segunda-feira, 30 de outubro de 2023

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

Governo acerta ao corrigir reforma do ensino médio

O Globo

Apesar de imperfeita, proposta aumenta carga horária de disciplinas básicas e inibe aberrações no currículo

O Projeto de Lei (PL) com mudanças para o Novo Ensino Médio enviado ao Congresso pelo governo na semana passada representa um avanço, embora ainda possa ser aperfeiçoado pelos deputados e senadores. Dada a relevância da educação para o Brasil, seja pela dimensão econômica — devido ao impacto na capacitação da mão de obra —, seja pela social — por ser um trampolim para a renda futura dos jovens —, espera-se que os congressistas dediquem o tempo e o esforço necessários.

A questão de fundo levantada pelo PL é a necessidade de transformar o quadro atual. A pontuação média dos alunos do terceiro ano nas provas do Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) está estagnada desde 2001. Os estudantes com nível de conhecimento adequado em matemática não passam de 10%. Em português a média dos últimos anos é um pouco melhor, mas baixa, inferior a 30%.

As disciplinas sempre foram ensinadas como se fossem desconectadas, e o conhecimento é pouco aplicado à vida real. Não surpreende que nos testes internacionais os brasileiros sigam na retaguarda. Metade não tem a proficiência considerada mínima em leitura para participar plenamente da vida social, econômica e cívica, pela medida da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). A evasão diminuiu, mas segue alta (apenas 65 de cada cem alunos de 19 anos completam o ensino médio). Para os jovens, o ensino é há muito tempo desinteressante. A escola no Brasil é ruim, do século XX.

Uma lei de 2017 buscou enfrentar o problema reformulando o currículo. Com base nas melhores práticas internacionais, aumentou a carga horária e o dividiu em dois blocos. Um com disciplinas básicas, como português ou matemática, outro com programas para aprofundar conhecimento, oferecer formação técnica e profissional. Quando a mudança começou a ser posta em prática, os erros apareceram. Ficou nítido que o teto de 1.800 horas em três anos para disciplinas básicas era baixo. A falta de parâmetros para que os estados definissem os programas interdisciplinares deu margem a aberrações como cursos para fazer brigadeiro.

Ao assumir, o ministro da Educação, Camilo Santana, decidiu imprimir um freio de arrumação. Quando anunciou uma consulta pública no começo do ano, muitos temeram que se dobraria à pressão de sindicatos para barrar a reforma do ensino médio. Felizmente, o PL levado ao Congresso enterrou os temores. A essência da reforma anterior foi mantida, com diversificação curricular, integração com educação profissional e aumento da carga horária.

O texto estabelece um piso de 2.400 horas para as disciplinas básicas, proíbe o uso do ensino à distância na formação geral, impõe parâmetros e diminui a carga horária no currículo diversificado. As propostas vão na direção correta, mas merecem ser examinadas com cuidado. O piso do currículo básico pode ter impacto na oferta de cursos técnicos para quem opta pelo ensino profissionalizante. Falta também um piso para a carga do currículo diversificado.

Apenas mudar o currículo não fará dos nossos jovens alunos exemplares. A transformação do ensino médio exigirá esforço maior. Deverá incluir, entre outros aspectos, a capacitação dos professores. Ainda que não resolva tudo, o PL é parte fundamental da mudança. Por isso é crucial o Congresso não perder a chance de aprová-lo.

Ditadura venezuelana continua a criar ambiente propício à corrupção

O Globo

Denúncia de desvio de US$ 2 bilhões da estatal petrolífera expõe limites da distensão ensaiada por Maduro

O ditador venezuelano Nicolás Maduro ocupou o noticiário nos últimos dias pelos movimentos de distensão na direção dos opositores do chavismo. Depois do anúncio de um acordo com a oposição para permitir “eleições livres” no ano que vem e da libertação de cinco presos políticos, obteve dos Estados Unidos a suspensão temporária do embargo à compra de petróleo e outros produtos venezuelanos. O movimento de Maduro semeou a esperança de uma transição sem traumas para a democracia, mas o caráter arbitrário e essencialmente corrupto do regime chavista não mudou, como revela um relatório da Unidade de Inteligência Financeira de Andorra (Uifand) a que obteve acesso o jornal espanhol El País.

O documento traz informações fartas sobre esquemas de enriquecimento ilícito no universo chavista, com registro de operações financeiras e imobiliárias de antigos altos funcionários do chavismo. Os esquemas fizeram desaparecer ilegalmente da estatal petrolífera Petróleos de Venezuela S.A (PDVSA) pelo menos US$ 2 bilhões, segundo o relatório. Uma das instituições financeiras usadas pelos chavistas para lavar o dinheiro foi a Banca Privada d’Andorra, que sofreu intervenção em 2015, quando um tribunal do principado começou a investigar as falcatruas. Andorra vem passando por reformas nos últimos anos, sob pressão da União Europeia, que exige mais transparência em seu sistema bancário.

Por trás da bilionária movimentação de dinheiro dos chavistas, verificada entre 2007 e 2012, a investigação identificou um testa de ferro da organização criminosa: o empresário Luis Mariano Rodríguez Cabello, que confessou ter usado uma rede de empresas-fantasmas para comprar pelo menos 19 imóveis na Venezuela e em Miami, a preços entre US$ 304 mil e US$ 5,5 milhões. Apenas em um edifício de Caracas, Cabello comprou seis imóveis. Um dos apartamentos que comprou foi dado de presente à representante da Venezuela no concurso Miss Universo.

Ao canalizar os recursos desviados para imóveis, a corrupção chavista repete prática comum na América Latina. Assentada sobre a maior reserva de petróleo do mundo e sujeita a todo tipo de interferência do governo em sua gestão, a PDVSA tem oferecido aos corruptos venezuelanos uma oportunidade sem igual. Os esquemas cobram comissões sobre as exportações de petróleo. É um alerta aos Estados Unidos, que, pressionados pela alta no barril do petróleo e pelas guerras na Ucrânia e no Oriente Médio, decidiram voltar a comprar óleo da Venezuela. Será preciso que tomem todo o cuidado para não alimentar as falcatruas em torno da PDVSA.

Diante da piora fiscal, governo deveria falar a mesma língua

Valor Econômico

Presidente Lula diz que não quer fazer cortes em investimentos e que meta de déficit zero dificilmente será atingida

Os resultados fiscais estão piorando. De janeiro a setembro, as contas do governo central tiveram um déficit fiscal (receitas menos despesas, excluindo juros) de R$ 93,37 bilhões. O projeto de lei orçamentária para o ano permite resultado negativo de R$ 228,1 bilhões, mas o governo prometeu que o déficit seria menor, da ordem de R$ 100 bilhões. Na sexta-feira, com as estatísticas de setembro, o secretário do Tesouro, Rogério Ceron, disse que o buraco será maior do que o previsto, de 1% a 1,2% do PIB. Para 2024, quando estreia o novo regime fiscal, a meta é zerar o déficit. Faltam R$ 168 bilhões em receitas adicionais para isso, algo muito difícil de ser obtido.

Pouco tempo depois que o Tesouro apresentou os números, o presidente Lula, em sua primeira entrevista coletiva após a cirurgia a que se submeteu, disse que a meta de déficit zero não deverá ser cumprida e insinuou que o piso inferior de variação do regime (déficit de até 0,25% do PIB em 2024) pode ser o objetivo. “Nós dificilmente chegaremos à meta zero, até porque eu não quero fazer cortes em investimentos e obras”, disse o presidente. “A gente não precisa disso”. Lula acrescentou: “Eu não vou estabelecer uma meta fiscal que eu tenho que começar o ano fazendo corte de bilhões nas obras que são prioritárias nesse país. Se o Brasil tiver um déficit de 0,25% (do PIB), o que é 0,25%? Nada”.

O novo regime fiscal necessita de aumento de arrecadação para se sustentar, já que prevê aumento contínuo de despesas. Mas contribuiu para acalmar os investidores em relação às piores expectativas existentes sobre o que o PT faria após o fim do teto de gastos, isto é, a perspectiva de uma explosão do endividamento público. O novo regime impede um crescimento rápido da dívida, mas precisa mostrar que funciona de acordo com as premissas que estabeleceu. O presidente, porém, as pôs agora em dúvida, assim como subvalorizou o trabalho do ministro da Fazenda e de sua equipe.

O governo Lula iniciou o ano sob o signo da PEC da Transição, que lhe deu autorização para gastar R$ 165 bilhões a mais do que permitia o finado teto de gastos. O ministro Fernando Haddad se esforça para reduzir o déficit neste ano e cumprir a meta no próximo. A situação das contas públicas não é um desastre, até mesmo porque a economia crescerá mais (3,1%) este ano do que em 2022. Tesouro e Banco Central tiveram superávit de R$ 155 bilhões no ano até setembro, que se transformou em déficit quando contabilizado o rombo da previdência, de R$ 251 bilhões. Houve o aumento previsto de R$ 55,8 bilhões no Bolsa Família e de R$ 12 bilhões na Saúde.

Mas o secretário do Tesouro disse que houve alguma frustração de receitas, além de despesas imprevistas que afetam ou afetarão o resultado no ano, como a antecipação da compensação aos Estados (R$ 20 bilhões) e a demora na aprovação do voto de qualidade do Carf, que poderá trazer R$ 10 bilhões dos R$ 50 bilhões esperados no exercício com a medida. A progressiva regularização da fila da concessão de aposentadorias elevou as despesas no ano em R$ 29,8 bilhões. O governo também deixará de contar com R$ 15 bilhões dos depósitos judiciais da Caixa Econômica Federal. Com isso, o resultado fiscal do ano deverá ficar mais próximo do estimado pela quarta avaliação bimestral de receitas e despesas - déficit de R$ 141 bilhões.

As receitas administradas pela Receita Federal encolheram 2% no ano, ou R$ 22 bilhões. Mas é a enorme queda da arrecadação não administrada pela Receita que tem um peso decisivo no aumento do rombo - está R$ 101 bilhões menor que no mesmo período de 2022. A redução nas receitas de concessões e permissões, de 86%, foi de R$ 38,48 bilhões; a dos dividendos e participações, de R$ 40,64 bilhões; e a de exploração de recursos minerais, de R$ 22,27 bilhões. O governo tem responsabilidade nas duas primeiras, ao se mostrar pouco interessado em deslanchar concessões e defender que a Petrobras, a grande fonte de dividendos para o governo federal, os diminua. A redução dos preços do petróleo afetou os recursos coletados da extração mineral. Feitas todas as contas, as receitas totais até setembro caíram R$ 56,9 bilhões.

Como a economia terá alguma desaceleração no terceiro e no quarto trimestres, as receitas possivelmente não mudarão de tendência. Um resultado pior no ano dificultará a zeragem do déficit em 2024, para o qual haverá ainda grandes dificuldades para aumentar recursos. A lentidão na obtenção de recursos extras não se deve à negligência da equipe econômica, mas à arrastada e difícil negociação dos caciques do Congresso, reunidos no Centrão, para obter posições nos ministérios e estatais do governo Lula. E há possível superestimação do impacto das medidas previstas, como a da arrecadação decorrente de decisão judicial sobre o uso do ICMS para abater impostos federais.

Diante de uma meta fiscal difícil de ser obtida, o governo deveria falar a mesma língua e agir na mesma direção. Mas é o presidente Lula, a quem cabe comandar politicamente esse esforço, que vem a público dizer que a meta inaugural do novo regime fiscal de seu governo não deverá ser cumprida - e de uma forma que indica que isso parece não ter qualquer importância.

Concessões demais

Folha de S. Paulo

Tramitação da reforma tributária avança, mas distorce plano com mais benefícios

Avançou no Senado a reforma constitucional que altera a cobrança de impostos sobre bens e serviços. Como era esperado, o relator, Eduardo Braga (MDB-AM), fez novas concessões que pioram o texto encaminhado pelo governo.

A proposta agora abre mais exceções à regra básica de garantir o mesmo tratamento a todos os setores —solução ideal no entendimento de especialistas.

Necessidades políticas já haviam garantido diferenciação na versão da Câmara. Em vez da alíquota cheia, segmentos como educação, saúde e transportes pagarão 40% do padrão, a ser definido ainda em lei complementar.

Braga elevou a lista de áreas beneficiadas e criou outra categoria especial para certos profissionais liberais, como advogados e médios, que pagarão 70% do padrão geral. Eis uma concessão indevida por pressões corporativistas.

A consequência das exceções é elevar a alíquota geral, originalmente pensada em 25%. Não se sabe ainda o resultado final, mas não será surpresa se as atividades não beneficiadas forem oneradas em cerca de 27%, talvez mais. Também há chance de mais tratamentos especiais na tramitação —a peça precisa passar por comissões e plenário do Senado e voltar para votação final na Câmara.

No geral, porém, o relatório ainda preserva o cerne da proposta, que é a unificação dos tributos federais (PIS-Confins), estadual (ICMS) e municipal (ISS) em duas cobranças, não cumulativas e incidentes no destino do consumo.

Outro ponto controverso é o do fundo de desenvolvimento regional que direcionará recursos da União para os entes federativos. O governo queria R$ 40 bilhões e o relator aumentou o montante para R$ 60 bilhões, a ser atingido em prazo maior. Congressistas querem subir mais, para R$ 75 bilhões.

É inevitável que a alteração traga custos, pois a mudança de fato significa o fim dos incentivos tributários, a chamada guerra fiscal. Pela nova lógica, subvenções serão orçamentárias, o que é indesejável, mas inevitável politicamente em função de desigualdades regionais.

Mesmo diante de tantas modificações, a premissa de simplificação e máxima neutralidade possível para decisões econômicas está mantida e pode trazer resultados positivos palpáveis para a economia.

Deve-se, portanto, proceder com a tramitação para encerrar este capítulo, que já dura 30 anos. O país não pode mais prescindir de um sistema moderno e alinhado às melhores práticas internacionais.

No mundo atual, em que as cadeias produtivas passam por profundo redesenho, é essencial colocar o Brasil no radar dos investimentos, objetivo para o qual a reforma certamente é muito positiva.

Estressadas, e com razão

Folha de S. Paulo

Políticas públicas podem sanar injusta dupla jornada de trabalho das mulheres

O avanço social das mulheres a partir da segunda metade do século 20 não foi acompanhado por políticas públicas e mudanças culturais que se adaptassem a essa transformação no papel do gênero feminino.

Elas lutaram para entrar no mercado de trabalho, mas continuaram sendo as principais responsáveis por tarefas domésticas e cuidados com familiares. O resultado é uma dupla jornada de trabalho que impacta a saúde mental desse estrato da população.

Segundo levantamento da ONG Think Olga, 13,3 mulheres a cada 100 mil habitantes no mundo sofrem com transtornos psicológicos, ante 11,9 homens. No Brasil, a diferença é ainda maior, com 19 e 14,5, respectivamente.

A pesquisa constatou que 55% delas se sentem ansiosas e 49%, estressadas; 45% já foram diagnosticadas com ansiedade ou depressão.

Ademais, 86% das brasileiras afirmam ter sobrecarga de responsabilidades, 48% vivem com problemas financeiros e 57% das que têm entre 36 e 55 de idade são responsáveis pelo cuidado direto de alguém.

Dados do IBGE de 2022 respaldam esses resultados. Se 40,69% das mulheres com três filhos ou mais não conseguem trabalhar, apenas 0,62% dos homens estão nesta situação —mesmo com apenas um filho, o abismo é de 21,89% e 0,55%. As brasileiras usam 21,3 horas por semana para administrar o lar e eles, só 11,7.

O impacto da maternidade, do cuidado com idosos —que também recai sobre as mulheres— e das tarefas domésticas geram a sobrecarga relatada pelas entrevistadas, dificuldade para conseguir emprego e baixos salários que geram insegurança financeira.

Estudos da pesquisadora Claudia Goldin, vencedora do prêmio Nobel de Economia neste ano, mostram que a dupla jornada de trabalho feminina, notadamente com a maternidade, faz com que as mulheres optem por empregos com jornadas menores ou mais flexíveis, que tendem a pagar menos do que aqueles que exigem dedicação em tempo integral.

Assim, além de dar foco às mulheres na atenção básica do SUS, para detectar sintomas de problemas mentais em seu nascedouro, são necessárias ações nas causas.

No âmbito cultural, homens devem compartilhar tarefas domésticas. Já na seara pública, pode-se estender a licença paternidade e ampliar a rede pública de creches —só 36% das crianças de até 3 anos no país nelas estão matriculadas.

A irresponsabilidade de Lula

O Estado de S. Paulo

Presidente presta desserviço ao País quando menospreza importância de atingir déficit zero, meta que o próprio governo se impôs e nem chegou a ser testada

Em um surto de sinceridade, o presidente Lula da Silva afirmou que a meta de zerar o déficit fiscal no ano que vem não precisa ser cumprida. Segundo ele, o resultado dificilmente será atingido sem a realização de cortes orçamentários em investimentos e obras públicas, algo que ele não deseja fazer. “A gente não precisa disso”, disse o presidente, referindose à meta de déficit zero, em café com jornalistas no Planalto na sexta-feira passada.

Quem escolhe a vida pública sabe que existem muitas coisas que não devem ser ditas – não porque elas não sejam verdade, mas pelos efeitos indesejados que essas verdades podem gerar. Mas foi exatamente isso que o presidente fez na semana passada, ao jogar uma pá de cal sobre a meta a que o próprio governo se impôs.

Havia sido uma semana muito positiva no mercado financeiro. A prévia da inflação reforçou as apostas dos analistas sobre a manutenção do ritmo de redução da taxa básica de juros. Após a fala do presidente, o dólar voltou a romper o patamar de R$ 5,00, a bolsa caiu e os juros futuros dispararam, desancorando expectativas que guiam as decisões do Banco Central (BC) a menos de uma semana da reunião em que o Comitê de Política Monetária (Copom) anunciará a taxa básica de juros.

Como esperado, a presidente do PT, deputada Gleisi Hoffmann (PR), saiu em defesa do chefe. Segundo ela, o mercado financeiro teve uma reação irracional, pois nunca acreditou de fato na meta do déficit zero. Hoffmann, no entanto, não é nenhuma amadora e sabe exatamente o impacto da mensagem que Lula da Silva passou.

Quando os economistas demonstram ceticismo em relação ao déficit zero, cumprem sua obrigação de alertar a sociedade quanto à solidez das contas públicas. Quando a oposição ironiza o compromisso, faz o jogo político que dela se espera. Quando o Congresso resiste à meta, tenta ampliar seu acesso ao Orçamento. Quando o presidente da República em pessoa menospreza a meta anunciada pelo seu próprio ministro da Fazenda, está sendo apenas irresponsável.

Ainda que inexequível, o déficit zero é sempre um objetivo defensável. Ele expressa uma disposição inicial ao acerto, o que já é muita coisa. Manter o objetivo inalterado significa caminhar em sua direção, o que implica pronta e imediata rejeição de medidas que abram mão de receitas ou aumentem gastos.

Sabe-se que o mundo real não é exatamente assim. A própria pandemia de covid-19 mostrou o quanto demandas inesperadas podem surgir sem aviso prévio e precisam ser acomodadas. Não há, no entanto, nenhum motivo, neste momento, para renunciar previamente à meta no primeiro ano em que ela seria testada.

Quando o presidente fala em “obras”, deputados e senadores entendem “emendas”. Ambas fazem parte da mesma rubrica de despesas não obrigatórias. A meta de déficit zero exige um corte na verba de gastos discricionários de até R$ 53 bilhões, de forma que as emendas não seriam poupadas. É disso que se trata: Lula está mais preocupado em saciar a fome de sua base fisiológica do que em bancar o compromisso de equilíbrio fiscal assumido pelo ministro Fernando Haddad.

O Legislativo se sente credor do governo e sabe que é essencial para que a agenda do Executivo continue a avançar. Depois de meses de negociações difíceis e custosas, a Câmara aprovou o projeto de lei que tributa fundos exclusivos e offshore. No Senado, a despeito das críticas, a reforma tributária caminha para ser aprovada com benefícios superiores aos custos.

Em troca, parlamentares querem a garantia de suas emendas, mesmo que elas comprometam o arcabouço a que eles mesmos deram aval. Afinal, se esse contexto piorar as expectativas a ponto de elevar a inflação e impedir a redução dos juros, Lula retomará as críticas ao Banco Central, isentando o Congresso e a si mesmo de qualquer responsabilidade.

O ministro Haddad sai derrotado do episódio e sem qualquer moral para cobrar alguma austeridade da Câmara e do Senado. Quem realmente perde, no entanto, é o País, sobretudo os mais pobres, que Lula diz defender.

O frustrante resultado do Cosud

O Estado de S. Paulo

Em vez de usar o grupo como plataforma eleitoral, governadores do Sul e Sudeste deveriam se inspirar na Constituição e propor ações para reduzir desigualdades que também assolam suas regiões

A criação do Consórcio de Integração Sul e Sudeste (Cosud) foi finalmente aprovada pelas Assembleias Legislativas de cada um dos sete Estados que compõem as regiões. Embora só agora tenha passado formalmente a existir, o consórcio já havia realizado oito reuniões desde 2019 e acaba de fazer a nona. As discussões resultaram na Carta de São Paulo, documento que expôs o tamanho do desafio que o Cosud terá de superar na busca de consensos possíveis entre tão diferentes unidades da Federação.

Em defesa do consórcio, o governador de Minas Gerais, Romeu Zema, pregou, em entrevista ao Estadão em agosto passado, que o Sul e o Sudeste precisavam ter mais protagonismo nas discussões que ocorrem em Brasília.

Ele, de fato, tinha um bom ponto. Embora representem 70% do Produto Interno Bruto (PIB) nacional e abriguem 56% da população brasileira, as duas regiões têm sido sub-representadas no âmbito da Câmara e do Senado.

O Cosud, segundo Zema, seria uma forma de melhor resguardar os interesses desses Estados, a exemplo dos bem-sucedidos consórcios do Nordeste e da Amazônia Legal. A própria Constituição, em seu artigo 241, garante essa forma de atuação conjunta. O momento para criar o consórcio não poderia ser mais adequado. O Congresso discute a reforma tributária sobre o consumo, cujas mudanças afetarão diretamente as receitas e os recursos dos Estados para atrair investimentos. Mas o resultado da reunião foi bem mais modesto do que se poderia imaginar.

A meta mais concreta da Carta de São Paulo foi o compromisso de plantio de 100 milhões de mudas nativas até 2026. O Tratado da Mata Atlântica prevê a restauração de 90 mil hectares, a criação de corredores ecológicos terrestres e costeiro-marinhos e a construção de um plano integrado para o enfrentamento de eventos extremos relacionados a chuvas e estiagens, bem como um protocolo de políticas de prevenção e gestão de risco, monitoramento, resposta e atendimento emergencial em situações de crise.

É o que se extrai de melhor do documento. Genérica e inespecífica, a Carta de São Paulo menciona a necessidade de garantir a sustentabilidade fiscal dos Estados e de sugerir aperfeiçoamentos à reforma tributária. Na área de segurança pública, os governadores manifestaram apoio a uma “reforma do sistema de justiça criminal brasileiro” para aumentar “o custo do crime” no País – como se penas maiores e mais rígidas fossem a solução de um problema que assola todo o País.

Era de esperar que saísse algo menos superficial sobre tão relevantes temas. Mas não é exagero afirmar que a baixa ambição do documento tem relação com a visão que Zema externou na entrevista, ao comparar os Estados do Norte e do Nordeste a “vaquinhas que produzem pouco”, atraindo imediata antipatia para um consórcio que teria muito a contribuir com o País.

O “ato falho” de Zema remete ao período em que o consórcio começou a se reunir, em 2019. Segundo o governador mineiro, a pretensão eleitoral do ex-governador de São Paulo João Dória “atrapalhava” o consórcio e deixava os outros governadores “com um pé atrás”. É sintomático, portanto, que ele não tenha percebido que o problema de origem do grupo permanece exatamente o mesmo.

Dos sete governadores, ao menos quatro se colocam como presidenciáveis – Ratinho Junior (PR), Eduardo Leite (RS), Tarcísio de Freitas (SP) e o próprio Zema. Fazer do Cosud um verdadeiro consórcio requer dessas lideranças que deixem de lado suas pretensões eleitorais individuais em favor da defesa dos interesses regionais e coletivos.

É óbvio que há pobreza no Sul e no Sudeste, populações a serem assistidas e localidades que precisam de apoio, a exemplo de municípios do Nordeste e do Norte do País. É precisamente isso que une os consórcios do Nordeste e da Amazônia Legal e que tem garantido o sucesso da maioria de suas demandas no Legislativo: o claro propósito de trabalhar para reduzir desigualdades, um objetivo expresso da Constituição de 1988. É nela, portanto, que o Cosud deveria se inspirar.

Há vagas para trabalho precário

O Estado de S. Paulo

Desemprego cai, mas vagas abertas não acompanham avanço da capacitação profissional

Aumento do nível de escolarização da população e crescimento do emprego com carteira assinada são duas ótimas notícias que vêm ocorrendo no Brasil e que poderiam apontar para um horizonte promissor, de elevação consistente da renda per capita e melhora da qualificação do trabalho. Infelizmente, os dois indicadores não estão convergindo, e o que tem sido constatado é a precarização do mercado de trabalho, com predominância absoluta de vagas para profissionais com, no máximo, nível médio, enquanto minguam as vagas para graduados e pós-graduados.

Além disso, o acompanhamento da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), do IBGE, atesta que o emprego informal, que destitui os trabalhadores dos direitos assegurados pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), cresce em proporção maior do que o formal. No trimestre encerrado em agosto, eram 37,2 milhões de formais ante 38,6 milhões de informais. Encontrar, nas ruas de metrópoles brasileiras, profissionais qualificados desempregados trabalhando, por exemplo, como motoristas de aplicativo não é mais fato raro. É o retrato do frágil e preocupante cenário de um mercado de trabalho camuflado por números gerais positivos.

Como se não bastasse a informalidade, a oferta de emprego formal é mais numerosa para vagas de menor qualificação, muitas vezes disputadas e ocupadas por profissionais mais capacitados do que o exigido, o que traduz à perfeição o conceito da precarização. Levantamento da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC) divulgado em reportagem do Estadão mostra que aumenta a proporção das vagas que exigem, no máximo, nível médio: 81% em 2021; 87%, em 2022; e 96% neste ano, quase a totalidade.

No mesmo período foram perdidos 511 postos de trabalho para profissionais com mestrado e 655 com doutorado. O levantamento foi feito com base nos dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged), do Ministério do Trabalho. O ministro Luiz Marinho, ouvido na reportagem, disse que somente com a recuperação industrial haverá retomada consistente do emprego. Decerto caberia, além do diagnóstico simplista, uma atitude mais proativa do governo.

O avanço educacional, que se reflete no aumento de escolaridade da população, precisa desaguar na melhoria do mercado de trabalho, com mão de obra especializada e capacitada. O acesso ao ensino superior cresce. De forma lenta, mas constante, como também revelam dados da Pnad. Sem a correspondente abertura de vagas, ou pior, com redução de oferta, o destino para estes profissionais é engrossar a precarização ou participar do “êxodo de cérebros”.

Nenhuma das alternativas é o caminho desejado para o desenvolvimento econômico do País que, no trimestre encerrado em agosto, chegou à taxa de desemprego de 7,8%, a menor registrada pelo IBGE desde 2015. Desde o auge da pandemia, quanto o total de desempregados ultrapassou a marca de 14 milhões, a queda na desocupação é satisfatória em quantidade. Hoje são 8,4 milhões. Está na hora de investir na qualidade do emprego.

A escalada nuclear de Putin

Correio Braziliense

A Câmara alta do parlamento russo aprovou a retirada do país do Tratado de Proibição Total de Testes Nucleares (CTBT)

Ninguém governa um país como a Rússia por mais de duas décadas sem alguns méritos. Um dos principais do presidente Vladimir Putin, no poder desde 1999, certamente é a esperteza. Emperrado na guerra contra a Ucrânia desde fevereiro do ano passado, ele aproveitou que os olhares do mundo se voltaram para o conflito entre Israel e o Hamas, na Faixa de Gaza, para passar quase despercebido na sua estruturação do próximo estágio de sua disputa contra o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky.

Na última quarta-feira, a Câmara Alta do parlamento russo — equivalente ao Senado — aprovou, por unanimidade, com 156 votos a favor, a retirada da Rússia do Tratado de Proibição Total de Testes Nucleares (CTBT, na sigla em inglês). Inicialmente, o objetivo do tratado era proibir testes e explosões de armas atômicas, após mais de 2 mil detonações realizadas pelos Estados Unidos, pela então União Soviética e por outras potências durante a Guerra Fria (1947-1991). O acordo foi firmado em 1996 e aprovado pelo parlamento russo em 2020. Já o congresso norte-americano nunca chegou a votar o projeto.

A medida se soma às diversas rupturas dos acordos sobre armas atômicas entre Moscou e Washington desde o início da guerra na Ucrânia. Putin já havia retirado, em fevereiro, a Rússia do tratado de desarmamento New Start, que limitava os dois países a 1.550 ogivas nucleares prontas para lançamento, e permitia até 20 averiguações nos territórios uns dos outros. Desde o início do New Start, em 2011, russos e norte-americanos haviam realizado 328 inspeções, que foram suspensas.

Tentar antecipar o que Putin pretende com todos esses movimentos não é simples, mas o recado está sendo dado: com a retirada da Rússia de todos os acordos nucleares, o país, em tese, ficaria desimpedido para usar as chamadas armas táticas, menores e projetadas para aniquilar alvos inimigos em uma área específica, sem gerar uma dispersão ampla de radioatividade.

As armas nucleares táticas mais compactas podem ter um rendimento de até um quiloton. O número equivale a 1.000 toneladas de explosivos TNT, enquanto as maiores podem chegar a 100 quilotons. Já as chamadas armas nucleares estratégicas, substancialmente maiores, têm poder de destruição de até 1.000 quilotons. Para fins de comparação, a bomba atômica que os Estados Unidos utilizaram em Hiroshima, em 1945, tinha um poder de 15 quilotons.

No campo de batalha ucraniano, o uso desse tipo de arma, menor e mais precisa, pode representar o ponto de virada que a Rússia precisa para avançar pelo território do país vizinho e derrotar o exército de Zelensky.

Obviamente, caso uma escalada na guerra ocorra, haverá alguma reação dos outros países. Mas a Rússia já vem sofrendo sanções — como a retirada do sistema financeiro Swift, mecanismo de pagamentos e transferências bancárias internacionais — e sendo isolada do resto do planeta desde que invadiu a região ucraniana de Donbass e iniciou o conflito atual.

Caso uma bomba tática exploda em Kiev, fica difícil imaginar o que mais a comunidade internacional poderia fazer para punir o regime de Moscou. Como a Ucrânia não é parte da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), é pouco provável que os países ocidentais decidam entrar em campo para defendê-la.

A sensação de que Putin ficará impune, mesmo se decidir usar armas nucleares, é reforçada pela paralisia que a Organização das Nações Unidas (ONU) demonstra no caso da guerra entre Israel e o Hamas, com a imensa ressalva de que a Rússia tem assento permanente e poder de veto no Conselho de Segurança da entidade.

Por isso, os movimentos de Putin, enquanto o mundo se preocupa com a situação na Faixa de Gaza, e a mera possibilidade do uso das armas táticas no campo de batalha, geram apreensão. A situação não apenas deixa a Ucrânia em uma posição vulnerável, mas também levanta preocupações para o resto do mundo. Por enquanto, a única certeza é que a escalada de Putin na guerra cria uma atmosfera de tensão e medo que ainda vai merecer muita atenção — e cuidado — da comunidade global.


 

 

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