terça-feira, 12 de setembro de 2023

O que a mídia pensa: editoriais / opiniões

Brasil não escapará de nova reforma da Previdência

O Globo

Ao contrário do que sustenta leitura ingênua dos números, sem mudanças as despesas voltarão a crescer

Os resultados da Previdência nos últimos dois anos têm alimentado em setores da esquerda o discurso de que as regras adotadas na reforma de 2019 foram rígidas demais e de que será possível ampliar os gastos previdenciários no futuro. Nada mais distante da realidade. Apesar de as despesas estarem crescendo em ritmo menor, é certo que no futuro o país não escapará de nova reforma para contê-las.

O primeiro, e mais óbvio, motivo é demográfico. Entre 1980 e 2022 os benefícios previdenciários subiram 3,9% ao ano, enquanto a população cresceu apenas 1,3%, revela pesquisa publicada no Observatório de Política Fiscal do Ibre/FGV. Havia um benefício previdenciário para 15,3 brasileiros no início do período. No final, um para 5,4.

É verdade que a despesa do governo com a previdência do setor privado — o Regime Geral de Previdência Social — caiu de 8,7% do PIB em 2020 para 8% nos dois anos seguintes. Mas os resultados são circunstanciais e não deverão se repetir nos próximos anos, afirmam os economistas Marcos Mendes, Rogério Costanzi e Otávio Sidone em artigo na revista Conjuntura Econômica.

A queda foi impulsionada não pela redução do gasto previdenciário, mas pelo aumento do denominador na conta: o PIB cresceu 5% em 2021 e 2,9% em 2022. Como as despesas são medidas como proporção do tamanho da economia, quando o PIB cresce, empurra o percentual para baixo. Infelizmente, o Brasil não deverá continuar a crescer no mesmo ritmo.

Para complicar o cenário futuro, o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva decidiu mudar a política de correção do salário mínimo. Além da inflação, o valor será aumentado pela variação real do PIB nos anos anteriores, segundo lei aprovada pelo Congresso. A mudança provocará uma alta substancial na despesa previdenciária e no benefício para idosos e pessoas com deficiência — o Benefício de Prestação Continuada (BPC) — da ordem de R$ 49,2 bilhões em 2027.

Decisões judiciais também contribuirão para piorar a conta. Quem entrou no sistema antes de 1999 pode usar suas contribuições anteriores a 1994 no cálculo da aposentadoria se for mais vantajoso (foi o que decidiu o Supremo no caso conhecido como “revisão da vida toda”). As estimativas do impacto variam, mas são todas bilionárias — algumas falam em R$ 480 bilhões somando o efeito retroativo e os próximos 15 anos. No Legislativo, não param de ser aprovadas medidas contrárias ao espírito da reforma. Aposentadorias especiais para categorias como forças de segurança ou agentes de saúde têm recebido apoio sem preocupação com as consequências.

Os ganhos com as mudanças de 2019 vêm sendo paulatinamente corroídos. Por isso não haverá surpresa se os gastos da Previdência chegarem a 8,6% do PIB em 2032, como estimam os três economistas. Levando em conta que apenas um terço dos municípios já realizou a reforma exigida, o total de gastos previdenciários no Brasil — incluindo regimes para funcionários públicos — poderia chegar facilmente perto dos países que mais gastam com Previdência segundo a OCDE (em torno de 15% do PIB, ante média de 7,7%).

Não haverá, portanto, como escapar de nova reforma da Previdência, para tocar em temas evitados pela última, como mecanismos automáticos de correção com base na demografia, revisão da previdência rural ou o tratamento especial a vários segmentos.

Mudanças climáticas exigem novas abordagens na prevenção de tragédias

O Globo

Eventos extremos, como os temporais devastadores no Rio Grande do Sul, se agravam agora em razão do El Niño

Traduzidas em números trágicos e relatos dramáticos, a destruição e as mortes provocadas pelas chuvas no Rio Grande do Sul revelam o desafio do Brasil para lidar com eventos climáticos extremos a cada dia mais frequentes. Os temporais resultaram da coincidência entre uma frente fria e um centro de baixa pressão na atmosfera, agravada pelo fenômeno El Niño — o aquecimento das águas do Oceano Pacífico que se desdobra em seca em algumas regiões (como o Nordeste) ou chuvas torrenciais e inundações em outras (como o Sul).

Havia mais de 90% de probabilidade de que as condições do El Niño continuassem a se manifestar em julho, agosto e setembro, persistindo até o fim do ano, avisava em junho uma nota técnica do Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet) e do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Como o fenômeno altera padrões de vento, umidade, temperatura e chuvas, eram esperadas no Sul “precipitações abundantes” e altas temperaturas. Mas esse tipo de aviso é — pela própria natureza da ciência climática — genérico. Era impossível, diante dele, ter ideia de que o Rio Grande do Sul registraria aquele que vem sendo considerado o maior desastre natural de sua história. Rios subiram muito acima das cotas históricas de inundação, arrastando moradias, deixando populações ilhadas e arrasando cidades onde não há memória recente de enchentes, especialmente no vale do Taquari. As imagens falam por si sós.

A tragédia superou, em mortes, outra ocorrida em junho, já sob influência do El Niño (na ocasião houve 16 mortos, ante ao menos 46 agora). Para desespero da população, persistem as condições climáticas favoráveis a novas tempestades arrasadoras. Mesmo que não se tenha certeza sobre onde e quando ocorrerão, sabemos que ocorrerão. União, estados e municípios não podem, portanto, atuar de forma passiva ou reativa. Inércia e omissão poderão custar ainda mais mortes.

O desafio das autoridades se desdobra em dois. Primeiro, é necessário desenvolver novas abordagens para prestar socorro da forma mais ágil e eficaz. Verbas para reconstrução, auxílio para os desabrigados, correntes de solidariedade, tudo isso é importante, mas não pode ser feito no improviso.

O segundo, e mais importante, desafio está na prevenção. Onde houver ocupação urbana à margem de rios ou em encostas, é preciso haver também planos de contingência para retirar os moradores das áreas vulneráveis com antecedência, ao primeiro sinal da tragédia a caminho. Todo município precisa também dispor de condições de manter a população afastada até o pior passar. Pedir para moradores subirem no telhado, como fez uma prefeitura, não é política pública, só desespero.

Infelizmente, as autoridades só costumam agir depois que o estrago está feito. A agenda preventiva deveria ter escala nacional e envolver o governo federal. O país precisa entender que o cenário climático mudou, e as velhas respostas já não servem para lidar com eventos extremos.

Disputa entre EUA e China pode imobilizar o G20

Valor Econômico

A atitude de EUA e China tende a paralisar iniciativas relevantes nos organismos em que coexistem

Se o “mundo é uma família”, como sugeriu o lema da reunião do G20 em Nova Déli, que reuniu os oito países mais ricos, 11 emergentes e a União Europeia, a família pode caminhar para uma convulsiva dissolução. A ausência pela primeira vez do presidente Xi Jinping indicou que a China não vai referendar, em qualquer organismo do qual participe, posições que sugiram apoio aos interesses dos EUA, com quem está em guerra comercial e colisão política. A bipolaridade Pequim-Washington provoca uma corrida para formar cada qual um clube de países aliados, nos quais basear sua segurança geopolítica e comercial. A disputa, a julgar pelo que ocorreu no G20, ocupará todos os palcos multilaterais de agora em diante.

Os movimentos chineses foram claros, ampliando o Brics com países que são confiáveis a Pequim, vários afins em seu desprezo pelos direitos democráticos, sem tornar incompatível a presença dos membros originais, como o Brasil, que participa do grupo para ampliar sua presença internacional e executar sua política externa. Xi Jinping tornará o Brics, se puder, refém de suas posições anti-americanas e terá poder de veto. A Índia é um peão independente e poderoso nesse xadrez político e, talvez, uma terceira via entre as duas maiores potências econômicas em dissenso crescente. Durante a Guerra Fria, Jawaharlal Nehru, o primeiro ministro indiano, esteve à frente do movimento dos não alinhados, que existe até hoje.

A ausência de Xi em Nova Déli foi um recado nada sutil a Narendra Modi, primeiro ministro indiano, com o qual mantém disputas fronteiriças e ambições geopolíticas distintas na Ásia, de que não pretende servir de plateia a seus planos, entre eles o de usar o front externo para se reeleger - as eleições na Índia são no ano que vem. Em Nova Déli, os Estados Unidos, com os quais a Índia já participa de uma aliança informal para segurança contra o avanço político e militar da China no Indo-Pacífico, ao lado dos EUA, Japão e Austrália, mostraram grande disposição de cativar Modi, um ativo político valioso para moderar posições no Brics e um companheiro de viagem no G20.

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As delegações da China e Rússia impediram até o fim que o comunicado final do encontro repetisse as condenações diretas à Rússia pela invasão da Ucrânia feitas na 17ª cúpula do grupo em Bali, em 2022. Essa oposição colocaria o G20, e mais ainda seu presidente da vez, Modi, diante de situação inédita: uma reunião sem comunicado final, o que equivaleria a uma declaração pública de que o grupo chegara a divergências incontornáveis.

Para evitar um revés de Modi, os EUA concordaram em retirar a menção explícita à Rússia, mas em mais de meia dúzia de parágrafos do documento, apenas o sujeito está oculto (Rússia). Eles deixam claro que Putin feriu todas as regras internacionais com sua guerra de conquista em território ucraniano. Membros do staff brasileiro, em wishful thinking, acreditam que a ampliação do Brics e a determinação da China desestimularam Biden e os europeus de acreditar que a vitória militar seja um desfecho possível (se é que um dia creram nisso) e de bancar uma guerra sem fim.

A disputa global chegou então com força a seu maior fórum de cooperação econômica global, que ganhou importância central a partir da crise financeira de 2008 e pode levá-lo a uma crise existencial. Um ensaio disso foi a maratona do comunicado final, relevante a tal ponto que a reunião foi tida como positiva porque, afinal, produziu um documento em que os principais países do grupo não dizem o que pensam, e talvez nem pensem o que dizem.

O Brasil assume a presidência do G20 em uma situação muito complicada. Apesar da discórdia, vários pontos da plataforma brasileira obtiveram apoio em Nova Déli, como a advertência contra o protecionismo europeu, que pode se esconder sob as exigências de conformidade ambiental para importações, ratificada em documento por mais 12 países.

O presidente Lula fugiu sabiamente do alinhamento na disputa entre EUA e China com uma agenda de combate à fome, à pobreza e às mudanças climáticas, temas menos divisivos, mas que mesmo assim podem ser também contaminados pelo conflito geopolítico. China e Arábia Saudita bloquearam no comunicado do grupo menções à necessária redução na exploração de petróleo. O Brasil defende uma solução para a dívida dos países pobres, uma seara antes exclusiva do Fundo Monetário Internacional, mas que agora tem a China no caminho. Como grande emprestador a países em desenvolvimento, Pequim tem assistido a uma sequência de calotes, e se comportado, na maior parte das vezes, com o rigor de um credor tradicional. No caso das mudanças climáticas, o Brasil ganha mais um fórum para reiterar sua cobrança por mais fundos dos países ricos. A agenda brasileira para o G20, apresentada em seus pontos gerais, é coerente, viável e necessária.

A atitude de EUA e China, sem détente à vista, tende a paralisar iniciativas relevantes nos organismos em que coexistem. Mas é pouco provável que inviabilizem o único organismo poderoso de consultas e decisões, quando a única alternativa disponível é uma ONU paralisada.

Mundo em blocos

Folha de S. Paulo

Lula eleva tom ao assumir o G20; embate global dificulta protagonismo brasileiro

Como numa proverbial profecia autorrealizável, a reunião de cúpula do G20 na Índia, encerrada no domingo (10), coroou um momento de divisões mundiais quase inconciliáveis, em que os interesses nacionais falam mais alto.

Pior para Luiz Inácio Lula da Silva (PT), presidente que vive fixado nos anos 2000, quando o boom das commodities colocou o Brasil em um lugar provisório de destaque na arena internacional —e o petista, como símbolo daquela era.

Lula voltou ao poder com a imagem do país abalada por Jair Bolsonaro (PL) no cenário mundial, um presente em termos de projeção e aceitação potenciais.

Em tese, a presidência rotativa do G20 daria a Lula, a partir de dezembro, um palanque global para suas pretensões, ainda por cima somado ao período final de sua liderança temporária no Mercosul.

A realidade de um planeta conflagrado e cada vez mais obediente à lógica de blocos —apesar da interdependência vigente entre as potências rivais em Washington e Pequim— dificulta tal plano.

Em Nova Déli, por exemplo, Lula fez o previsível, mas correto, discurso acerca da falta de contrapartida de nações mais desenvolvidas quando o tema é o ambiente.

Na hora de deixar a retórica, o petista encontrou a parede. Fez queixas duras ao francês Emmanuel Macron, tachando de ofensivas as exigências ambientais adicionais que a União Europeia incluiu na negociação sobre o acordo de livre comércio com o Mercosul.

Se tem razão ao dizer que elas são uma reação aos anos de descaso bolsonarista, faltou a Lula explicar o próprio protecionismo, que quer ver instalado no acerto em nome da suposta reindustrialização pregada em seu governo. E isso para não falar da perene e algo bizantina busca de uma vaga no Conselho de Segurança da ONU.

Lula meteu os pés entre as mãos novamente sobre a Guerra da Ucrânia, ao dizer que Vladimir Putin nunca seria preso no Brasil sob seu governo, embora a obrigação legal de cumprir a ordem do Tribunal Penal Internacional seja da Justiça. Estrago feito, recuou —e mal.

O petista pode até ter o sucesso que seu antecessor à frente do G20 (o premiê Narendra Modi) teve, mas aí importam as condições objetivas: a Índia e sua economia são o destaque da vez na política global, tanto que o americano Joe Biden foi suave ao falar da guerra.

A hipocrisia ocidental se fez presente no texto final do encontro, em que os países ricos aceitaram diluir até a natureza da conflito em que armam e apoiam Kiev, para evitar que a ausente China ficasse com os louros políticos de uma debacle total da cúpula do G20.

Nesse cipoal, o protagonismo brasileiro se torna mais difícil.

A Lava Jato 2.0

O Estado de S. Paulo

O STF parece empenhado em repetir, nas investigações contra Bolsonaro, os erros da Lava Jato. Não será surpresa se, como na malfadada operação, as provas também forem invalidadas

Há algum tempo se verificam perigosas semelhanças entre os métodos utilizados na Operação Lava Jato e o que vem fazendo o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), no âmbito dos inquéritos das milícias digitais e atos antidemocráticos. No mês passado, este jornal alertou para a compreensão excessivamente ampla da competência judicial adotada por Alexandre de Moraes, com base no critério da conexão entre causas (ver o editorial Abusos favorecem a impunidade, de 15/8/2023). Ali advertimos que o sr. Moraes não é juiz universal dos casos envolvendo Bolsonaro. Ora, foi esse equívoco sobre a competência da 13.ª Vara Federal de Curitiba que levou à anulação das condenações de Luiz Inácio Lula da Silva.

No entanto, Alexandre de Moraes não apenas parece indiferente a toda a jurisprudência relativa aos abusos da Lava Jato, como resolveu dobrar a aposta. No sábado passado, homologou a delação premiada do tenente-coronel Mauro Cid e, em seguida, suspendeu a prisão preventiva do militar, ex-ajudante de ordens do ex-presidente Jair Bolsonaro.

Ainda são desconhecidos os termos da colaboração de Mauro Cid e se ela contribuirá efetivamente para a elucidação de eventuais crimes. De toda forma, é possível apontar dois pontos especialmente graves nessa história.

Primeiro, prisão preventiva não é meio para obtenção de confissão ou delação. Muito utilizado na época da Lava Jato como forma de pressionar pessoas investigadas, esse método foi declarado ilegítimo pelo Judiciário e pelo próprio Legislativo, que, com a experiência da operação, aprovou a Lei 13.964/2019, fixando de forma ainda mais categórica as condições para a decretação da prisão.

No entanto, Alexandre de Moraes explicitou que a prisão de Mauro Cid tinha apenas o propósito intimidador, pois, tão logo foi homologada a delação premiada, o ministro determinou a soltura do militar. Vale lembrar que a prisão havia sido decretada em maio no âmbito da Operação Venire, sobre supostas fraudes em carteiras de vacinação. Ou seja, a medida já suscitava graves suspeitas de desproporção e de utilização para fins não previstos na lei. Agora, tais suspeitas adquiriram patamar de certeza.

Um segundo ponto especialmente sério refere-se a quem participou, por parte do Estado, no acordo de delação premiada. O acordo com Mauro Cid foi celebrado pela Polícia Federal, sem a participação do Ministério Público. É certo que, em 2018, no auge do entusiasmo nacional com a figura da delação, o STF autorizou que a polícia celebrasse sozinha esse tipo de acordo. No entanto, em 2021, o próprio Supremo mudou sua orientação, reconhecendo que não faz sentido haver delação sem o aval do Ministério Público, órgão titular da ação penal pública. Sob esse argumento, o plenário do STF anulou, por maioria de votos, a colaboração premiada celebrada entre a Polícia Federal e o ex-governador do Rio de Janeiro Sérgio Cabral. Na ocasião, Alexandre de Moraes votou pela necessidade do aval do Ministério Público.

É inquietante e muito constrangedora essa instabilidade do Judiciário, cuja orientação jurídica parece depender das circunstâncias políticas e de quem figura entre os investigados. A homologação da delação e a soltura de Mauro Cid ocorreram na mesma semana em que o ministro Dias Toffoli anulou todos os atos da Justiça tomados a partir do acordo de leniência firmado pela Odebrecht – e ainda classificou a prisão de Lula como “um dos maiores erros judiciários da história do País”.

Surgem, então, duas perguntas. Primeira: se o mesmíssimo erro que ora desmoraliza a Lava Jato é cometido por um ministro do Supremo, deixa de ser erro? Segunda: quanto tempo levará para que as provas obtidas por essas investigações no STF, incluídas as da nova delação, sejam consideradas nulas pela Justiça? São perguntas retóricas, claro. Assim como no auge da Lava Jato tudo parecia permitido porque o objetivo declarado era condenar Lula da Silva, hoje tudo parece válido para incriminar Jair Bolsonaro. Não era justiça então, não é justiça agora.

O duvidoso pente-fino na Previdência

O Estado de S. Paulo

Só reformas estruturais seriam capazes de trazer resultados efetivos para conter despesas. Governo precisa reconhecer esse fato e dar o exemplo, mas o Legislativo precisa fazer sua parte

O secretário executivo do Ministério do Planejamento e Orçamento, Gustavo Guimarães, reconheceu que o governo não conseguirá zerar o déficit fiscal no ano que vem se apostar suas fichas apenas no aumento das receitas. Em entrevista ao Estadão, Guimarães, que é o número dois na pasta liderada pela ministra Simone Tebet, disse que o governo necessariamente terá de rever gastos para cumprir a meta.

Vindo de um governo petista, partido que demonstra aversão a corte de despesas, a admissão dessa necessidade pelo secretário executivo certamente é algo a ser celebrado. Ele expressa, ademais, aquilo que muitos especialistas em contas públicas já têm alertado há algum tempo, desde a apresentação do arcabouço fiscal pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad.

Mas, no debate sobre corte de gastos, o diabo mora nos detalhes. O foco inicial da estratégia da revisão de despesas, segundo Guimarães, será o combate a fraudes, com destaque para os benefícios pagos pela Previdência Social. “Vamos começar a atuar naquilo que tem um impacto maior e indícios de fraude”, afirmou. Embora não tenha citado números, Simone Tebet já havia estimado as irregularidades em algo entre R$ 10 bilhões e R$ 20 bilhões.

Ora, em primeiro lugar, cancelar benefícios irregulares é mera medida administrativa para reverter aquilo que jamais deveria ter sido concedido. Não pode, portanto, ser classificado como corte de despesas. Em segundo lugar, não é improvável que haja benefícios irregulares e passíveis de cancelamento. No entanto, as estimativas apresentadas pelo governo sobre o resultado desses pentes-finos costumam revelar-se bem mais otimistas do que a realidade costuma autorizar.

É o que tem ocorrido no processo de revisão dos pagamentos concedidos por meio do antigo Auxílio Brasil, hoje Bolsa Família. Entre os milhões de famílias excluídas e contempladas com os benefícios, o valor reservado para o programa no Orçamento em 2024 foi praticamente o mesmo que o deste ano, cerca de R$ 168 bilhões – a despeito dos indícios de que a base teria sido inflada durante a campanha eleitoral do ex-presidente Jair Bolsonaro.

No caso dos benefícios previdenciários, a previsão de gastos para o ano que vem é de R$ 914 bilhões, o equivalente a 8% do Produto Interno Bruto (PIB). Por óbvio, reavaliar processos internos para tornar o processo de concessão desses pagamentos mais rígido é uma medida que deveria ter caráter permanente, mesmo porque eles representam uma das principais rubricas do Orçamento.

No entanto, há uma série de obstáculos para implementar essa política. Às dificuldades operacionais que o governo já teria para fazer a revisão em um contexto de filas, soma-se o fato de que vários dos benefícios cessados, mais tarde, acabam por ser restabelecidos pela Justiça – o que explica o tamanho da conta dos precatórios, outro problema fiscal a ser enfrentado pela União.

Não se trata de desqualificar o esforço do governo para fechar torneiras por onde o dinheiro se esvai, mas de ser mais realista quanto ao resultado dessas propostas. Na maioria dos casos, somente reformas estruturais seriam capazes de trazer resultados relevantes no médio e longo prazos. O Executivo precisa reconhecer esse fato, dar o exemplo e propor medidas que vão além de pentes-finos e de planos de recuperação de receitas, bem como ser mais contido a respeito do potencial de arrecadação de cada uma dessas ações.

O Legislativo também precisa fazer sua parte. Além de aprovar medidas que acabem com privilégios tributários indevidos a alguns segmentos, os parlamentares precisam dar um freio a propostas que representem novas renúncias para a União. Na situação em que o País se encontra, por exemplo, não há qualquer espaço nem justificativa para aprovar a desoneração da folha de pagamento dos municípios.

A definição da meta é uma decisão de governo, mas atingi-la depende de um esforço coletivo. Por mais irreal que ela seja, mantê-la inalterada, neste momento, não é capricho, mas algo essencial no longo caminho rumo à recuperação da credibilidade do País.

A necessária revitalização do G-20

O Estado de S. Paulo

Apesar de o bloco viver um nadir geopolítico, houve avanços que cabe ao Brasil continuar

“Uma Terra, Uma Família, Um Futuro.” Idealmente, o slogan da presidência da Índia do G-20, que culminou com a cúpula do fim de semana, representa as melhores aspirações do grupo que congrega as 19 maiores economias do mundo mais a União Europeia, incluindo países desenvolvidos e em desenvolvimento de todos os continentes. Sua primeira cúpula, em 2009, foi decisiva para mitigar a crise financeira global. À época, seu presidente, o premiê britânico Gordon Brown, disse que a cúpula representava “um mundo se unindo”. Mas, se o atual presidente, Narendra Modi, fosse acometido por um surto de sinceridade, seria obrigado a dizer que esta cúpula representou “um mundo se desagregando”.

A crise da globalização, as fraturas do sistema multilateral, as tensões entre EUA e China e a guerra na Ucrânia minaram a cooperação do G-20 no momento em que ela é mais necessária. Faltou pouco para que a cúpula se encerrasse, pela primeira vez, sem uma declaração conjunta.

A ausência de Vladimir Putin, pelo segundo ano, era esperada. Mais sintomática foi a ausência inédita do líder chinês, Xi Jinping. Ela tem uma motivação tática e talvez estratégica. Pequim tentou diluir a atuação da Índia, com quem rivaliza na Ásia e disputa a liderança do Sul Global. Mas a manobra também sinaliza a intenção da China de privilegiar fóruns onde tem ingerência. A ausência de Xi contrastou com seu protagonismo ostensivo para ampliar o Brics.

A suavização das críticas à invasão russa foi uma solução de compromisso para valorizar a presidência da Índia, com quem o Ocidente busca aprofundar laços para desestabilizar as ambições chinesas. Nesta linha estão as demonstrações de apoio e cooperação com o mundo em desenvolvimento, como a Aliança Global para Biocombustíveis, liderada por EUA, Brasil e Índia, ou o anúncio de um megaprojeto para interligar o Sul da Ásia ao Golfo Árabe e à Europa, em contraponto à Rota da Seda chinesa.

Sob a presidência da Índia, a União Africana se tornou membro do G-20, e foram promovidos avanços na reestruturação dos bancos de desenvolvimento multilaterais, da dívida dos países em desenvolvimento e das finanças climáticas.

São pontos que o Brasil, que assume a presidência, pode dar continuidade. O País tem pouca alavancagem para interferir nas fricções das placas tectônicas geopolíticas, e as condições de cooperação na cúpula de Brasília em 2024 podem estar ainda mais periclitantes. Mas, se focar na agenda econômica e, especialmente, na ambiental, o País pode dar uma relevante contribuição.

Idealmente, o lema anunciado pelo presidente Lula – “Construindo um Mundo Justo e um Planeta Sustentável” – vai nessa direção. Na prática, suas declarações fazendo pouco-caso dos compromissos do Brasil com o Tribunal Penal Internacional ou recriminando os países ricos pela crise climática podem prejudicar essa “construção”.

“Uma Terra” é uma realidade inescapável. Mas, se o G-20 não encontrar os meios de revitalizar o multilateralismo para unir uma “família” em franca desagregação, o futuro será cada vez menos promissor.

Saúde pública, desafio global

Correio Braziliense

Em entrevista ao Correio, no último domingo, a ministra da Saúde, Nísia Trindade, resgatou a importância de uma política pública de saúde para combater pandemias e outras emergências sanitárias

Em entrevista ao Correio, no último domingo, a ministra da Saúde, Nísia Trindade, resgatou a importância de uma política pública de saúde para combater pandemias e outras emergências sanitárias. Trindade vai além: afirma que a tragédia da covid-19 deixou como doloroso ensinamento de que não é possível falar em cooperação internacional e programas de desenvolvimento sem levar em conta as questões de saúde.

Oficialmente, a pandemia matou 7 milhões de pessoas. Mas a Organização Mundial de Saúde estima que esse número pode chegar a 20 milhões — praticamente o triplo de casos fatais. A disparidade reside precisamente na diferença das políticas públicas de saúde, que se manifesta inclusive na coleta de dados. Ainda é recente na memória nacional, para exemplificar, as manobras do governo Bolsonaro em escamotear o avanço da pandemia. Foi preciso que se criasse uma contabilidade paralela, lastreada nas estatísticas das secretarias estaduais de saúde, para mostrar à sociedade brasileira o real diagnóstico da covid. Tempos obscuros.

Na próxima semana, a ministra Nísia Trindade acompanhará o presidente Lula na Assembleia Geral da ONU, em Nova York. Participará de três reuniões de cúpula para tratar especificamente de questões ligadas à saúde. A tônica dos encontros é precisamente encontrar caminhos para que governos possam dar respostas rápidas e eficientes ao avanço de doenças infecciosas, como covid e tuberculose. Nesse contexto, é fundamental fortalecer o atendimento primário. Urge ampliar a estrutura pública — particularmente em países com grande desigualdade social, como o Brasil — para a população mais vulnerável não seja ainda mais penalizada por viver em condições precárias.

Robustecer o Sistema Único de Saúde significa, portanto, investir no futuro. Trata-se de ação essencial para evitar gastos emergenciais com internação, tratamento e recuperação de cidadãos acometidos por doenças com potencial endêmico. A tragédia da pandemia de covid-19 mostrou, de maneira cristalina, que é preciso buscar uma estrutura que permita ao governo ter instrumentos adequados de enfrentamento de crises dessa magnitude — preparação esta que vai da disponibilidade de profissionais à produção de insumos. "A pandemia é um marcador social de muitos problemas, que vão desde a estruturação adequada dos sistemas de saúde e a sua capacidade de responder a situações de emergência até essas questões da industrialização necessária", resume Trindade. Trata-se, portanto, de uma diretriz de Estado, da qual nenhum governo que preze a vida dos cidadãos pode prescindir. É um esforço que transcende governos, incompatível com visões terraplanistas de políticas de saúde.

É preciso lembrar, ainda, que saúde pública de qualidade não constitui tarefa apenas do gestor de plantão. O cidadão também tem o dever de contribuir para mitigar os riscos de uma emergência sanitária. Em 2023, o país está em plena guerra das vacinas, a fim de convencer uma parcela significativa da população sobre a fulcral importância de aderir à imunização. O governo tem investido em campanhas, mas ainda há tempo para o brasileiro despertar a autoconsciência, o espírito cívico e a empatia. O Brasil já foi referência na erradicação e enfrentamento de doenças como pólio, tuberculose e varíola, mas sofre hoje de baixíssima cobertura vacinal. Além de cobrar diligência das autoridades, a sociedade precisa valorizar e colaborar para que se cumpra o preceito constitucional de que saúde é direito de todos e dever do Estado.

 

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