Folha de S. Paulo
É urgente que o governo federal cumpra a
promessa de restabelecer comissão
Dentre as políticas públicas atacadas
por Jair
Bolsonaro, aquelas relacionadas aos direitos à memória, verdade, justiça e
reparação foram particularmente atingidas. De forma emblemática, uma das
últimas medidas de seu governo foi a extinção da Comissão
Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP), instituída pela
lei 9.140/95.
Órgão de Estado criado por Fernando Henrique Cardoso, a comissão tem como missão reconhecer os mortos e desaparecidos políticos da ditadura militar, bem como envidar esforços para a localização dos corpos de desaparecidos. É patente, assim, a ilegalidade da extinção do órgão, uma vez que ele está longe de cumprir seu objetivo legal.
Essa ilegalidade foi reconhecida pelo atual
governo por meio de reiteradas declarações de seus membros, que se
comprometeram publicamente com a reinstalação da CEMDP. Honrando o compromisso,
o Ministério dos Direitos
Humanos e da Cidadania produziu
uma minuta de decreto sobre o tema e a enviou à Casa Civil,
onde, no entanto, o processo encontra-se parado desde abril, como
já noticiado por esta Folha em
15 de agosto.
O atual ciclo político pode representar uma
última oportunidade para o cumprimento de algumas das obrigações internacionais
do Estado brasileiro em relação às graves
violações de direitos humanos da ditadura militar. Muitos dos familiares de
vítimas estão nos deixando sem que tenham as respostas pelas quais lutaram por
décadas. Assim, cada dia de atraso na reconstituição da CEMDP é grave.
Mas a reinstalação da CEMDP não responde
apenas à necessidade de saldar os passivos da transição democrática. O órgão
pode desempenhar papel estratégico em agendas do presente, com as quais o
governo também tem se mostrado comprometido.
Por um lado, ao atuar no fortalecimento da
democracia. O número oficial de 434 mortos e desaparecidos
políticos está longe de representar a totalidade de vítimas do regime.
Temos uma enorme lacuna no reconhecimento público das violências perpetradas
pela ditadura contra os camponeses, os povos indígenas e a população negra.
Ampliar o conhecimento sobre a extensão da violência ditatorial,
incorporando os recortes de gênero, raça, classe, território e orientação
sexual é fundamental para que se constitua uma consciência crítica acerca dos
riscos do autoritarismo.
Por outro lado, o órgão reúne uma
importante expertise técnica, especialmente no campo da antropologia e da
arqueologia forenses, que pode ser colocada à disposição para o esclarecimento
dos crimes do Estado de outros períodos históricos, inclusive os que são
perpetrados hoje.
Como se vê, a CEMDP tem ainda muitos papeis
a cumprir na defesa da democracia e na luta contra toda forma de autoritarismo
e violência, do passado e do presente. Por isso, entendemos ser urgente que o
atual governo federal cumpra definitivamente esse compromisso já assumido com a
sociedade brasileira, com os familiares das vítimas e com os sistemas
internacionais de proteção dos direitos humanos.
Belisário dos Santos Jr.
Ex-membro da CEMDP e integrante da Comissão Arns
Paulo Abrão
Ex-presidente da Comissão de Anistia, ex-secretário-executivo da Comissão
Interamericana de Direitos Humanos e ex-secretário nacional de Justiça
Pedro Dallari
Diretor do Instituto de Relações Internacionais da USP e ex-coordenador da
Comissão Nacional da Verdade
Sirlene Assis
Presidenta do Grupo Tortura Nunca Mais da Bahia
Nenhum comentário:
Postar um comentário