Valor Econômico
Moradias transitórias são apenas alívio
emergencial para essa doença que envergonha o país
Uma coisa é a desigualdade na sociedade
brasileira, espelhada por quase 30% da população vivendo em nível de pobreza,
com renda familiar de até R$ 5,50 por dia. Outra coisa é o descaso com os
escanteados, 281 mil que moram nas ruas, segundo pesquisa do Ipea.
Neste inverno, que felizmente termina na
próxima semana, foi triste e revoltante ver centenas de pessoas, muitas vezes
famílias inteiras, dormindo sob fétidos viadutos em minúsculas barracas doadas
sabe-se lá por quem ou enroladas em cobertores fornecidos pelas prefeituras.
Voltamos a esse tema, que envergonha grandes cidades brasileiras e o país, porque ele costuma sair da pauta pública quando acaba o inverno - aparentemente, o calor arrefece os sentimentos de compaixão. O problema é angustiante principalmente em São Paulo, com suas 48 mil pessoas “em situação de rua”, expressão suave que se adotou recentemente para rotular de forma “politicamente correta” essa população escanteada.
Não há escapatória: é preciso arrumar, além
de casas, emprego para essas pessoas. Como escreveu Roberto Teixeira da Costa
em inspirado artigo no Valor de
19 de maio, o emprego é o remédio mais eficaz para o combate às desigualdades e
dá dignidade à mãe ou ao pai de família.
A criação de empregos em larga escala,
porém, é uma ação a ser comandada por governos e pelo setor privado com
resultados a médio e longo prazos. As elites, tanto no Brasil quanto em muitos
outros países, inclusive nos EUA, fracassaram nessa tarefa de criar empregos
nos últimos 50 anos, como observou Teixeira da Costa, citando o sociólogo
Matthew Desmond. Além do emprego, remédios conhecidos para o combate à
desigualdade são educação, salários dignos, ênfase no avanço tecnológico,
tributação progressiva sobre os mais ricos, entre outros.
Mas não dá para esperar que as políticas de
médio e longo prazo façam efeito e tirem das ruas essas milhares de famílias.
São necessárias ações emergenciais e há recursos para isso. Em São Paulo - e
não se está aqui a dizer que se trata de uma tarefa fácil -, enquanto 48 mil
dormiam nas ruas durante o inverno, R$ 30 bilhões dormiam nos cofres da
administração municipal.
É justo reconhecer que há inúmeras
iniciativas, algumas desarticuladas e desesperadas, da administração municipal,
de empresas, associações e entidades assistenciais que trabalham para atenuar o
sofrimento das populações de rua em São Paulo. Em geral, oferecem alimentação e
roupas.
Empresários que frequentam a Associação
Comercial de São Paulo, cuja sede fica no Centro Histórico da cidade há mais de
um século, nunca viram tamanha aglomeração de moradores de rua nos seus
arredores como neste inverno. O presidente da associação, Roberto Mateus
Ordine, vê com preocupação, por exemplo, as distribuições improvisadas de
alimentos, que promovem aglomerações e levam as pessoas a comer nas sarjetas,
sem higiene alguma e com graves repercussões para sua saúde.
Ordine entende que o ideal, enquanto não se
oferecem moradias, seria criar centros de convivência que tenham condições
adequadas para o consumo dos alimentos. No ano passado, a associação abriu um
desses centros em parceria com a prefeitura. Construiu um núcleo no centro com
salas de convivência, televisão, atendimento social, segurança, banheiros,
lavanderia e refeitório. Em média, oferece 200 cafés da manhã, 300 almoços e
260 jantares por dia. Neste ano, foram cerca de 180 mil refeições.
A experiência deu resultado e os
empresários trabalham para ampliá-la, inclusive em parcerias para transformar
prédios abandonados no centro em moradias transitórias para os sem-teto. Com o
fim do inverno, normalmente esmorece a ação emergencial pública e privada de
acolhimento desses cidadãos escanteados. Mas eles carecem de ajuda também na
primavera, no verão, no outono e enquanto não amadurecem medidas estruturais
para enfrentar o problema.
As prefeituras, em conjunto com a
iniciativa privada, podem criar frentes de trabalho que atuem principalmente na
construção ou adaptação de casas para os escanteados. Moradias transitórias são
apenas alívio emergencial para essa doença que envergonha o país.
Em São Paulo, com a aproximação do ano
eleitoral, a administração municipal faz uma frenética operação para asfaltar e
recapear ruas e avenidas, algo necessário. Mas não tem o mesmo entusiasmo ao
agir no apoio aos escanteados. Essas pessoas precisam urgentemente de casa,
além de recursos do Bolsa Família - não apenas em São Paulo, obviamente. E isso
dá para fazer, embora seja só o começo.
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