Folha de S. Paulo
Para o dogmático, a única posição honesta possível
já está ocupada e é a dele
Quem conseguiu controlar o próprio asco pode
ter visto centenas de imagens estarrecedoras sobre os atos
do Hamas contra os cidadãos israelenses no último sábado.
Circulam vídeos de cadáveres vilipendiados,
garotos em desesperada fuga em campo aberto, caçados a tiros, o pavor de
mulheres impotentes exibidas como espólio de guerra por homens com fuzis,
corpos de famílias inteiras trucidados em rodovias. Nos dias seguintes, terá
visto imagens semelhantes e relatos da extrema brutalidade vindos da retaliação
do governo de Israel.
Confessei a minha dificuldade em conciliar o horror visto com os discursos que surgiram para endossar os ataques a Israel como um ato de legítima defesa dos oprimidos palestinos. Em mim, isso geraria imensa dissonância cognitiva, aquele desconforto que se costuma ter quando nossas crenças, atitudes ou valores entram em contradição.
Compaixão não casa com justificação e júbilo,
não tem jeito. Para minha surpresa, uma parte ruidosa dos meus interlocutores
resolveu o próprio mal-estar moral e cognitivo optando por aceitar a
brutalidade contra cidadãos indefesos como um dano colateral. Lamentável, mas
exagerado com más intenções pela mídia ocidental e o império americano.
Planilhas à mão, mostram, à guisa de desculpa, o quão superior é o número de
palestinos mortos pela mão violenta do Estado de Israel.
Os argumentos de justificação vão da falsa
neutralidade sugerida pela sentença "não há inocentes nesta guerra",
passam pelo clássico "sommelier de indignação pública" declarando
que, quando os mortos são palestinos, ninguém se importa, e chegam até a
formulação explícita de um Breno Altman: "Quando um povo submetido ao
colonialismo se rebela contra um Estado colonial, por quaisquer meios que seja,
não há dúvidas sobre o lado certo da história".
"Por quaisquer meios." Eis mais uma
aplicação do mesmo princípio que vem há anos envenenando nossas democracias: os
oprimidos têm um irrefutável direito à retaliação, mesmo que a fonte da
opressão seja um Estado e um governo, mas quem pague com a sua vida e dignidade
seja quem nada tem a ver com isso.
Na guerra não há inocentes? Inocentes é o que
mais há nelas, e são os primeiros a serem chacinados pelos senhores da guerra.
Vivemos como indivíduos, mas, nesse tipo de moralidade "estrutural",
os indivíduos não importam, só a estrutura, o sistema. Ao poder opressor —e
todas os mortos e sequestrados são parte dele— nada se concede, nem a
compaixão.
Há uma militância de esquerda que se crê
intelectualmente mais sofisticada e moralmente muito superior ao bolsonarismo,
mas que se comporta do mesmo modo. É como se todos, de um lado e do outro,
recebessem o mesmo memorando das "15 coisas em que acreditamos" e
tomassem posições automáticas cada vez que alguma está em questão.
Quanto mais intensa e automática a exibição
de alinhamento, mais serão reconhecidos e recompensados pelo grupo com que se
identificam.
Naturalmente, o esforço para exibir
alinhamento inclui não apenas defender os valores e as crenças do grupo da
forma mais radical, mas também atacar os "de fora", o que inclui não
apenas os adversários diretos, como também os dissidentes, os que se recusam a
aderir, os que querem discutir a crença e até os que reivindicam que, neste
caso, com o horror ainda queimando as nossas retinas, a adesão automática a
teses esquemáticas de oprimido e opressor, que tudo justificariam, é mera
expressão de desumanidade.
Como as crenças têm de ser monolíticas, para
facilitar a portabilidade, supõe-se que quem delas diverge comprou o pacote
inteiro de depravações. Assim, se sua régua moral leva você a expressar
repugnância ante crianças sequestradas e cadáveres nus de mulheres, exibidos
como troféus em picapes de terroristas, concluem que você apoia Netanyahu,
votou em Bolsonaro,
é sionista, imperialista e não dá a mínima para o que o governo de Israel faz
contra os palestinos. O que faria da sua ética um desprezível episódio de
hipocrisia. Ao dogmático a única posição honesta possível já está ocupada e é a
dele.
Na ética para não dogmáticos, Mehdi Hasan é
brilhante na síntese: "Moralmente, você não pode justificar o assassinato
de civis palestinos, mesmo que diga que está combatendo o terrorismo.
Mas moralmente você tampouco pode justificar o assassinato de civis
israelenses, mesmo que diga que se combate a ocupação".
Mas explique isso a quem acha que distinções
são de fracos.
*Professor titular da UFBA (Universidade
Federal da Bahia) e autor de "Crônica de uma Tragédia Anunciada"
Um comentário:
Excelente!
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