países proporcionais ao êxito econômico que obtinham. Esse ainda é um objetivo do Brasil, como deixou claro o presidente Lula ontem, em Joanesburgo: a reunião de cúpula poderá influenciar outras, como a da ONU, do G-20 e da COP-28.
Politicamente, os países dos Brics tinham
pouca coisa em comum. A reivindicação do Brasil por lugar permanente no
Conselho de Segurança da ONU foi recebida com complacência por China e Rússia,
mas nunca foi de seus interesses. Como têm direito de veto nas decisões do
organismo, não há motivos para que cedam espaço a outros países.
As contradições dos Brics se mostram agora
mais agudas. A China almeja ampliar o grupo a outros países, o que lhe seria
útil como anteparo à ofensiva americana. Da mesma forma, a Rússia se sente mais
segura com Pequim a seu lado e mais países dispostos a discordar das sanções
aplicadas por EUA e União Europeia pela invasão da Ucrânia. A Índia corre em
faixa independente, a meio caminho entre a animosidade com os chineses e a
amizade com Moscou, seu maior fornecedor de armas. Também independente, o
Brasil garante no bloco um acesso privilegiado a seu maior parceiro comercial,
a China, e um apoio a teses de união do Sul global contra os países ricos.
Por estímulo chinês, há 23 países interessados
em ingressar no Brics, da endividada Argentina às ditaduras de Cuba, Egito,
Venezuela e Irã e aos endinheirados Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos. O
inchaço dos Brics lembra a união sessentista do grupo dos não alinhados, o
G-77, na época linha auxiliar das políticas da União Soviética. O Brasil não é
a favor da ampliação dos Brics, mas o presidente Lula encampou a ideia,
apresentando seus candidatos a sócios, Argentina, Cuba, Venezuela e Arábia
Saudita. A Índia claudica entre manter o status quo e aumentar o clube.
Para isso serão necessárias definições
delicadas da cúpula do bloco. Que elas são inescapáveis revelaram as discussões
preliminares sobre critérios para novas admissões, como membro pleno ou
parceiros. O próprio Brics não tem documento constitutivo nem princípios
estabelecidos, funcionando à base dos desejos políticos, que podem se tornar
insubstanciais em um mundo multipolar. A dispersão de propostas indica o
tamanho da dificuldade.
Uma delas é a de que, para aderir, novos
membros sejam contrários à aplicação de sanções que não tenham a concordância
da ONU - uma regra viciada, já que China e Rússia impedem qualquer decisão que
lhes desfavoreça. O Brasil também quer que os candidatos a membros cumpram
critérios como a aplicação de recursos no banco dos Brics (Globo, 18 de
agosto), uma exigência que praticamente excluiria Argentina, Venezuela e Cuba.
Outra proposta a ser discutida na cúpula é a da criação de uma moeda do bloco,
que não o renminbi chinês, inviável em todos os sentidos.
A ampliação do Brics diluiria o poder do Brasil. Aceitar um Brics ampliado e alinhado à China criaria arestas com EUA e Europa, dois dos maiores mercados mundiais e vanguardas na criação de novas tecnologias. Manter o status quo, o ideal para o Brasil, tornou-se igualmente um problema, diante das desavenças globais com a China e seu inconveniente aliado de ocasião, a Rússia.
Ansiosas e ansiosos
Folha de S. Paulo
Transtorno é mais comum entre mulheres, diz
Datafolha, o que segue padrão global
Pesquisa do
Datafolha aponta que mulheres e jovens se declaram mais
afetados por transtornos de ansiedade do que outros estratos da população. Ao
menos no que diz respeito às brasileiras, repete-se padrão verificado em escala
global.
Mapeamento da Organização Mundial da Saúde
(OMS) mostrou que 3% do conjunto dos homens em todos os países sofre com
transtornos depressivos e de ansiedade; o índice sobe para 4,5% e 5%,
respectivamente, entre mulheres.
A assimetria deixa clara a importância de
políticas na área da saúde que se adaptem a variações epidemiológicas
registradas por gênero, etnia e idade, entre outros.
Na pesquisa do Datafolha, 27% das mulheres
e 14% dos homens relataram ter sido diagnosticados com ansiedade. Entre jovens
de 16 e 24 anos, o índice delas salta para 34%, enquanto o deles é de 15%.
Na autoavaliação, 5% do homens acham que
sua saúde mental é ruim ou péssima; o número é maior em mulheres (7%) e jovens
(13%). Ao todo, três em cada
dez brasileiros com 16 anos ou mais declaram sentir-se ansiosos e experimentar
problemas com o sono. Um quinto deles relata dificuldade de atenção.
As diferenças por gênero em saúde mental
têm causas biológicas, como variação hormonal, mas também culturais e
socioeconômicas.
Especialistas apontam que mulheres, desde a
infância, são mais vulneráveis a abusos, principalmente, sexuais. Ademais,
levantamentos do IBGE atestam que pessoas do sexo feminino sofrem com a dupla
jornada de trabalho, que impacta negativamente a empregabilidade e a renda das
brasileiras.
No caso dos jovens, novas tecnologias podem
ter papel significativo. As redes sociais levam o bullying da escola para a
casa; a valorização de estereótipos de beleza por vezes acarreta transtornos
alimentares, e o uso excessivo de telas luminosas causa distúrbios do sono.
Devido à intersecção de fatores biológicos,
culturais e sociais, a integralidade na abordagem, um dos princípios do SUS, é
crucial.
Isso significa não só articulação de
políticas em áreas diversas (segurança, assistência social, trabalho, educação)
mas também o tratamento do indivíduo em sua totalidade, levando em conta
contexto social e familiar, corpo e mente.
A OMS recomenda a capacitação de
profissionais na atenção primária para identificar sinais de problemas
psicológicos em consultas médicas de rotina. Atuação rápida no diagnóstico e
interdisciplinar em prevenção e tratamento são caminhos indicados pela ciência
para cuidar da saúde mental, principalmente dos mais vulneráveis.
Privatização mal feita
Folha de S. Paulo
Concessão de trecho da BR-040 sob Dilma
fracassa após prever tarifas irrealistas
Concessões de serviços públicos são
essenciais para ampliar investimentos com o uso de capital privado, em especial
na infraestrutura. Entretanto o sucesso na entrega de obras e a qualidade do
serviço dependem de projetos bem estruturados e bons atores privados, o que nem
sempre é o caso.
O exemplo do trecho da rodovia BR-040 que
liga Juiz de Fora (MG) a Brasília, batizado de Via 040, reúne o que
de mais errado pode acontecer em processos desse tipo.
Com 936 quilômetros de extensão, a via foi
privatizada em 2014, por 30 anos, num leilão vencido pelo consórcio Invepar.
Desde 2017, porém, a empresa tenta que o ativo passe por uma relicitação, que
envolve sua devolução para o governo em termos amigáveis.
O processo se arrasta, tendo sido objeto de
duas prorrogações, a última com prazo final vencido na sexta-feira (18). Sem
solução imediata, a Invepar foi obrigada
por decisão judicial a continuar operando a estrada até a relicitação.
A Via 040 faz parte de um lote de
concessões mal estruturadas durante o governo de Dilma Rousseff (PT). Na época,
a prioridade era garantir tarifas artificialmente baixas para os usuários, o
que comprometeu a rentabilidade dos projetos.
A frustração das expectativas de tráfego
com a recessão de 2015 e 2016 foi outro motivo apontado para que os
compromissos de investimentos fossem descumpridos —apenas 73 dos 557 km
previstos para duplicação foram concluídos. A companhia alega ter perdido R$
1,1 bilhão entre o início da concessão e dezembro de 2020.
Nas privatizações problemáticas, consórcios
motivados politicamente —muitos compostos por fundos de pensão de estatais e
geridos por empreiteiras— costumavam vencer os leilões.
Não por acaso, outras concessões de
rodovias dessa safra passam por transtornos, o que também ocorre com o
aeroporto de Viracopos, em Campinas.
Não ajuda que a própria modalidade da
relicitação tenha sido regulamentada apenas em 2019. Os trâmites ainda são
objeto de insegurança jurídica, havendo decisões judiciais que prologam as
dificuldades de resolução.
A escassez de interessados, ademais, deixa
pouca alternativa além da renegociação dos contratos com os prestadores
existentes.
Tudo isso demonstra que as consequências de populismo, incompetência na modelagem de projetos e falta de regras claras deixam sequelas de longo prazo. Daí ser fundamental não retroceder no aprendizado e nas melhorias institucionais obtidos nos últimos anos.
O lugar do Judiciário na democracia
O Estado de S. Paulo
Justiça tem de ter independência
preservada, mas precisa respeitar a dos outros Poderes.
O pacote de reformas do Judiciário que está
em discussão no Knesset, o Parlamento de Israel, suscita muitas inquietações.
Entre as propostas apoiadas pelo governo de Benjamin Netanyahu, uma é
especialmente preocupante: atribuir ao Poder Legislativo a prerrogativa de
derrubar, por maioria simples, as decisões da Suprema Corte – o que violaria o
princípio da separação de Poderes. A rigor, uma vez aprovada tal proposta, já
não existiria um Judiciário independente.
Esse cenário tem levado críticos da reforma
a afirmarem que Israel está à beira de perder sua democracia, com o risco de se
instaurar um regime jurídico integralmente submetido à maioria parlamentar. No
limite, não haveria direitos das minorias, tampouco liberdades e garantias
inegociáveis. No novo sistema, a vontade do Legislativo não teria limites,
podendo modificar ou eliminar o que bem entendesse.
Certamente, as respostas apresentadas pelo
pacote de reformas do Judiciário são perigosas; e as advertências de seus
críticos, justificáveis. No entanto, é preciso reconhecer: se são respostas
equivocadas, pois tentar subjugar o Judiciário nunca é um bom caminho, os
problemas que elas pretendem resolver são reais. Ou seja, é simplista e
equivocado achar que o erro está apenas nas propostas do governo de Netanyahu.
Expansiva, a atuação do Judiciário israelense nas últimas décadas vem
suscitando questões e conflitos sérios, com consequências profundas sobre a
percepção da população em relação à isenção e ao próprio papel da Justiça.
Como escreveu a jornalista Evelyn Gordon na
revista judaica Mosaic, em texto reproduzido no Estadão, “para a esquerda
(israelense), a Suprema Corte tornou-se a principal garantia de que valores e
políticas liberais continuarão mesmo sob um governo de direita”, enquanto “para
a direita o tribunal é a principal razão pela qual seus próprios valores e
políticas têm sido repetidamente frustrados, não importa quantas eleições ela
vença”. Nenhuma das duas visões, diz Gordon, é completamente precisa, “mas
ambas têm um pouco de verdade”. E continua: “É fácil entender por que essas
crenças alimentam paixões tão intensas. Em resumo, é a própria magnitude do
poder do tribunal que impulsiona tanto a reforma quanto a oposição a ela”.
Israel tem diversas peculiaridades. Por
exemplo, não tem uma Constituição escrita, o que dá margem ainda mais ampla
para a discussão sobre o controle de constitucionalidade exercido pela Suprema
Corte. Suas decisões são de fato jurídicas ou os membros do tribunal estão
usando suas atribuições jurisdicionais – que, ao longo do tempo, só cresceram –
para impor escolhas políticas?
De toda forma, por mais que haja
especificidades locais, as tensões envolvendo o Judiciário israelense são muito
semelhantes às que se veem em muitos outros países, também no Brasil. Aqui, a
disputa sobre o papel e os limites do Supremo Tribunal Federal (STF) tem três
grandes fatores. A Constituição de 1988 é especialmente abrangente – todos os
grandes embates sociais e políticos têm alguma dimensão constitucional. O
Legislativo usa o Judiciário para suas disputas políticas, como se as derrotas
nos debates democráticos pudessem ser revertidas nos tribunais. E, não menos
importante, o STF ampliou consideravelmente a compreensão a respeito de suas
competências. A Constituição é a mesma, mas a atuação do tribunal na década de
90 do século passado era muito mais contida do que a da última década.
Reformas legislativas que retiram a
independência do Judiciário devem ser rejeitadas. Mas não basta rejeitá-las
para que a democracia, com todo o seu vigor, prevaleça. O Judiciário tem o
dever de se ater ao âmbito jurídico, preservando a independência, a
funcionalidade e as competências dos outros dois Poderes.
A gravidade da ameaça representada pelo
pacote de reformas do Judiciário em Israel deve servir de alerta. Não há
solução minimamente boa ou adequada quando um país está radicalmente dividido
em relação à sua Corte constitucional. Para que a Justiça possa realizar sua
missão, deve dispor tanto de independência institucional como de autoridade
perante a população – e isso depende diretamente de sua atuação.
A busca por equilíbrio no ensino médio
O Estado de S. Paulo
MEC acerta ao propor, ao invés da revogação
da reforma do ensino médio, ajustes para resgatar disciplinas básicas. Mas
esses ajustes seguem negligenciando defasagem do ensino técnico
Após cinco meses de consulta pública, o
Ministério da Educação (MEC) apresentou suas propostas para revisar a reforma
do ensino médio de 2017. O MEC está realizando reuniões com entidades
educacionais a fim de consolidar, até o dia 21, a proposta final a ser enviada
ao Congresso.
Como se sabe, a principal motivação da
reforma foi promover a flexibilização de um currículo excessivamente rígido,
desinteressante para boa parte dos alunos e formatado com vistas aos poucos que
buscam o ensino superior. Se prevalecesse a posição de movimentos esquerdistas
que foram às ruas no início do ano, motivando o governo a suspender a reforma,
o MEC deveria propor a sua revogação, retornando a um modelo cujo fracasso é manifesto
no péssimo desempenho e altas taxas de evasão dos estudantes brasileiros.
Felizmente, o MEC não seguiu o caminho do retrocesso, mas dos ajustes.
São três mudanças principais: aumentar a
carga horária das disciplinas de base (comum a todos, como Português,
Matemática ou Química) de 1,8 mil horas para 2,4 mil horas (ou 2,2 mil, nos
casos de ensino médio integrado com cursos técnicos); diminuir o limite mínimo
das disciplinas optativas de 1,2 mil horas para 600 horas; e reduzir os
itinerários formativos de cinco para três: Ciências da Natureza, Ciências
Humanas e Formação Técnica.
As mudanças na carga horária respondem à
preocupação de críticos da reforma com a defasagem das disciplinas básicas em
prol de um conglomerado pulverizado de disciplinas optativas. São críticas
pertinentes. Se o currículo anterior era engessado, a comparação internacional
mostra que a flexibilização da reforma poderia ser excessiva. Em um estudo de
Stanford com 11 países com desempenho superior ao do Brasil, entre eles economias
avançadas e vizinhos latino-americanos, o único que apresenta um currículo mais
flexível que o novo modelo brasileiro é a Argentina, com taxas ruins de
conclusão e desempenho. Na busca por um meio-termo, porém, a proposta do MEC
pode ter forçado a mão no sentido do velho engessamento, com riscos ao “patinho
feio” da educação brasileira: o ensino técnico.
Como apontou no Estadão uma das maiores
autoridades em educação do Brasil, Simon Schwartzman, a reforma ignorou a
prática quase universal de distinguir quatro áreas de formação acadêmica:
ciências físicas e engenharias; ciências biológicas e de saúde; ciências e
profissões sociais; e letras, artes e humanidades. Mas, ao invés de se
aproximar desses parâmetros, a proposta do MEC praticamente retorna à antiga
divisão entre o curso “científico” e o “clássico”.
Além disso, o aumento da carga horária de
disciplinas básicas dificulta a expansão do ensino técnico. Historicamente
estigmatizado por uma cultura elitista, o ensino técnico no Brasil está
defasado. Menos de 10% dos alunos do ensino médio cursam essa modalidade,
enquanto nos países da OCDE a média beira os 40% – na Finlândia, por exemplo,
são quase 70%. Há fartas evidências comprovando a importância do ensino técnico
em sistemas com altos níveis de proficiência e conclusão. Sua ampliação no
Brasil levaria a um aumento das oportunidades de melhores empregos e salários,
impulsionando a atividade econômica e reduzindo a desigualdade social.
Para cumprir a carga horária básica
proposta pelo MEC, contudo, as escolas que oferecem o ensino médio integrado ao
técnico (que na maioria toma 1,2 mil horas) seriam obrigadas a investir em
ensino integral. Mas, se é crucial ampliar as ofertas de ensino integral e
viabilizá-las com bolsas, ele não é uma panaceia e tampouco é uma opção viável
para muitos alunos (sobretudo os que cursam o ensino técnico) que precisam
combinar estudo e trabalho.
Ao flexibilizar os itinerários formativos,
o maior potencial de reforma de 2017 era abrir uma janela de oportunidades para
resgatar, integrar, qualificar e ampliar o ensino técnico. Mas essas
oportunidades não foram aproveitadas desde então e não estão sendo aproveitadas
agora. O MEC e o Legislativo precisam dedicar mais esforços para corrigir essa
grave defasagem da educação nacional.
A PGR contra a Eletrobras
O Estado de S. Paulo
Em vez de recomprar ações da empresa, o
governo quer reestatizá-la no tapetão e ganha apoio de Aras
O procurador-geral da República, Augusto
Aras, mostrou não haver limites em sua capacidade de subserviência aos governos
de plantão. A mais nova investida deste senhor se deu no âmbito de uma ação na
qual a Advocacia-Geral da União (AGU) questiona um dos pilares do modelo de
privatização da Eletrobras.
A iniciativa representa um ataque à
segurança jurídica e não passa de uma maneira muito mal disfarçada de
reestatizar a companhia sem que a União tenha de pagar por isso. É
inacreditável que a PGR tenha dado razão ao governo, não fosse o fato de que
Aras está em campanha para manter-se no cargo.
A Eletrobras, por meio de uma
capitalização, emitiu novas ações em bolsa. Conforme o projeto de lei já
previa, o governo não comprou esses papéis e, assim, teve sua participação
reduzida de 63% para 42%. Com o processo, a Eletrobras se tornou uma companhia
de controle pulverizado, sem um dono para comandá-la. Para assegurar o formato,
o poder de voto de cada acionista foi limitado em 10%, independentemente da
quantidade de ações.
Não se trata de uma “jabuticaba”, mas de um
modelo adotado por várias empresas no mundo e ao qual o Legislativo deu aval.
Se tal limitação protege a Eletrobras da mão pesada do governo, ela também
impede que um concorrente privado tente assumir o controle da empresa e forme
um oligopólio.
A tese de Aras é ofensiva. Para ele, a
União assistiu, “de mãos atadas”, à limitação de seu poder de voto por parte
dos acionistas minoritários, em benefício exclusivo deles e em prejuízo
exclusivo da União, sem que fosse financeiramente recompensada por isso.
Mas o processo de privatização da
Eletrobras não se deu sem condicionantes. Boa parte do dinheiro levantado
voltou para a própria União como bônus de outorga; outra parte livrou o Tesouro
de bancar subsídios. Obras de recuperação de bacias no Norte, Nordeste e Sudeste
foram uma das contrapartidas para a obtenção de apoio parlamentar para a
privatização.
Longe do ideal, a forma como esse processo
foi conduzido, com inúmeros jabutis, já foi muito criticada por este jornal.
Mas o fato é que a Eletrobras se dispôs a pagar mais de R$ 60 bilhões para se
livrar, de forma definitiva, dos desmandos do governo e dos parlamentares e
fortalecer sua posição no setor elétrico.
Confiantes de que os contratos seriam
cumpridos, fundos de investimento aportaram recursos e trabalhadores aplicaram
dinheiro de suas contas de FGTS apostando em um novo futuro para a companhia. É
contra essas pessoas que o governo se insurge agora – e o pior, com apoio da
PGR, que ousa ainda sugerir ao STF que estabeleça um processo de conciliação
entre a União e os demais acionistas para que se chegue a um consenso.
Trata-se de uma afronta à vontade do
Legislativo e de uma tentativa de reverter, no tapetão, uma derrota que o PT
nunca engoliu na Justiça. A conciliação que a PGR propõe é absolutamente
desnecessária. Se realmente quiser retomar o poder sobre a Eletrobras, o
governo pode fazê-lo: basta pagar o triplo do valor das ações para
reestatizá-la, como estabelece o estatuto da companhia.
PMDF deve ser preservada
Correio Braziliense
Não pode o comando de uma corporação
estratégica para a segurança da capital — nem de qualquer outro estado da
Federação — deixar que suas posições políticas se sobreponham à missão
constitucional.
As conclusões do relatório apresentado pela
Procuradoria-Geral da República (PGR) sobre a omissão da Polícia Militar do
Distrito Federal (PMDF) em relação aos ataques às sedes do Três Poderes em 8 de
janeiro são muito graves. Revelam, com todas as evidências possíveis, a
politização das forças de segurança do país, um perigo para o Estado
Democrático de Direito. Não pode o comando de uma corporação estratégica para a
segurança da capital — nem de qualquer outro estado da Federação — deixar que
suas posições políticas se sobreponham à missão constitucional. As forças de
segurança — e isso vale para as Forças Armadas — têm a obrigação de deixar a
política de fora dos quartéis.
Pelo que apurou a PGR, com base em vídeos,
áudios e mensagens trocadas entre o oficiais, a tentativa de golpe de Estado só
aconteceu por causa da conivência da Polícia Militar do DF. Com agentes
infiltrados dentro dos acampamentos de golpistas ao lado do Quartel-General do
Exército, os comandantes da PM acompanhavam, em tempo real, toda a movimentação
que culminou com a invasão do Congresso Nacional, do Palácio do Planalto e do
Supremo Tribunal Federal (STF). O documento preparado pelos procuradores aponta
que os responsáveis pela segurança do Distrito Federal estimulavam uma possível
intervenção militar para evitar que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva
tomasse posse.
Antes mesmo dos resultados das eleições
vencidas por Lula, os responsáveis pelo comando das tropas da PM pregavam a
volta da ditadura para combater o tal comunismo. Assim como não fizeram nada
durante as tentativas de invasão à sede da Polícia Federal, no dia da
diplomação do presidente eleito, em dezembro de 2002. Deixaram que o
desrespeito à Constituição proliferasse. Um dos oficiais já reforçava que, se
houvesse ataque à sede do Congresso, os policiais militares nada fariam. O
mesmo major afirmou que impediria a atuação da Força Nacional, caso ela fosse
acionada para conter atos violentos na Praça dos Três Poderes. Uma afronta de
um servidor público que jurou cumprir a Constituição.
Outro ponto alarmante do relatório da
Procuradoria-Geral da República foi a decisão do comando da PMDF de escalar,
para a proteção do Congresso, do Planalto e do STF, apenas 200 policiais, todos
ainda em fase de treinamento. Isso, mesmo sabendo dos enormes riscos que esses
agentes correriam ante a violência prometida pelos golpistas. Nas várias
mensagens, integrantes dos acampamentos afirmavam que estavam dispostos a tudo,
a matar e a morrer. Felizmente, apesar de toda a violência que devastou o
coração da República, vidas foram preservadas e a ordem institucional
estabelecida a tempo, com a ajuda de policiais comprometidos com o dever cívico
e com as suas missões.
O mais importante neste momento é preservar
a Polícia Militar do Distrito Federal, uma instituição fundamental para a
capital do país, com excelentes serviços prestados à população. Aqueles que
optaram por desrespeitar a história da corporação, apegando-se "a teorias
conspiratórias, gerando um clima social de polarização político-ideológica e de
desconfiança nas instituições republicanas", que prestem contas à Justiça,
como qualquer cidadão comum. Todos, como manda a lei, terão direito de
apresentar suas defesas de forma ampla, para que decisões sejam tomadas.
Esse é o grande valor da democracia, o amplo direito de defesa, justamente o que os comandantes que foram presos preventivamente estavam combatendo quando permitiram que aqueles que não toleram o respeito à Constituição invadissem as sedes dos Três Poderes. O Brasil, desde 8 de janeiro, mostrou que está comprometido com o Estado Democrático de Direito. A normalidade institucional retornou com força suficiente para enfrentar intempéries inerentes às liberdades. A hora é de apoio à Polícia Militar do Distrito Federal e a todos aqueles que lutam para preservar esse patrimônio federal.
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