O Globo
Num país ainda mais racista que hoje, o maior
escritor brasileiro se impôs à elite literária (branca) pela originalidade,
humor, elegância
Machado de Assis tomou um gancho da Fuvest,
fundação que organiza o vestibular da USP. Sua obra estará fora das “leituras
obrigatórias”, de 2026 até 2029. Não que se tenha descoberto plágio nas
reminiscências além-túmulo do elitista (e escravocrata) Brás Cubas ou misoginia
tóxica nas dúvidas conjugais do sorumbático Bentinho. O maior escritor
brasileiro padece de defeito pior — o mesmo de Guimarães Rosa, Gregório de
Matos, Carlos Drummond: é homem.
Pode-se argumentar que ele esteve em praticamente todos os exames até agora, e é preciso abrir espaço para outros autores. Mas convém não esquecer que muita gente só leu os clássicos porque “caíam na prova”. E que foram eles que nos deram referências da boa literatura.
Machado entrou para o cânone não pelos
privilégios advindos dos seus cromossomos XY, mas por sua genialidade. Num país
ainda mais racista do que hoje, se impôs à elite literária (branca) pela
originalidade, humor, elegância. Numa época muito mais machista, criou
personagens femininas que passavam longe dos modelos de então.
Supondo que o surto identitário que acometeu
a Fuvest seja parte de uma pandemia, veremos as universidades abrindo mão de
Borges na Argentina, García Márquez na Colômbia, Shakespeare na Inglaterra,
Dante na Itália, Joyce na Irlanda, Camões em Portugal, Victor Hugo na França?
Afinal, eram todos machos.
Se a moléstia for contagiosa, a História do
Brasil terá de ser contada sem Pero Vaz de Caminha, Anchieta, Zumbi,
Tiradentes, Pedro I e II, Mauá, Nabuco, Bonifácio, Deodoro, Vargas, JK, FHC,
Lula. No campo das ciências, o estrago será ainda pior.
Sabemos que a lista da Fuvest é só uma
relação de livros que o candidato a uma vaga na melhor universidade país
precisa ler — e comprovar que entendeu. Ficar fora não implica deixar o panteão
dos mestres da língua. Porém nunca antes o critério de exclusão ou inclusão
tinha sido extraliterário. É isso que assusta.
Neste século, em 14 ocasiões a lista foi
exclusivamente masculina. Clarice Lispector apareceu quatro vezes; Helena
Morley, três; Ruth Guimarães e Cecília Meireles, uma. Lygia Fagundes Telles,
Rachel de Queiroz e Sophia de Mello Breyner Andresen, agora lembradas, já eram
escritoras consagradas. Seus livros podem não ter entrado antes por qualquer
outro motivo, menos “por terem sido escritos por mulheres” (como afirmou o
diretor executivo da Fuvest).
Em carta aberta, mais de cem professores
criticaram a “lista de ruptura”, mas por privilegiar a autoria feminina
deixando de lado outros parâmetros, como orientação sexual ou origem étnica: “A
adoção de um único critério para a escolha dos livros desconsidera a
especificidade da literatura, com risco de corroborar os novos tempos
utilitaristas de desvalorização das linguagens artísticas e, sobretudo, o foco
na figura do/a autor/a ou nas camadas mais superficiais do texto”. (Se houver
uma questão sobre o que quiseram dizer com isso, os estudantes estão lascados.)
Mas há esperança. Quando vier o triênio só de
autores pretos, talvez Machado volte, com Cruz e Souza e Lima Barreto. No dos
autores com sobrepeso, teremos Antônio Maria e Pedro Nava. No dos LGBTQIAPN+,
Mário de Andrade e Caio Fernando Abreu. E depois — quem sabe? — a Fuvest retome
a avaliação de livros apenas por seus méritos literários.
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