terça-feira, 12 de setembro de 2023

Pedro Cafardo - Inverno está no fim, e os escanteados continuam nas ruas

Valor Econômico

Moradias transitórias são apenas alívio emergencial para essa doença que envergonha o país

Uma coisa é a desigualdade na sociedade brasileira, espelhada por quase 30% da população vivendo em nível de pobreza, com renda familiar de até R$ 5,50 por dia. Outra coisa é o descaso com os escanteados, 281 mil que moram nas ruas, segundo pesquisa do Ipea.

Neste inverno, que felizmente termina na próxima semana, foi triste e revoltante ver centenas de pessoas, muitas vezes famílias inteiras, dormindo sob fétidos viadutos em minúsculas barracas doadas sabe-se lá por quem ou enroladas em cobertores fornecidos pelas prefeituras.

Voltamos a esse tema, que envergonha grandes cidades brasileiras e o país, porque ele costuma sair da pauta pública quando acaba o inverno - aparentemente, o calor arrefece os sentimentos de compaixão. O problema é angustiante principalmente em São Paulo, com suas 48 mil pessoas “em situação de rua”, expressão suave que se adotou recentemente para rotular de forma “politicamente correta” essa população escanteada.

Não há escapatória: é preciso arrumar, além de casas, emprego para essas pessoas. Como escreveu Roberto Teixeira da Costa em inspirado artigo no Valor de 19 de maio, o emprego é o remédio mais eficaz para o combate às desigualdades e dá dignidade à mãe ou ao pai de família.

A criação de empregos em larga escala, porém, é uma ação a ser comandada por governos e pelo setor privado com resultados a médio e longo prazos. As elites, tanto no Brasil quanto em muitos outros países, inclusive nos EUA, fracassaram nessa tarefa de criar empregos nos últimos 50 anos, como observou Teixeira da Costa, citando o sociólogo Matthew Desmond. Além do emprego, remédios conhecidos para o combate à desigualdade são educação, salários dignos, ênfase no avanço tecnológico, tributação progressiva sobre os mais ricos, entre outros.

Mas não dá para esperar que as políticas de médio e longo prazo façam efeito e tirem das ruas essas milhares de famílias. São necessárias ações emergenciais e há recursos para isso. Em São Paulo - e não se está aqui a dizer que se trata de uma tarefa fácil -, enquanto 48 mil dormiam nas ruas durante o inverno, R$ 30 bilhões dormiam nos cofres da administração municipal.

É justo reconhecer que há inúmeras iniciativas, algumas desarticuladas e desesperadas, da administração municipal, de empresas, associações e entidades assistenciais que trabalham para atenuar o sofrimento das populações de rua em São Paulo. Em geral, oferecem alimentação e roupas.

Empresários que frequentam a Associação Comercial de São Paulo, cuja sede fica no Centro Histórico da cidade há mais de um século, nunca viram tamanha aglomeração de moradores de rua nos seus arredores como neste inverno. O presidente da associação, Roberto Mateus Ordine, vê com preocupação, por exemplo, as distribuições improvisadas de alimentos, que promovem aglomerações e levam as pessoas a comer nas sarjetas, sem higiene alguma e com graves repercussões para sua saúde.

Ordine entende que o ideal, enquanto não se oferecem moradias, seria criar centros de convivência que tenham condições adequadas para o consumo dos alimentos. No ano passado, a associação abriu um desses centros em parceria com a prefeitura. Construiu um núcleo no centro com salas de convivência, televisão, atendimento social, segurança, banheiros, lavanderia e refeitório. Em média, oferece 200 cafés da manhã, 300 almoços e 260 jantares por dia. Neste ano, foram cerca de 180 mil refeições.

A experiência deu resultado e os empresários trabalham para ampliá-la, inclusive em parcerias para transformar prédios abandonados no centro em moradias transitórias para os sem-teto. Com o fim do inverno, normalmente esmorece a ação emergencial pública e privada de acolhimento desses cidadãos escanteados. Mas eles carecem de ajuda também na primavera, no verão, no outono e enquanto não amadurecem medidas estruturais para enfrentar o problema.

As prefeituras, em conjunto com a iniciativa privada, podem criar frentes de trabalho que atuem principalmente na construção ou adaptação de casas para os escanteados. Moradias transitórias são apenas alívio emergencial para essa doença que envergonha o país.

Em São Paulo, com a aproximação do ano eleitoral, a administração municipal faz uma frenética operação para asfaltar e recapear ruas e avenidas, algo necessário. Mas não tem o mesmo entusiasmo ao agir no apoio aos escanteados. Essas pessoas precisam urgentemente de casa, além de recursos do Bolsa Família - não apenas em São Paulo, obviamente. E isso dá para fazer, embora seja só o começo.

 

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