Governo acerta ao corrigir reforma do ensino médio
O Globo
Apesar de imperfeita, proposta aumenta carga
horária de disciplinas básicas e inibe aberrações no currículo
O Projeto de Lei (PL) com mudanças para o
Novo Ensino Médio enviado
ao Congresso pelo governo na semana passada representa um avanço, embora ainda
possa ser aperfeiçoado pelos deputados e senadores. Dada a relevância da educação para
o Brasil, seja pela dimensão econômica — devido ao impacto na capacitação da
mão de obra —, seja pela social — por ser um trampolim para a renda futura dos
jovens —, espera-se que os congressistas dediquem o tempo e o esforço
necessários.
A questão de fundo levantada pelo PL é a necessidade de transformar o quadro atual. A pontuação média dos alunos do terceiro ano nas provas do Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) está estagnada desde 2001. Os estudantes com nível de conhecimento adequado em matemática não passam de 10%. Em português a média dos últimos anos é um pouco melhor, mas baixa, inferior a 30%.
As disciplinas sempre foram ensinadas como se
fossem desconectadas, e o conhecimento é pouco aplicado à vida real. Não
surpreende que nos testes internacionais os brasileiros sigam na retaguarda.
Metade não tem a proficiência considerada mínima em leitura para participar
plenamente da vida social, econômica e cívica, pela medida da Organização para
a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).
A evasão diminuiu, mas segue alta (apenas 65 de cada cem alunos de 19 anos
completam o ensino médio). Para os jovens, o ensino é há muito tempo
desinteressante. A escola no Brasil é ruim, do século XX.
Uma lei de 2017 buscou enfrentar o problema
reformulando o currículo. Com base nas melhores práticas internacionais,
aumentou a carga horária e o dividiu em dois blocos. Um com disciplinas
básicas, como português ou matemática, outro com programas para aprofundar
conhecimento, oferecer formação técnica e profissional. Quando a mudança
começou a ser posta em prática, os erros apareceram. Ficou nítido que o teto de
1.800 horas em três anos para disciplinas básicas era baixo. A falta de
parâmetros para que os estados definissem os programas interdisciplinares deu
margem a aberrações como cursos para fazer brigadeiro.
Ao assumir, o ministro da Educação, Camilo
Santana, decidiu imprimir um freio de arrumação. Quando anunciou uma consulta
pública no começo do ano, muitos temeram que se dobraria à pressão de
sindicatos para barrar a reforma do ensino médio. Felizmente, o PL levado ao
Congresso enterrou os temores. A essência da reforma anterior foi mantida, com
diversificação curricular, integração com educação profissional e aumento da
carga horária.
O texto estabelece um piso de 2.400 horas
para as disciplinas básicas, proíbe o uso do ensino à distância na formação
geral, impõe parâmetros e diminui a carga horária no currículo diversificado.
As propostas vão na direção correta, mas merecem ser examinadas com cuidado. O
piso do currículo básico pode ter impacto na oferta de cursos técnicos para
quem opta pelo ensino profissionalizante. Falta também um piso para a carga do
currículo diversificado.
Apenas mudar o currículo não fará dos nossos
jovens alunos exemplares. A transformação do ensino médio exigirá esforço
maior. Deverá incluir, entre outros aspectos, a capacitação dos professores.
Ainda que não resolva tudo, o PL é parte fundamental da mudança. Por isso é
crucial o Congresso não perder a chance de aprová-lo.
Ditadura venezuelana continua a criar
ambiente propício à corrupção
O Globo
Denúncia de desvio de US$ 2 bilhões da
estatal petrolífera expõe limites da distensão ensaiada por Maduro
O ditador venezuelano Nicolás
Maduro ocupou o noticiário nos últimos dias pelos movimentos de
distensão na direção dos opositores do chavismo. Depois do anúncio de um acordo
com a oposição para permitir “eleições livres” no ano que vem e da libertação
de cinco presos políticos, obteve dos Estados Unidos a suspensão temporária do
embargo à compra de petróleo e outros produtos venezuelanos. O movimento de
Maduro semeou a esperança de uma transição sem traumas para a democracia, mas o
caráter arbitrário e essencialmente corrupto do regime chavista não mudou, como
revela um relatório da Unidade de Inteligência Financeira de Andorra (Uifand) a
que obteve acesso o jornal espanhol El País.
O documento traz informações fartas sobre
esquemas de enriquecimento ilícito no universo chavista, com registro de
operações financeiras e imobiliárias de antigos altos funcionários do chavismo.
Os esquemas fizeram desaparecer ilegalmente da estatal petrolífera Petróleos
de Venezuela S.A
(PDVSA) pelo menos US$ 2 bilhões, segundo o relatório. Uma das instituições
financeiras usadas pelos chavistas para lavar o dinheiro foi a Banca Privada
d’Andorra, que sofreu intervenção em 2015, quando um tribunal do principado
começou a investigar as falcatruas. Andorra vem passando por reformas nos
últimos anos, sob pressão da União Europeia, que exige mais transparência em
seu sistema bancário.
Por trás da bilionária movimentação de
dinheiro dos chavistas, verificada entre 2007 e 2012, a investigação
identificou um testa de ferro da organização criminosa: o empresário Luis
Mariano Rodríguez Cabello, que confessou ter usado uma rede de empresas-fantasmas
para comprar pelo menos 19 imóveis na Venezuela e em Miami, a preços
entre US$ 304 mil e US$ 5,5 milhões. Apenas em um edifício de Caracas, Cabello
comprou seis imóveis. Um dos apartamentos que comprou foi dado de presente à
representante da Venezuela no concurso Miss Universo.
Ao canalizar os recursos desviados para
imóveis, a corrupção chavista repete prática comum na América Latina. Assentada
sobre a maior reserva de petróleo do mundo e sujeita a todo tipo de
interferência do governo em sua gestão, a PDVSA tem oferecido aos corruptos
venezuelanos uma oportunidade sem igual. Os esquemas cobram comissões sobre as
exportações de petróleo. É um alerta aos Estados Unidos, que, pressionados pela
alta no barril do petróleo e pelas guerras na Ucrânia e no Oriente Médio,
decidiram voltar a comprar óleo da Venezuela. Será preciso que tomem todo o
cuidado para não alimentar as falcatruas em torno da PDVSA.
Diante da piora fiscal, governo deveria falar
a mesma língua
Valor Econômico
Presidente Lula diz que não quer fazer cortes em investimentos e que meta de déficit zero dificilmente será atingida
Os resultados fiscais estão piorando. De
janeiro a setembro, as contas do governo central tiveram um déficit fiscal
(receitas menos despesas, excluindo juros) de R$ 93,37 bilhões. O projeto de
lei orçamentária para o ano permite resultado negativo de R$ 228,1 bilhões, mas
o governo prometeu que o déficit seria menor, da ordem de R$ 100 bilhões. Na
sexta-feira, com as estatísticas de setembro, o secretário do Tesouro, Rogério
Ceron, disse que o buraco será maior do que o previsto, de 1% a 1,2% do PIB. Para
2024, quando estreia o novo regime fiscal, a meta é zerar o déficit. Faltam R$
168 bilhões em receitas adicionais para isso, algo muito difícil de ser obtido.
Pouco tempo depois que o Tesouro apresentou
os números, o presidente Lula, em sua primeira entrevista coletiva após a
cirurgia a que se submeteu, disse que a meta de déficit zero não deverá ser
cumprida e insinuou que o piso inferior de variação do regime (déficit de até
0,25% do PIB em 2024) pode ser o objetivo. “Nós dificilmente chegaremos à meta
zero, até porque eu não quero fazer cortes em investimentos e obras”, disse o
presidente. “A gente não precisa disso”. Lula acrescentou: “Eu não vou estabelecer
uma meta fiscal que eu tenho que começar o ano fazendo corte de bilhões nas
obras que são prioritárias nesse país. Se o Brasil tiver um déficit de 0,25%
(do PIB), o que é 0,25%? Nada”.
O novo regime fiscal necessita de aumento de
arrecadação para se sustentar, já que prevê aumento contínuo de despesas. Mas
contribuiu para acalmar os investidores em relação às piores expectativas
existentes sobre o que o PT faria após o fim do teto de gastos, isto é, a
perspectiva de uma explosão do endividamento público. O novo regime impede um
crescimento rápido da dívida, mas precisa mostrar que funciona de acordo com as
premissas que estabeleceu. O presidente, porém, as pôs agora em dúvida, assim como
subvalorizou o trabalho do ministro da Fazenda e de sua equipe.
O governo Lula iniciou o ano sob o signo da
PEC da Transição, que lhe deu autorização para gastar R$ 165 bilhões a mais do
que permitia o finado teto de gastos. O ministro Fernando Haddad se esforça
para reduzir o déficit neste ano e cumprir a meta no próximo. A situação das
contas públicas não é um desastre, até mesmo porque a economia crescerá mais
(3,1%) este ano do que em 2022. Tesouro e Banco Central tiveram superávit de R$
155 bilhões no ano até setembro, que se transformou em déficit quando contabilizado
o rombo da previdência, de R$ 251 bilhões. Houve o aumento previsto de R$ 55,8
bilhões no Bolsa Família e de R$ 12 bilhões na Saúde.
Mas o secretário do Tesouro disse que houve
alguma frustração de receitas, além de despesas imprevistas que afetam ou
afetarão o resultado no ano, como a antecipação da compensação aos Estados (R$
20 bilhões) e a demora na aprovação do voto de qualidade do Carf, que poderá
trazer R$ 10 bilhões dos R$ 50 bilhões esperados no exercício com a medida. A
progressiva regularização da fila da concessão de aposentadorias elevou as
despesas no ano em R$ 29,8 bilhões. O governo também deixará de contar com R$
15 bilhões dos depósitos judiciais da Caixa Econômica Federal. Com isso, o
resultado fiscal do ano deverá ficar mais próximo do estimado pela quarta
avaliação bimestral de receitas e despesas - déficit de R$ 141 bilhões.
As receitas administradas pela Receita
Federal encolheram 2% no ano, ou R$ 22 bilhões. Mas é a enorme queda da
arrecadação não administrada pela Receita que tem um peso decisivo no aumento
do rombo - está R$ 101 bilhões menor que no mesmo período de 2022. A redução
nas receitas de concessões e permissões, de 86%, foi de R$ 38,48 bilhões; a dos
dividendos e participações, de R$ 40,64 bilhões; e a de exploração de recursos
minerais, de R$ 22,27 bilhões. O governo tem responsabilidade nas duas
primeiras, ao se mostrar pouco interessado em deslanchar concessões e defender
que a Petrobras, a grande fonte de dividendos para o governo federal, os
diminua. A redução dos preços do petróleo afetou os recursos coletados da
extração mineral. Feitas todas as contas, as receitas totais até setembro
caíram R$ 56,9 bilhões.
Como a economia terá alguma desaceleração no
terceiro e no quarto trimestres, as receitas possivelmente não mudarão de
tendência. Um resultado pior no ano dificultará a zeragem do déficit em 2024,
para o qual haverá ainda grandes dificuldades para aumentar recursos. A
lentidão na obtenção de recursos extras não se deve à negligência da equipe
econômica, mas à arrastada e difícil negociação dos caciques do Congresso,
reunidos no Centrão, para obter posições nos ministérios e estatais do governo
Lula. E há possível superestimação do impacto das medidas previstas, como a da
arrecadação decorrente de decisão judicial sobre o uso do ICMS para abater
impostos federais.
Diante de uma meta fiscal difícil de ser
obtida, o governo deveria falar a mesma língua e agir na mesma direção. Mas é o
presidente Lula, a quem cabe comandar politicamente esse esforço, que vem a
público dizer que a meta inaugural do novo regime fiscal de seu governo não
deverá ser cumprida - e de uma forma que indica que isso parece não ter
qualquer importância.
Concessões demais
Folha de S. Paulo
Tramitação da reforma tributária avança, mas
distorce plano com mais benefícios
Avançou no Senado a reforma constitucional
que altera a cobrança de impostos sobre bens e serviços. Como era esperado, o
relator, Eduardo Braga (MDB-AM), fez novas
concessões que pioram o texto encaminhado pelo governo.
A proposta agora abre mais exceções à regra
básica de garantir o mesmo tratamento a todos os setores —solução ideal no
entendimento de especialistas.
Necessidades políticas já haviam garantido
diferenciação na versão da Câmara. Em vez da alíquota cheia, segmentos como
educação, saúde e transportes pagarão 40% do padrão, a ser definido ainda em
lei complementar.
Braga elevou a lista de áreas beneficiadas e
criou outra categoria especial para certos profissionais liberais, como
advogados e médios, que pagarão 70% do padrão geral. Eis uma
concessão indevida por pressões corporativistas.
A consequência das exceções é elevar a
alíquota geral, originalmente pensada em 25%. Não se sabe ainda o resultado
final, mas não será surpresa se as atividades não beneficiadas forem oneradas
em cerca de 27%, talvez mais. Também há chance de mais tratamentos especiais na
tramitação —a peça precisa passar por comissões e plenário do Senado e voltar
para votação final na Câmara.
No geral, porém, o relatório ainda preserva o
cerne da proposta, que é a unificação dos tributos federais (PIS-Confins),
estadual (ICMS) e municipal (ISS) em duas cobranças, não cumulativas e
incidentes no destino do consumo.
Outro ponto controverso é o do fundo de
desenvolvimento regional que direcionará recursos da União para os entes
federativos. O governo queria R$ 40 bilhões e o relator aumentou o montante
para R$ 60 bilhões, a ser atingido em prazo maior. Congressistas querem subir
mais, para R$ 75 bilhões.
É inevitável que a alteração traga custos,
pois a mudança de fato significa o fim dos incentivos tributários, a chamada
guerra fiscal. Pela nova lógica, subvenções serão orçamentárias, o que é
indesejável, mas inevitável politicamente em função de desigualdades regionais.
Mesmo diante de tantas modificações, a
premissa de simplificação e máxima neutralidade possível para decisões
econômicas está mantida e pode trazer resultados positivos palpáveis para a
economia.
Deve-se, portanto, proceder com a tramitação
para encerrar este capítulo, que já dura 30 anos. O país não pode mais
prescindir de um sistema moderno e alinhado às melhores práticas
internacionais.
No mundo atual, em que as cadeias produtivas
passam por profundo redesenho, é essencial colocar o Brasil no radar dos
investimentos, objetivo para o qual a reforma certamente é muito positiva.
Estressadas, e com razão
Folha de S. Paulo
Políticas públicas podem sanar injusta dupla
jornada de trabalho das mulheres
O avanço social das mulheres a partir da
segunda metade do século 20 não foi acompanhado por políticas públicas e
mudanças culturais que se adaptassem a essa transformação no papel do gênero
feminino.
Elas lutaram para entrar no mercado de
trabalho, mas continuaram sendo as principais responsáveis por tarefas
domésticas e cuidados com familiares. O resultado é uma dupla jornada de
trabalho que impacta a saúde mental desse estrato da população.
Segundo levantamento da ONG Think Olga, 13,3
mulheres a cada 100 mil habitantes no mundo sofrem com transtornos
psicológicos, ante 11,9 homens. No Brasil, a diferença é ainda maior, com 19 e
14,5, respectivamente.
A pesquisa constatou que 55% delas se
sentem ansiosas e 49%, estressadas; 45% já foram diagnosticadas com ansiedade
ou depressão.
Ademais, 86% das brasileiras afirmam ter
sobrecarga de responsabilidades, 48% vivem com problemas financeiros e 57% das
que têm entre 36 e 55 de idade são responsáveis pelo cuidado direto de alguém.
Dados do IBGE de 2022 respaldam esses
resultados. Se 40,69% das mulheres com três filhos ou mais não conseguem
trabalhar, apenas 0,62%
dos homens estão nesta situação —mesmo com apenas um filho, o
abismo é de 21,89% e 0,55%. As brasileiras usam 21,3 horas por semana para
administrar o lar e eles, só 11,7.
O impacto da maternidade, do cuidado com
idosos —que também recai sobre as mulheres— e das tarefas domésticas geram a
sobrecarga relatada pelas entrevistadas, dificuldade para conseguir emprego e
baixos salários que geram insegurança financeira.
Estudos da pesquisadora Claudia Goldin,
vencedora do prêmio Nobel de Economia neste ano, mostram que a dupla jornada de
trabalho feminina, notadamente com a maternidade, faz com que as mulheres optem
por empregos com jornadas menores ou mais flexíveis, que tendem a pagar menos
do que aqueles que exigem dedicação em tempo integral.
Assim, além de dar foco às mulheres na
atenção básica do SUS, para detectar sintomas de problemas mentais em seu
nascedouro, são necessárias ações nas causas.
No âmbito cultural, homens devem compartilhar tarefas domésticas. Já na seara pública, pode-se estender a licença paternidade e ampliar a rede pública de creches —só 36% das crianças de até 3 anos no país nelas estão matriculadas.
A irresponsabilidade de Lula
O Estado de S. Paulo
Presidente presta desserviço ao País quando
menospreza importância de atingir déficit zero, meta que o próprio governo se
impôs e nem chegou a ser testada
Em um surto de sinceridade, o presidente Lula
da Silva afirmou que a meta de zerar o déficit fiscal no ano que vem não
precisa ser cumprida. Segundo ele, o resultado dificilmente será atingido sem a
realização de cortes orçamentários em investimentos e obras públicas, algo que
ele não deseja fazer. “A gente não precisa disso”, disse o presidente,
referindose à meta de déficit zero, em café com jornalistas no Planalto na
sexta-feira passada.
Quem escolhe a vida pública sabe que existem
muitas coisas que não devem ser ditas – não porque elas não sejam verdade, mas
pelos efeitos indesejados que essas verdades podem gerar. Mas foi exatamente
isso que o presidente fez na semana passada, ao jogar uma pá de cal sobre a
meta a que o próprio governo se impôs.
Havia sido uma semana muito positiva no
mercado financeiro. A prévia da inflação reforçou as apostas dos analistas
sobre a manutenção do ritmo de redução da taxa básica de juros. Após a fala do
presidente, o dólar voltou a romper o patamar de R$ 5,00, a bolsa caiu e os
juros futuros dispararam, desancorando expectativas que guiam as decisões do
Banco Central (BC) a menos de uma semana da reunião em que o Comitê de Política
Monetária (Copom) anunciará a taxa básica de juros.
Como esperado, a presidente do PT, deputada
Gleisi Hoffmann (PR), saiu em defesa do chefe. Segundo ela, o mercado
financeiro teve uma reação irracional, pois nunca acreditou de fato na meta do
déficit zero. Hoffmann, no entanto, não é nenhuma amadora e sabe exatamente o
impacto da mensagem que Lula da Silva passou.
Quando os economistas demonstram ceticismo em
relação ao déficit zero, cumprem sua obrigação de alertar a sociedade quanto à
solidez das contas públicas. Quando a oposição ironiza o compromisso, faz o
jogo político que dela se espera. Quando o Congresso resiste à meta, tenta
ampliar seu acesso ao Orçamento. Quando o presidente da República em pessoa
menospreza a meta anunciada pelo seu próprio ministro da Fazenda, está sendo
apenas irresponsável.
Ainda que inexequível, o déficit zero é
sempre um objetivo defensável. Ele expressa uma disposição inicial ao acerto, o
que já é muita coisa. Manter o objetivo inalterado significa caminhar em sua
direção, o que implica pronta e imediata rejeição de medidas que abram mão de
receitas ou aumentem gastos.
Sabe-se que o mundo real não é exatamente
assim. A própria pandemia de covid-19 mostrou o quanto demandas inesperadas
podem surgir sem aviso prévio e precisam ser acomodadas. Não há, no entanto,
nenhum motivo, neste momento, para renunciar previamente à meta no primeiro ano
em que ela seria testada.
Quando o presidente fala em “obras”,
deputados e senadores entendem “emendas”. Ambas fazem parte da mesma rubrica de
despesas não obrigatórias. A meta de déficit zero exige um corte na verba de
gastos discricionários de até R$ 53 bilhões, de forma que as emendas não seriam
poupadas. É disso que se trata: Lula está mais preocupado em saciar a fome de
sua base fisiológica do que em bancar o compromisso de equilíbrio fiscal
assumido pelo ministro Fernando Haddad.
O Legislativo se sente credor do governo e
sabe que é essencial para que a agenda do Executivo continue a avançar. Depois
de meses de negociações difíceis e custosas, a Câmara aprovou o projeto de lei
que tributa fundos exclusivos e offshore. No Senado, a despeito das críticas, a
reforma tributária caminha para ser aprovada com benefícios superiores aos
custos.
Em troca, parlamentares querem a garantia de
suas emendas, mesmo que elas comprometam o arcabouço a que eles mesmos deram
aval. Afinal, se esse contexto piorar as expectativas a ponto de elevar a
inflação e impedir a redução dos juros, Lula retomará as críticas ao Banco
Central, isentando o Congresso e a si mesmo de qualquer responsabilidade.
O ministro Haddad sai derrotado do episódio e
sem qualquer moral para cobrar alguma austeridade da Câmara e do Senado. Quem
realmente perde, no entanto, é o País, sobretudo os mais pobres, que Lula diz
defender.
O frustrante resultado do Cosud
O Estado de S. Paulo
Em vez de usar o grupo como plataforma
eleitoral, governadores do Sul e Sudeste deveriam se inspirar na Constituição e
propor ações para reduzir desigualdades que também assolam suas regiões
A criação do Consórcio de Integração Sul e
Sudeste (Cosud) foi finalmente aprovada pelas Assembleias Legislativas de cada
um dos sete Estados que compõem as regiões. Embora só agora tenha passado
formalmente a existir, o consórcio já havia realizado oito reuniões desde 2019
e acaba de fazer a nona. As discussões resultaram na Carta de São Paulo,
documento que expôs o tamanho do desafio que o Cosud terá de superar na busca
de consensos possíveis entre tão diferentes unidades da Federação.
Em defesa do consórcio, o governador de Minas
Gerais, Romeu Zema, pregou, em entrevista ao Estadão em agosto passado, que o
Sul e o Sudeste precisavam ter mais protagonismo nas discussões que ocorrem em
Brasília.
Ele, de fato, tinha um bom ponto. Embora
representem 70% do Produto Interno Bruto (PIB) nacional e abriguem 56% da
população brasileira, as duas regiões têm sido sub-representadas no âmbito da
Câmara e do Senado.
O Cosud, segundo Zema, seria uma forma de
melhor resguardar os interesses desses Estados, a exemplo dos bem-sucedidos
consórcios do Nordeste e da Amazônia Legal. A própria Constituição, em seu
artigo 241, garante essa forma de atuação conjunta. O momento para criar o
consórcio não poderia ser mais adequado. O Congresso discute a reforma
tributária sobre o consumo, cujas mudanças afetarão diretamente as receitas e
os recursos dos Estados para atrair investimentos. Mas o resultado da reunião
foi bem mais modesto do que se poderia imaginar.
A meta mais concreta da Carta de São Paulo
foi o compromisso de plantio de 100 milhões de mudas nativas até 2026. O
Tratado da Mata Atlântica prevê a restauração de 90 mil hectares, a criação de
corredores ecológicos terrestres e costeiro-marinhos e a construção de um plano
integrado para o enfrentamento de eventos extremos relacionados a chuvas e
estiagens, bem como um protocolo de políticas de prevenção e gestão de risco,
monitoramento, resposta e atendimento emergencial em situações de crise.
É o que se extrai de melhor do documento.
Genérica e inespecífica, a Carta de São Paulo menciona a necessidade de
garantir a sustentabilidade fiscal dos Estados e de sugerir aperfeiçoamentos à
reforma tributária. Na área de segurança pública, os governadores manifestaram
apoio a uma “reforma do sistema de justiça criminal brasileiro” para aumentar
“o custo do crime” no País – como se penas maiores e mais rígidas fossem a
solução de um problema que assola todo o País.
Era de esperar que saísse algo menos
superficial sobre tão relevantes temas. Mas não é exagero afirmar que a baixa
ambição do documento tem relação com a visão que Zema externou na entrevista,
ao comparar os Estados do Norte e do Nordeste a “vaquinhas que produzem pouco”,
atraindo imediata antipatia para um consórcio que teria muito a contribuir com
o País.
O “ato falho” de Zema remete ao período em
que o consórcio começou a se reunir, em 2019. Segundo o governador mineiro, a
pretensão eleitoral do ex-governador de São Paulo João Dória “atrapalhava” o
consórcio e deixava os outros governadores “com um pé atrás”. É sintomático,
portanto, que ele não tenha percebido que o problema de origem do grupo
permanece exatamente o mesmo.
Dos sete governadores, ao menos quatro se
colocam como presidenciáveis – Ratinho Junior (PR), Eduardo Leite (RS),
Tarcísio de Freitas (SP) e o próprio Zema. Fazer do Cosud um verdadeiro
consórcio requer dessas lideranças que deixem de lado suas pretensões
eleitorais individuais em favor da defesa dos interesses regionais e coletivos.
É óbvio que há pobreza no Sul e no Sudeste,
populações a serem assistidas e localidades que precisam de apoio, a exemplo de
municípios do Nordeste e do Norte do País. É precisamente isso que une os
consórcios do Nordeste e da Amazônia Legal e que tem garantido o sucesso da
maioria de suas demandas no Legislativo: o claro propósito de trabalhar para
reduzir desigualdades, um objetivo expresso da Constituição de 1988. É nela,
portanto, que o Cosud deveria se inspirar.
Há vagas para trabalho precário
O Estado de S. Paulo
Desemprego cai, mas vagas abertas não acompanham avanço da capacitação profissional
Aumento do nível de escolarização da
população e crescimento do emprego com carteira assinada são duas ótimas
notícias que vêm ocorrendo no Brasil e que poderiam apontar para um horizonte
promissor, de elevação consistente da renda per capita e melhora da
qualificação do trabalho. Infelizmente, os dois indicadores não estão
convergindo, e o que tem sido constatado é a precarização do mercado de
trabalho, com predominância absoluta de vagas para profissionais com, no
máximo, nível médio, enquanto minguam as vagas para graduados e pós-graduados.
Além disso, o acompanhamento da Pesquisa
Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), do IBGE, atesta que o emprego
informal, que destitui os trabalhadores dos direitos assegurados pela
Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), cresce em proporção maior do que o
formal. No trimestre encerrado em agosto, eram 37,2 milhões de formais ante
38,6 milhões de informais. Encontrar, nas ruas de metrópoles brasileiras,
profissionais qualificados desempregados trabalhando, por exemplo, como
motoristas de aplicativo não é mais fato raro. É o retrato do frágil e
preocupante cenário de um mercado de trabalho camuflado por números gerais
positivos.
Como se não bastasse a informalidade, a
oferta de emprego formal é mais numerosa para vagas de menor qualificação,
muitas vezes disputadas e ocupadas por profissionais mais capacitados do que o
exigido, o que traduz à perfeição o conceito da precarização. Levantamento da
Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC) divulgado
em reportagem do Estadão mostra que aumenta a proporção das vagas que exigem,
no máximo, nível médio: 81% em 2021; 87%, em 2022; e 96% neste ano, quase a
totalidade.
No mesmo período foram perdidos 511 postos de
trabalho para profissionais com mestrado e 655 com doutorado. O levantamento
foi feito com base nos dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados
(Caged), do Ministério do Trabalho. O ministro Luiz Marinho, ouvido na
reportagem, disse que somente com a recuperação industrial haverá retomada
consistente do emprego. Decerto caberia, além do diagnóstico simplista, uma
atitude mais proativa do governo.
O avanço educacional, que se reflete no
aumento de escolaridade da população, precisa desaguar na melhoria do mercado
de trabalho, com mão de obra especializada e capacitada. O acesso ao ensino
superior cresce. De forma lenta, mas constante, como também revelam dados da
Pnad. Sem a correspondente abertura de vagas, ou pior, com redução de oferta, o
destino para estes profissionais é engrossar a precarização ou participar do
“êxodo de cérebros”.
Nenhuma das alternativas é o caminho desejado para o desenvolvimento econômico do País que, no trimestre encerrado em agosto, chegou à taxa de desemprego de 7,8%, a menor registrada pelo IBGE desde 2015. Desde o auge da pandemia, quanto o total de desempregados ultrapassou a marca de 14 milhões, a queda na desocupação é satisfatória em quantidade. Hoje são 8,4 milhões. Está na hora de investir na qualidade do emprego.
A escalada nuclear de Putin
Correio Braziliense
A Câmara alta do parlamento russo aprovou a
retirada do país do Tratado de Proibição Total de Testes Nucleares (CTBT)
Ninguém governa um país como a Rússia por
mais de duas décadas sem alguns méritos. Um dos principais do presidente
Vladimir Putin, no poder desde 1999, certamente é a esperteza. Emperrado na
guerra contra a Ucrânia desde fevereiro do ano passado, ele aproveitou que os
olhares do mundo se voltaram para o conflito entre Israel e o Hamas, na Faixa
de Gaza, para passar quase despercebido na sua estruturação do próximo estágio
de sua disputa contra o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky.
Na última quarta-feira, a Câmara Alta do
parlamento russo — equivalente ao Senado — aprovou, por unanimidade, com 156
votos a favor, a retirada da Rússia do Tratado de Proibição Total de Testes
Nucleares (CTBT, na sigla em inglês). Inicialmente, o objetivo do tratado era
proibir testes e explosões de armas atômicas, após mais de 2 mil detonações
realizadas pelos Estados Unidos, pela então União Soviética e por outras
potências durante a Guerra Fria (1947-1991). O acordo foi firmado em 1996 e
aprovado pelo parlamento russo em 2020. Já o congresso norte-americano nunca
chegou a votar o projeto.
A medida se soma às diversas rupturas dos
acordos sobre armas atômicas entre Moscou e Washington desde o início da guerra
na Ucrânia. Putin já havia retirado, em fevereiro, a Rússia do tratado de
desarmamento New Start, que limitava os dois países a 1.550 ogivas nucleares
prontas para lançamento, e permitia até 20 averiguações nos territórios uns dos
outros. Desde o início do New Start, em 2011, russos e norte-americanos haviam
realizado 328 inspeções, que foram suspensas.
Tentar antecipar o que Putin pretende com
todos esses movimentos não é simples, mas o recado está sendo dado: com a
retirada da Rússia de todos os acordos nucleares, o país, em tese, ficaria
desimpedido para usar as chamadas armas táticas, menores e projetadas para
aniquilar alvos inimigos em uma área específica, sem gerar uma dispersão ampla
de radioatividade.
As armas nucleares táticas mais compactas
podem ter um rendimento de até um quiloton. O número equivale a 1.000 toneladas
de explosivos TNT, enquanto as maiores podem chegar a 100 quilotons. Já as
chamadas armas nucleares estratégicas, substancialmente maiores, têm poder de
destruição de até 1.000 quilotons. Para fins de comparação, a bomba atômica que
os Estados Unidos utilizaram em Hiroshima, em 1945, tinha um poder de 15
quilotons.
No campo de batalha ucraniano, o uso desse
tipo de arma, menor e mais precisa, pode representar o ponto de virada que a
Rússia precisa para avançar pelo território do país vizinho e derrotar o
exército de Zelensky.
Obviamente, caso uma escalada na guerra
ocorra, haverá alguma reação dos outros países. Mas a Rússia já vem sofrendo
sanções — como a retirada do sistema financeiro Swift, mecanismo de pagamentos
e transferências bancárias internacionais — e sendo isolada do resto do planeta
desde que invadiu a região ucraniana de Donbass e iniciou o conflito atual.
Caso uma bomba tática exploda em Kiev, fica
difícil imaginar o que mais a comunidade internacional poderia fazer para punir
o regime de Moscou. Como a Ucrânia não é parte da Organização do Tratado do
Atlântico Norte (Otan), é pouco provável que os países ocidentais decidam
entrar em campo para defendê-la.
A sensação de que Putin ficará impune, mesmo
se decidir usar armas nucleares, é reforçada pela paralisia que a Organização
das Nações Unidas (ONU) demonstra no caso da guerra entre Israel e o Hamas, com
a imensa ressalva de que a Rússia tem assento permanente e poder de veto no
Conselho de Segurança da entidade.
Por isso, os movimentos de Putin, enquanto o mundo se preocupa com a situação na Faixa de Gaza, e a mera possibilidade do uso das armas táticas no campo de batalha, geram apreensão. A situação não apenas deixa a Ucrânia em uma posição vulnerável, mas também levanta preocupações para o resto do mundo. Por enquanto, a única certeza é que a escalada de Putin na guerra cria uma atmosfera de tensão e medo que ainda vai merecer muita atenção — e cuidado — da comunidade global.
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