Brasil não escapará de nova reforma da Previdência
O Globo
Ao contrário do que sustenta leitura
ingênua dos números, sem mudanças as despesas voltarão a crescer
Os resultados da Previdência nos
últimos dois anos têm alimentado em setores da esquerda o discurso de que as
regras adotadas na reforma de 2019 foram rígidas demais e de que será possível
ampliar os gastos previdenciários no futuro. Nada mais distante da realidade.
Apesar de as despesas estarem crescendo em ritmo menor, é certo que no futuro o
país não escapará de nova reforma para contê-las.
O primeiro, e mais óbvio, motivo é
demográfico. Entre 1980 e 2022 os benefícios previdenciários subiram 3,9% ao
ano, enquanto a população cresceu apenas 1,3%, revela pesquisa publicada no
Observatório de Política Fiscal do Ibre/FGV. Havia um benefício previdenciário
para 15,3 brasileiros no início do período. No final, um para 5,4.
É verdade que a despesa do governo com a previdência do setor privado — o Regime Geral de Previdência Social — caiu de 8,7% do PIB em 2020 para 8% nos dois anos seguintes. Mas os resultados são circunstanciais e não deverão se repetir nos próximos anos, afirmam os economistas Marcos Mendes, Rogério Costanzi e Otávio Sidone em artigo na revista Conjuntura Econômica.
A queda foi impulsionada não pela redução
do gasto previdenciário, mas pelo aumento do denominador na conta: o PIB
cresceu 5% em 2021 e 2,9% em 2022. Como as despesas são medidas como proporção
do tamanho da economia, quando o PIB cresce, empurra o percentual para baixo.
Infelizmente, o Brasil não deverá continuar a crescer no mesmo ritmo.
Para complicar o cenário futuro, o governo
do presidente Luiz Inácio Lula da Silva decidiu mudar a política de correção do
salário mínimo. Além da inflação, o valor será aumentado pela variação real do
PIB nos anos anteriores, segundo lei aprovada pelo Congresso. A mudança
provocará uma alta substancial na despesa previdenciária e no benefício para
idosos e pessoas com deficiência — o Benefício de Prestação Continuada (BPC) —
da ordem de R$ 49,2 bilhões em 2027.
Decisões judiciais também contribuirão para
piorar a conta. Quem entrou no sistema antes de 1999 pode usar suas
contribuições anteriores a 1994 no cálculo da aposentadoria se for mais
vantajoso (foi o que decidiu o Supremo no caso conhecido como “revisão da vida
toda”). As estimativas do impacto variam, mas são todas bilionárias — algumas
falam em R$ 480 bilhões somando o efeito retroativo e os próximos 15 anos. No
Legislativo, não param de ser aprovadas medidas contrárias ao espírito da
reforma. Aposentadorias especiais para categorias como forças de segurança ou
agentes de saúde têm recebido apoio sem preocupação com as consequências.
Os ganhos com as mudanças de 2019 vêm sendo
paulatinamente corroídos. Por isso não haverá surpresa se os gastos da
Previdência chegarem a 8,6% do PIB em 2032, como estimam os três economistas.
Levando em conta que apenas um terço dos municípios já realizou a reforma
exigida, o total de gastos previdenciários no Brasil — incluindo regimes para
funcionários públicos — poderia chegar facilmente perto dos países que mais gastam
com Previdência segundo a OCDE (em torno de 15% do PIB, ante média de 7,7%).
Não haverá, portanto, como escapar de nova
reforma da Previdência, para tocar em temas evitados pela última, como
mecanismos automáticos de correção com base na demografia, revisão da
previdência rural ou o tratamento especial a vários segmentos.
Mudanças climáticas exigem novas abordagens
na prevenção de tragédias
O Globo
Eventos extremos, como os temporais
devastadores no Rio Grande do Sul, se agravam agora em razão do El Niño
Traduzidas em números trágicos e relatos
dramáticos, a destruição e as mortes provocadas pelas chuvas no Rio Grande do
Sul revelam o desafio do Brasil para lidar com eventos
climáticos extremos a cada dia mais frequentes. Os temporais resultaram da
coincidência entre uma frente fria e um centro de baixa pressão na atmosfera,
agravada pelo fenômeno El Niño — o aquecimento das águas do Oceano Pacífico que
se desdobra em seca em algumas regiões (como o Nordeste) ou chuvas torrenciais
e inundações em outras (como o Sul).
Havia mais de 90% de probabilidade de que
as condições do El Niño continuassem a se manifestar em julho, agosto e
setembro, persistindo até o fim do ano, avisava em junho uma nota técnica do
Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet) e do Instituto Nacional de Pesquisas
Espaciais (Inpe). Como o fenômeno altera padrões de vento, umidade, temperatura
e chuvas, eram esperadas no Sul “precipitações abundantes” e altas temperaturas.
Mas esse tipo de aviso é — pela própria natureza da ciência climática —
genérico. Era impossível, diante dele, ter ideia de que o Rio Grande do Sul
registraria aquele que vem sendo considerado o maior desastre natural de sua
história. Rios subiram muito acima das cotas históricas de inundação,
arrastando moradias, deixando populações ilhadas e arrasando cidades onde não
há memória recente de enchentes, especialmente no vale do Taquari. As imagens
falam por si sós.
A tragédia superou, em mortes, outra
ocorrida em junho, já sob influência do El Niño (na ocasião houve 16 mortos,
ante ao menos 46 agora). Para desespero da população, persistem as condições
climáticas favoráveis a novas tempestades arrasadoras. Mesmo que não se tenha
certeza sobre onde e quando ocorrerão, sabemos que ocorrerão. União, estados e
municípios não podem, portanto, atuar de forma passiva ou reativa. Inércia e
omissão poderão custar ainda mais mortes.
O desafio das autoridades se desdobra em
dois. Primeiro, é necessário desenvolver novas abordagens para prestar socorro
da forma mais ágil e eficaz. Verbas para reconstrução, auxílio para os
desabrigados, correntes de solidariedade, tudo isso é importante, mas não pode
ser feito no improviso.
O segundo, e mais importante, desafio está
na prevenção. Onde houver ocupação urbana à margem de rios ou em encostas, é
preciso haver também planos de contingência para retirar os moradores das áreas
vulneráveis com antecedência, ao primeiro sinal da tragédia a caminho. Todo
município precisa também dispor de condições de manter a população afastada até
o pior passar. Pedir para moradores subirem no telhado, como fez uma
prefeitura, não é política pública, só desespero.
Infelizmente, as autoridades só costumam agir depois que o estrago está feito. A agenda preventiva deveria ter escala nacional e envolver o governo federal. O país precisa entender que o cenário climático mudou, e as velhas respostas já não servem para lidar com eventos extremos.
Disputa entre EUA e China pode imobilizar o
G20
Valor Econômico
A atitude de EUA e China tende a paralisar
iniciativas relevantes nos organismos em que coexistem
Se o “mundo é uma família”, como sugeriu o
lema da reunião do G20 em Nova Déli, que reuniu os oito países mais ricos, 11
emergentes e a União Europeia, a família pode caminhar para uma convulsiva
dissolução. A ausência pela primeira vez do presidente Xi Jinping indicou que a
China não vai referendar, em qualquer organismo do qual participe, posições que
sugiram apoio aos interesses dos EUA, com quem está em guerra comercial e
colisão política. A bipolaridade Pequim-Washington provoca uma corrida para
formar cada qual um clube de países aliados, nos quais basear sua segurança
geopolítica e comercial. A disputa, a julgar pelo que ocorreu no G20, ocupará
todos os palcos multilaterais de agora em diante.
Os movimentos chineses foram claros,
ampliando o Brics com países que são confiáveis a Pequim, vários afins em seu
desprezo pelos direitos democráticos, sem tornar incompatível a presença dos
membros originais, como o Brasil, que participa do grupo para ampliar sua
presença internacional e executar sua política externa. Xi Jinping tornará o
Brics, se puder, refém de suas posições anti-americanas e terá poder de veto. A
Índia é um peão independente e poderoso nesse xadrez político e, talvez, uma
terceira via entre as duas maiores potências econômicas em dissenso crescente.
Durante a Guerra Fria, Jawaharlal Nehru, o primeiro ministro indiano, esteve à
frente do movimento dos não alinhados, que existe até hoje.
A ausência de Xi em Nova Déli foi um recado
nada sutil a Narendra Modi, primeiro ministro indiano, com o qual mantém
disputas fronteiriças e ambições geopolíticas distintas na Ásia, de que não
pretende servir de plateia a seus planos, entre eles o de usar o front externo
para se reeleger - as eleições na Índia são no ano que vem. Em Nova Déli, os
Estados Unidos, com os quais a Índia já participa de uma aliança informal para
segurança contra o avanço político e militar da China no Indo-Pacífico, ao lado
dos EUA, Japão e Austrália, mostraram grande disposição de cativar Modi, um
ativo político valioso para moderar posições no Brics e um companheiro de
viagem no G20.
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filantropia
As delegações da China e Rússia impediram
até o fim que o comunicado final do encontro repetisse as condenações diretas à
Rússia pela invasão da Ucrânia feitas na 17ª cúpula do grupo em Bali, em 2022.
Essa oposição colocaria o G20, e mais ainda seu presidente da vez, Modi, diante
de situação inédita: uma reunião sem comunicado final, o que equivaleria a uma
declaração pública de que o grupo chegara a divergências incontornáveis.
Para evitar um revés de Modi, os EUA
concordaram em retirar a menção explícita à Rússia, mas em mais de meia dúzia
de parágrafos do documento, apenas o sujeito está oculto (Rússia). Eles deixam
claro que Putin feriu todas as regras internacionais com sua guerra de
conquista em território ucraniano. Membros do staff brasileiro, em wishful
thinking, acreditam que a ampliação do Brics e a determinação da China
desestimularam Biden e os europeus de acreditar que a vitória militar seja um
desfecho possível (se é que um dia creram nisso) e de bancar uma guerra sem
fim.
A disputa global chegou então com força a
seu maior fórum de cooperação econômica global, que ganhou importância central
a partir da crise financeira de 2008 e pode levá-lo a uma crise existencial. Um
ensaio disso foi a maratona do comunicado final, relevante a tal ponto que a
reunião foi tida como positiva porque, afinal, produziu um documento em que os
principais países do grupo não dizem o que pensam, e talvez nem pensem o que
dizem.
O Brasil assume a presidência do G20 em uma
situação muito complicada. Apesar da discórdia, vários pontos da plataforma
brasileira obtiveram apoio em Nova Déli, como a advertência contra o
protecionismo europeu, que pode se esconder sob as exigências de conformidade
ambiental para importações, ratificada em documento por mais 12 países.
O presidente Lula fugiu sabiamente do
alinhamento na disputa entre EUA e China com uma agenda de combate à fome, à
pobreza e às mudanças climáticas, temas menos divisivos, mas que mesmo assim
podem ser também contaminados pelo conflito geopolítico. China e Arábia Saudita
bloquearam no comunicado do grupo menções à necessária redução na exploração de
petróleo. O Brasil defende uma solução para a dívida dos países pobres, uma
seara antes exclusiva do Fundo Monetário Internacional, mas que agora tem a
China no caminho. Como grande emprestador a países em desenvolvimento, Pequim
tem assistido a uma sequência de calotes, e se comportado, na maior parte das
vezes, com o rigor de um credor tradicional. No caso das mudanças climáticas, o
Brasil ganha mais um fórum para reiterar sua cobrança por mais fundos dos
países ricos. A agenda brasileira para o G20, apresentada em seus pontos
gerais, é coerente, viável e necessária.
A atitude de EUA e China, sem détente à
vista, tende a paralisar iniciativas relevantes nos organismos em que
coexistem. Mas é pouco provável que inviabilizem o único organismo poderoso de
consultas e decisões, quando a única alternativa disponível é uma ONU
paralisada.
Mundo em blocos
Folha de S. Paulo
Lula eleva tom ao assumir o G20; embate
global dificulta protagonismo brasileiro
Como numa proverbial profecia
autorrealizável, a reunião de cúpula do G20 na Índia, encerrada no domingo
(10), coroou um momento de divisões mundiais quase inconciliáveis, em que os
interesses nacionais falam mais alto.
Pior para Luiz Inácio Lula da Silva (PT),
presidente que vive fixado nos anos 2000, quando o boom das commodities colocou
o Brasil em um lugar provisório de destaque na arena internacional —e o
petista, como símbolo daquela era.
Lula voltou ao poder com a imagem do país
abalada por Jair Bolsonaro (PL) no cenário mundial, um presente em termos de
projeção e aceitação potenciais.
Em tese, a presidência
rotativa do G20 daria a Lula, a partir de dezembro, um palanque global para
suas pretensões, ainda por cima somado ao período final de sua liderança
temporária no Mercosul.
A realidade de um planeta conflagrado e
cada vez mais obediente à lógica de blocos —apesar da interdependência vigente
entre as potências rivais em Washington e Pequim— dificulta tal plano.
Em Nova Déli, por exemplo, Lula fez o
previsível, mas correto, discurso acerca da falta de contrapartida de nações
mais desenvolvidas quando o tema é o ambiente.
Na hora de deixar a retórica, o petista
encontrou a parede. Fez queixas
duras ao francês Emmanuel Macron, tachando de ofensivas as
exigências ambientais adicionais que a União Europeia incluiu na negociação
sobre o acordo de livre comércio com o Mercosul.
Se tem razão ao dizer que elas são uma
reação aos anos de descaso bolsonarista, faltou a Lula explicar o próprio
protecionismo, que quer ver instalado no acerto em nome da suposta
reindustrialização pregada em seu governo. E isso para não falar da perene e
algo bizantina busca de uma vaga no Conselho de Segurança da ONU.
Lula meteu os pés entre as mãos novamente
sobre a Guerra da Ucrânia, ao dizer que Vladimir Putin nunca seria preso no
Brasil sob seu governo, embora a obrigação legal de cumprir a ordem do Tribunal
Penal Internacional seja da Justiça. Estrago
feito, recuou —e mal.
O petista pode até ter o sucesso que seu
antecessor à frente do G20 (o premiê Narendra Modi) teve, mas aí importam as
condições objetivas: a Índia e sua economia são o destaque da vez na política
global, tanto que o americano Joe Biden foi suave ao falar da guerra.
A hipocrisia ocidental se fez presente no
texto final do encontro, em que os países ricos aceitaram diluir até a natureza
da conflito em que armam e apoiam Kiev, para evitar que a ausente China ficasse
com os louros políticos de uma debacle total da cúpula do G20.
Nesse cipoal, o protagonismo brasileiro se torna mais difícil.
A Lava Jato 2.0
O Estado de S. Paulo
O STF parece empenhado em repetir, nas
investigações contra Bolsonaro, os erros da Lava Jato. Não será surpresa se,
como na malfadada operação, as provas também forem invalidadas
Há algum tempo se verificam perigosas
semelhanças entre os métodos utilizados na Operação Lava Jato e o que vem
fazendo o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), no
âmbito dos inquéritos das milícias digitais e atos antidemocráticos. No mês
passado, este jornal alertou para a compreensão excessivamente ampla da
competência judicial adotada por Alexandre de Moraes, com base no critério da
conexão entre causas (ver o editorial Abusos favorecem a impunidade, de
15/8/2023). Ali advertimos que o sr. Moraes não é juiz universal dos casos
envolvendo Bolsonaro. Ora, foi esse equívoco sobre a competência da 13.ª Vara
Federal de Curitiba que levou à anulação das condenações de Luiz Inácio Lula da
Silva.
No entanto, Alexandre de Moraes não apenas
parece indiferente a toda a jurisprudência relativa aos abusos da Lava Jato,
como resolveu dobrar a aposta. No sábado passado, homologou a delação premiada
do tenente-coronel Mauro Cid e, em seguida, suspendeu a prisão preventiva do
militar, ex-ajudante de ordens do ex-presidente Jair Bolsonaro.
Ainda são desconhecidos os termos da
colaboração de Mauro Cid e se ela contribuirá efetivamente para a elucidação de
eventuais crimes. De toda forma, é possível apontar dois pontos especialmente
graves nessa história.
Primeiro, prisão preventiva não é meio para
obtenção de confissão ou delação. Muito utilizado na época da Lava Jato como
forma de pressionar pessoas investigadas, esse método foi declarado ilegítimo
pelo Judiciário e pelo próprio Legislativo, que, com a experiência da operação,
aprovou a Lei 13.964/2019, fixando de forma ainda mais categórica as condições
para a decretação da prisão.
No entanto, Alexandre de Moraes explicitou
que a prisão de Mauro Cid tinha apenas o propósito intimidador, pois, tão logo
foi homologada a delação premiada, o ministro determinou a soltura do militar.
Vale lembrar que a prisão havia sido decretada em maio no âmbito da Operação
Venire, sobre supostas fraudes em carteiras de vacinação. Ou seja, a medida já
suscitava graves suspeitas de desproporção e de utilização para fins não
previstos na lei. Agora, tais suspeitas adquiriram patamar de certeza.
Um segundo ponto especialmente sério
refere-se a quem participou, por parte do Estado, no acordo de delação
premiada. O acordo com Mauro Cid foi celebrado pela Polícia Federal, sem a
participação do Ministério Público. É certo que, em 2018, no auge do entusiasmo
nacional com a figura da delação, o STF autorizou que a polícia celebrasse
sozinha esse tipo de acordo. No entanto, em 2021, o próprio Supremo mudou sua
orientação, reconhecendo que não faz sentido haver delação sem o aval do
Ministério Público, órgão titular da ação penal pública. Sob esse argumento, o
plenário do STF anulou, por maioria de votos, a colaboração premiada celebrada
entre a Polícia Federal e o ex-governador do Rio de Janeiro Sérgio Cabral. Na
ocasião, Alexandre de Moraes votou pela necessidade do aval do Ministério
Público.
É inquietante e muito constrangedora essa
instabilidade do Judiciário, cuja orientação jurídica parece depender das
circunstâncias políticas e de quem figura entre os investigados. A homologação
da delação e a soltura de Mauro Cid ocorreram na mesma semana em que o ministro
Dias Toffoli anulou todos os atos da Justiça tomados a partir do acordo de
leniência firmado pela Odebrecht – e ainda classificou a prisão de Lula como
“um dos maiores erros judiciários da história do País”.
Surgem, então, duas perguntas. Primeira: se
o mesmíssimo erro que ora desmoraliza a Lava Jato é cometido por um ministro do
Supremo, deixa de ser erro? Segunda: quanto tempo levará para que as provas
obtidas por essas investigações no STF, incluídas as da nova delação, sejam
consideradas nulas pela Justiça? São perguntas retóricas, claro. Assim como no
auge da Lava Jato tudo parecia permitido porque o objetivo declarado era
condenar Lula da Silva, hoje tudo parece válido para incriminar Jair Bolsonaro.
Não era justiça então, não é justiça agora.
O duvidoso pente-fino na Previdência
O Estado de S. Paulo
Só reformas estruturais seriam capazes de
trazer resultados efetivos para conter despesas. Governo precisa reconhecer
esse fato e dar o exemplo, mas o Legislativo precisa fazer sua parte
O secretário executivo do Ministério do
Planejamento e Orçamento, Gustavo Guimarães, reconheceu que o governo não conseguirá
zerar o déficit fiscal no ano que vem se apostar suas fichas apenas no aumento
das receitas. Em entrevista ao Estadão, Guimarães, que é o número dois na pasta
liderada pela ministra Simone Tebet, disse que o governo necessariamente terá
de rever gastos para cumprir a meta.
Vindo de um governo petista, partido que
demonstra aversão a corte de despesas, a admissão dessa necessidade pelo
secretário executivo certamente é algo a ser celebrado. Ele expressa, ademais,
aquilo que muitos especialistas em contas públicas já têm alertado há algum
tempo, desde a apresentação do arcabouço fiscal pelo ministro da Fazenda,
Fernando Haddad.
Mas, no debate sobre corte de gastos, o
diabo mora nos detalhes. O foco inicial da estratégia da revisão de despesas,
segundo Guimarães, será o combate a fraudes, com destaque para os benefícios
pagos pela Previdência Social. “Vamos começar a atuar naquilo que tem um
impacto maior e indícios de fraude”, afirmou. Embora não tenha citado números,
Simone Tebet já havia estimado as irregularidades em algo entre R$ 10 bilhões e
R$ 20 bilhões.
Ora, em primeiro lugar, cancelar benefícios
irregulares é mera medida administrativa para reverter aquilo que jamais
deveria ter sido concedido. Não pode, portanto, ser classificado como corte de
despesas. Em segundo lugar, não é improvável que haja benefícios irregulares e
passíveis de cancelamento. No entanto, as estimativas apresentadas pelo governo
sobre o resultado desses pentes-finos costumam revelar-se bem mais otimistas do
que a realidade costuma autorizar.
É o que tem ocorrido no processo de revisão
dos pagamentos concedidos por meio do antigo Auxílio Brasil, hoje Bolsa
Família. Entre os milhões de famílias excluídas e contempladas com os
benefícios, o valor reservado para o programa no Orçamento em 2024 foi
praticamente o mesmo que o deste ano, cerca de R$ 168 bilhões – a despeito dos
indícios de que a base teria sido inflada durante a campanha eleitoral do
ex-presidente Jair Bolsonaro.
No caso dos benefícios previdenciários, a
previsão de gastos para o ano que vem é de R$ 914 bilhões, o equivalente a 8%
do Produto Interno Bruto (PIB). Por óbvio, reavaliar processos internos para
tornar o processo de concessão desses pagamentos mais rígido é uma medida que
deveria ter caráter permanente, mesmo porque eles representam uma das
principais rubricas do Orçamento.
No entanto, há uma série de obstáculos para
implementar essa política. Às dificuldades operacionais que o governo já teria
para fazer a revisão em um contexto de filas, soma-se o fato de que vários dos
benefícios cessados, mais tarde, acabam por ser restabelecidos pela Justiça – o
que explica o tamanho da conta dos precatórios, outro problema fiscal a ser
enfrentado pela União.
Não se trata de desqualificar o esforço do
governo para fechar torneiras por onde o dinheiro se esvai, mas de ser mais
realista quanto ao resultado dessas propostas. Na maioria dos casos, somente
reformas estruturais seriam capazes de trazer resultados relevantes no médio e
longo prazos. O Executivo precisa reconhecer esse fato, dar o exemplo e propor
medidas que vão além de pentes-finos e de planos de recuperação de receitas,
bem como ser mais contido a respeito do potencial de arrecadação de cada uma
dessas ações.
O Legislativo também precisa fazer sua
parte. Além de aprovar medidas que acabem com privilégios tributários indevidos
a alguns segmentos, os parlamentares precisam dar um freio a propostas que
representem novas renúncias para a União. Na situação em que o País se
encontra, por exemplo, não há qualquer espaço nem justificativa para aprovar a
desoneração da folha de pagamento dos municípios.
A definição da meta é uma decisão de
governo, mas atingi-la depende de um esforço coletivo. Por mais irreal que ela
seja, mantê-la inalterada, neste momento, não é capricho, mas algo essencial no
longo caminho rumo à recuperação da credibilidade do País.
A necessária revitalização do G-20
O Estado de S. Paulo
Apesar de o bloco viver um nadir geopolítico, houve avanços que cabe ao Brasil continuar
“Uma Terra, Uma Família, Um Futuro.”
Idealmente, o slogan da presidência da Índia do G-20, que culminou com a cúpula
do fim de semana, representa as melhores aspirações do grupo que congrega as 19
maiores economias do mundo mais a União Europeia, incluindo países
desenvolvidos e em desenvolvimento de todos os continentes. Sua primeira
cúpula, em 2009, foi decisiva para mitigar a crise financeira global. À época,
seu presidente, o premiê britânico Gordon Brown, disse que a cúpula
representava “um mundo se unindo”. Mas, se o atual presidente, Narendra Modi,
fosse acometido por um surto de sinceridade, seria obrigado a dizer que esta
cúpula representou “um mundo se desagregando”.
A crise da globalização, as fraturas do
sistema multilateral, as tensões entre EUA e China e a guerra na Ucrânia
minaram a cooperação do G-20 no momento em que ela é mais necessária. Faltou
pouco para que a cúpula se encerrasse, pela primeira vez, sem uma declaração
conjunta.
A ausência de Vladimir Putin, pelo segundo
ano, era esperada. Mais sintomática foi a ausência inédita do líder chinês, Xi
Jinping. Ela tem uma motivação tática e talvez estratégica. Pequim tentou
diluir a atuação da Índia, com quem rivaliza na Ásia e disputa a liderança do
Sul Global. Mas a manobra também sinaliza a intenção da China de privilegiar
fóruns onde tem ingerência. A ausência de Xi contrastou com seu protagonismo
ostensivo para ampliar o Brics.
A suavização das críticas à invasão russa
foi uma solução de compromisso para valorizar a presidência da Índia, com quem
o Ocidente busca aprofundar laços para desestabilizar as ambições chinesas.
Nesta linha estão as demonstrações de apoio e cooperação com o mundo em
desenvolvimento, como a Aliança Global para Biocombustíveis, liderada por EUA,
Brasil e Índia, ou o anúncio de um megaprojeto para interligar o Sul da Ásia ao
Golfo Árabe e à Europa, em contraponto à Rota da Seda chinesa.
Sob a presidência da Índia, a União
Africana se tornou membro do G-20, e foram promovidos avanços na reestruturação
dos bancos de desenvolvimento multilaterais, da dívida dos países em
desenvolvimento e das finanças climáticas.
São pontos que o Brasil, que assume a
presidência, pode dar continuidade. O País tem pouca alavancagem para
interferir nas fricções das placas tectônicas geopolíticas, e as condições de
cooperação na cúpula de Brasília em 2024 podem estar ainda mais periclitantes.
Mas, se focar na agenda econômica e, especialmente, na ambiental, o País pode
dar uma relevante contribuição.
Idealmente, o lema anunciado pelo
presidente Lula – “Construindo um Mundo Justo e um Planeta Sustentável” – vai
nessa direção. Na prática, suas declarações fazendo pouco-caso dos compromissos
do Brasil com o Tribunal Penal Internacional ou recriminando os países ricos
pela crise climática podem prejudicar essa “construção”.
“Uma Terra” é uma realidade inescapável. Mas, se o G-20 não encontrar os meios de revitalizar o multilateralismo para unir uma “família” em franca desagregação, o futuro será cada vez menos promissor.
Saúde pública, desafio global
Correio Braziliense
Em entrevista ao Correio, no último domingo, a ministra da Saúde, Nísia Trindade, resgatou a importância de uma política pública de saúde para combater pandemias e outras emergências sanitárias
Em entrevista ao Correio, no último
domingo, a ministra da Saúde, Nísia Trindade, resgatou a importância de uma
política pública de saúde para combater pandemias e outras emergências
sanitárias. Trindade vai além: afirma que a tragédia da covid-19 deixou como
doloroso ensinamento de que não é possível falar em cooperação internacional e
programas de desenvolvimento sem levar em conta as questões de saúde.
Oficialmente, a pandemia matou 7 milhões de
pessoas. Mas a Organização Mundial de Saúde estima que esse número pode chegar
a 20 milhões — praticamente o triplo de casos fatais. A disparidade reside
precisamente na diferença das políticas públicas de saúde, que se manifesta
inclusive na coleta de dados. Ainda é recente na memória nacional, para
exemplificar, as manobras do governo Bolsonaro em escamotear o avanço da
pandemia. Foi preciso que se criasse uma contabilidade paralela, lastreada nas
estatísticas das secretarias estaduais de saúde, para mostrar à sociedade
brasileira o real diagnóstico da covid. Tempos obscuros.
Na próxima semana, a ministra Nísia
Trindade acompanhará o presidente Lula na Assembleia Geral da ONU, em Nova
York. Participará de três reuniões de cúpula para tratar especificamente de
questões ligadas à saúde. A tônica dos encontros é precisamente encontrar
caminhos para que governos possam dar respostas rápidas e eficientes ao avanço
de doenças infecciosas, como covid e tuberculose. Nesse contexto, é fundamental
fortalecer o atendimento primário. Urge ampliar a estrutura pública — particularmente
em países com grande desigualdade social, como o Brasil — para a população mais
vulnerável não seja ainda mais penalizada por viver em condições precárias.
Robustecer o Sistema Único de Saúde
significa, portanto, investir no futuro. Trata-se de ação essencial para evitar
gastos emergenciais com internação, tratamento e recuperação de cidadãos
acometidos por doenças com potencial endêmico. A tragédia da pandemia de
covid-19 mostrou, de maneira cristalina, que é preciso buscar uma estrutura que
permita ao governo ter instrumentos adequados de enfrentamento de crises dessa
magnitude — preparação esta que vai da disponibilidade de profissionais à
produção de insumos. "A pandemia é um marcador social de muitos problemas,
que vão desde a estruturação adequada dos sistemas de saúde e a sua capacidade
de responder a situações de emergência até essas questões da industrialização
necessária", resume Trindade. Trata-se, portanto, de uma diretriz de
Estado, da qual nenhum governo que preze a vida dos cidadãos pode prescindir. É
um esforço que transcende governos, incompatível com visões terraplanistas de
políticas de saúde.
É preciso lembrar, ainda, que saúde pública de qualidade não constitui tarefa apenas do gestor de plantão. O cidadão também tem o dever de contribuir para mitigar os riscos de uma emergência sanitária. Em 2023, o país está em plena guerra das vacinas, a fim de convencer uma parcela significativa da população sobre a fulcral importância de aderir à imunização. O governo tem investido em campanhas, mas ainda há tempo para o brasileiro despertar a autoconsciência, o espírito cívico e a empatia. O Brasil já foi referência na erradicação e enfrentamento de doenças como pólio, tuberculose e varíola, mas sofre hoje de baixíssima cobertura vacinal. Além de cobrar diligência das autoridades, a sociedade precisa valorizar e colaborar para que se cumpra o preceito constitucional de que saúde é direito de todos e dever do Estado.
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